sábado, 24 de julho de 2010

2002 - HISTÓRIA DA FILOSOFIA

FILOSOFIA, ClENCIA E HISTORIA
Claudio Ferreira Costa*
"Infame, infonne liberdade Romantica, ignorante dos cinco poliedros iinicos e perfeitosl ignorante das jaulas da geometria divina, Feliz prisao da retina,
Ignorante do prazer continuo das impiedosas
e rigorosas redesl
Doce contracao do cerebro
Ligamento desejado,
Palicada, entrelacos gloriosos, limite dourado,
Corbeille, coroa arminhada"
Salvador Dali
Resumo:
Esse ensaio tematiza a absorciio do dominio da imaginaciio filos6fica pelo da investigaciio cientifica, considerando duas maneiras de ver contrastantes: a concepciio de A. Comte, segundo a qual a metafisicafaz parte de um estdgio
intermediario da evoluciio do saber situado entre religiiio e ciencia, e a opiniiio de A. Kenny de que ao menos em seus temas centrais afilosofia ha de permanecer para sempre irredutivel a ciencia. Em minha conclusiio favorer;
o Comte contra Kenny. De um lado, esse ultimo niio consegue apresentar um suporte satisfat6rio para as suas ideias; de outro, basta uma breve olhada no vertiginoso e cada vez mais abrangente progresso contemporiineo da ciencia, para nos apercebermos de que certas ideias defendidas por Comte merecem reavaliaciio. Ele estava apontando para a direciio certa, ainda que pudesse enganar-se seriamente quanta as dimensiies e a natureza do territ6rio a ser percorrido. A novidade desse trabalho niio estd, todavia, em seu argumento
*Doutoremfflosofla, professordoDepartamentodeFUPrincipios V, 6 (1998): 55-88
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geral, mas na tentativa de uma analise da natureza dos conceitos metafisicos com base em Comte (seciio 4).
Como se relacionam filosofia e ciencia, do ponto de vista de seu desenvolvimentohistorico?Essa euma questaocomplexaenecessariamente
especulativa, posta que a sua resposta envolvera a inevitavel admissao
de pressupostos problematicos acerca da natureza da filosofia e da propria ciencia.
Sobre 0 relacionamento historico entre filosofia e ciencia, uma constatacao fundamental ea de que a filosofia, como escreveu A. Kenny, ea mae das ciencias, melhor dizendo, "0 utero" no qual elas foram preparadas
para 0 seunascimento'.Essanao etanto umahipotesequantaa constatacao de urn fato historico, que foi impressivamente exposto por
J. L. Austin em uma analogia na qual ele comparou 0 destino da filosofia
com 0 de urn sol central e inicial, seminal e tumultuoso, do qual de tempos em tempos e lancado fora urn planeta frio e bern regulado, uma ciencia, que a partir de entao progride com seguranca rumo a urn estado final distante-.
Passando da analogia aos fatos, podemos comecar lembrando que ainda na obra de urn filosofo como Aristoteles a palavra 'filosofia' aplicava-
se indiferenciadamente a todo 0 saber humano, tendo sido 0 seu dominio de aplicacao progressivamente restringido no curso da historia, Que tudo fosse filosofia era entre os gregos justificado, pois 0 que ja existia em termos de ciencia era inicial e fragmentario, Aos poucos, porem, as ciencias basic as foram se destacando da filosofia. Considerese
0 caso da matematica. Embora esta tenha sido a primeira ciencia a diferenciar-se da filosofia, sabemos que os filosofos pitagoricos ainda mantinham uma compreensao metaffsica de sua natureza, considerando os mimeros e os elementos deles constitutivos como sendo 0 princfpio supremo, delimitante e determinante de todas as coisas. Nao obstante, 0 tratamento metaffsico-especulativo de questoes que sao de fato pertencentes
amatematica cedo deixou de ocorrer na filosofia de forma im-
I A Kenny: AquinasmMind. London 1993, p. 4. 2J. LAustin: Ftu1a:q:J1iroIFbpers, Oxford 1979,p. 232.
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portante. Algo semelhante aconteceu com a ffsica, Ela s6 passou a ser geralmente entendida como uma ciencia independente ap6s Galileu. Antes disso 0 seu lugar epistemico costumava ser ocupado pela ffsica aristotelica, ao menos na medida em que esta continha uma especulacao filos6fica acerca da natureza do mundo ffsico. Mais tarde a quirnica, especialmente a partir de Lavoisieur, tomou-se uma ciencia independente
de teorias rnfsticas ou especulativas sem real poder preditivo, 0 mesmo ocorrendo com a biologia. A psicologia filos6fica teve origem em livro com De Anima de Arist6teles, e fil6sofos como Descartes e Spinoza produziram minuciosas analises das faculdades da mente. Partes
importantes da psicologia filos6fica comecaram a deixar de pertencer
afilosofia na segunda metade do seculo passado, quando 0 metodo tipicamente introspeccionista dos fil6sofos comecou a ser substituido, por urn lado, pela psicologia resultante do uso de metodos psicoterapeuticos (0 que conduziu ao desenvolvimento das teorias psicanalfticas),
por outro lado, pela psicologia experimental (0 que pennitiu
0 desenvolvimento da teoria do condicionamento e mais tarde da teoria do reforco). Tambem desde 0 final do seculo passado 0 desenvolvimento
da logica simb6lica perrnitiu uma enorme ampliacao das possibilidades
do calculo logico, 0 que impos restricoes acredibilidade da especulacao filos6fica antes realizada no terreno da ignorancia logica (e.g.: as diabruras da "logica dialetica"), J. L. Austin pretendeu ele pr6prio
separar da multidirecionada massa de indagacoes filos6ficas uma nova "ciencia da linguagem", caracterizada pela sua teoria dos atos
ilocucionarios, hoje pertencente apragmatica, Tambem a neurofisiologia, a psicologia cognitiva e os diversos dornfnios de questionamento de uma emergente ciencia da mente deverao, assim se espera, abarcar certos dornfnios que ja pertenceram exclusivamente aespeculacao filos6fica, restringindo-a ainda mais.
Com efeito, que as ciencias basicas tenham nascido ap6s urn perfodo mais ou menos longo de especulacoes de carater filos6fico em urn domfnio correspondente, mas ainda indistinto e confundido com outros, e urn fato dificilmente recusavel, Por isso a filosofia pode ser considerada, ao menos em certa medida e em certos dominios, como
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uma antecipacao especulativa e freqiientemente equivocada da ciencia que ainda esta por nascer: uma forma de protociencia.
A reflexao em torno disso conduz a questoes filosoficas de interesse, como: "Como se daria essa passagem?"; "Quais sao os criterios
que usamos para distinguir a filosofia da ciencia?" "Ira a filosofia, ao final, ser completamente absorvida pela ciencia, deixando de constituir urn dominio diverso de investigacao?" "Possui a filosofia urn objeto proprio de investigacao, independente dos objetos das ciencias particulares?"
Tentei responder a algumas dessas questoes em outro Iugar' . Quero aqui considerar apenas duas respostas que os filosofos deram a elas, com 0 intuito de fazer algumas reflexoes comparativas que possam melhorar a nos sa compreensao das relacoes entre filosofia, ciencia e historia.
A primeira concepcao a ser considerada constitui-se em todo urn sistema filosofico, em parte determinado pela percepcao do fato historico
acima resumido. Trata-se da doutrina positivista da evolucao da mente e da cultura humana, desenvolvida por Auguste Comte em seu Curso de Filosofia Positiva e em alguns outros trabalhos. A filosofia de Comte tern sido muito facilmente desmerecida, nao faltando razoes para isso. Sem diivida, a qualidade de suas ideias ebastante variavel; muito do que ele escreveu eincorreto ou perdeu a atualidade; ha uma visao reducionista das questoes e uma disposicao dogrnatica, que transparece nos desdobramentos da doutrina, Parece que Comte, em parte devido a acontecimentos de sua vida pessoal, sofreu urna progressiva recaida no obscurantismo e dogmatismo metafisico-religioso que a logica de seu pensamento 0 obrigaria a combater, terminando por criar uma curiosa e estranha religiao secular: a religiiio da humanidade, cujo objeto de culto
nao era urn Deus transcendente, mas a humanidade essencial, representada
pela obra e exemplo dos grandes homens. Urn filosofo como Sartre chegou a dizer que a especie comteana de humanismo conduz ao
3C.FerreiraCRiodeJaneiro 1996.Opresenteensaioeumestudoespeofico,objetivandoapoiara teaiaesba;adanoartigodtado.
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fascismo". Isso e injusto. Nao obstante, urn culto elitario, que supervalorizasse 0 social em detrimento do individuo ignorando a democracia,
poderia mais facilmente conduzir a alguma forma desumana de totalitarismo. Nada disso, no entanto, deve desencorajar-nos da tentativa
de ler Comte sem preconceitos, retirando de seus textos os insights plausiveis para po-los em dialogo com a perspectiva contemporanea,
1. A CLASSIF1CA<;Ao COMTEANA DAS CIENC1AS
Comte relaciona a filosofia aciencia atraves da assim chamada lei dos tres estdgios" . Como a aplicacao dessa lei s6 eadequadamente compreendidaaluz da classificacao das ciencias fundamentais por ele adotada, quero expor as duas, a comecar pela ultima.
Comte utiliza como criterio para a sua classificacao a generalidade
e complexidade de cada ciencia, Complexidade e generalidade estao
em proporcao inversa: a maior complexidade no conteudo das teorias
de uma ciencia vern acompanhada de uma menor extensao, de uma menor generalidade. Tal oposicao nao ecasual, mas intrfnseca: eele quem nota que os fenomenos, para serem mais gerais, nao podem implicar-
se com situacoes particulares, precisando ser por isso mesmo mais simples".
Aplicando tal criterio, as ciencias fundamentais sao a matematica,
a astronomia, a fisica, a quimica, a biologia e a sociologia' . A matemdtica
ea mais geral, aplicando-se simplesmente a tudo 0 que existe. Em uma consideracao mais detida, ela nao epropriamente uma ciencia,
4J. P.Sartre: "Oedstendalisrroeumhumarnsrm", in: 0s~(Abri1Cultural),sao Paulo1973,p. 27. 5Traduzoapalavra'etat' por'estagio'aoirIvesde'estado',dermdoafazerjuzaocarater
c:linarnb:>da>processcsdenotadoopeloClJflC:ffioa:mteano. IfA Cante: O:.ursdeFtli109::phie~,fu,res, Paris 1968 (1830-1842), torro l, p.71
(urmtrah.1l;;aoJX11uguesadecapitulcssd:rea<>quesIDesaquia:nsi:kTcv::las,tamberido
Dso:wssurr;espitEt6ii!f.mo::ntra-rena~Os~.
7 AComte: ilXL,pp. 70ess.
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por nao investigar seres concretos, mas urn metodo comum as diversas ciencias. A proxima ciencia e a astronomia ou ffsica celeste. A seguir vern a ffsica terrestre, que contem a fisica propriamente dita, que se ocupa do estudo das leis gerais da materia, vindo depois dela a quimica, mais complexa e menos geral, ocupando-se dos fatos quimicos. Em nivel
de complexidade maior do que 0 da qufrnica e dizendo respeito a uma porcao ainda mais restrita do universo temos a biologia, que estuda as leis gerais da vida. Por fim chega-se a mais especffica e mais complexa
das ciencias, que Comte chama de ffsica social ou sociologia, a qual estuda 0 homem como ser social. Segundo Comte, a ordenacao das ciencias
da mais simples para a mais complexa corresponde a sequencia de seu surgimento no curso da historia; e essa ordem de seu desenvolvimento
e natural e necessaria, posto que 0 conhecimento das ciencias menos gerais pressupiie 0 conhecimento das mais gerais. Por isso a sociologia
so emergiria como ciencia no alvorecer do seculo XIX, em parte
por obra do proprio Comte.
Uma primeira questao acerca dessa hierarquia e ada ausencia da psicologia, que aparentemente deveria encontrar-se entre a biologia e a sociologia. A resposta e que Comte nao inclui a psicologia em sua classificacao porque por isso ele entendia a psicologia introspeccionista (filosofica) de sua epoca, A psicologia nao e para ele possivel, na medida
em que a introspeccao nao e verdadeiramente possivel: a mente nao pode dividir-se em duas, uma que raciocina e outra que observa 0 seu raciocinar. Comte tambem nao inclui a filosofia em sua classificacao, A filosofia, em urn sentido afirmativo da palavra e,para Comte, afilosofia positiva, vista como uma ciencia suprema, cuja principal funcao teorica e a de classificar as ciencias, deterrninar os seus limites, julgar os seus progressos. Enquanto tal, a filosofia se aproxima do que hoje chamarfamos
de uma teoria das ciencias. Mas 0 que diria Comte da maior parte daquilo que normalmente chamamos de 'filosofia'? Isso ele anatematizaria sob a rubrica de metafisica: uma forma de pensamento pertencente a urn estagio pre-cientffico e temporario do desenvolvimento
da mente humana.
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A classificacao comteana das ciencias etambern em outros pontos
questionavel. Eobviamente enganosa a oposicao entre fisica celeste e fisica terrestre. A astronornia ena verdade uma ciencia aplicada, que faz uso de outras ciencias, especialmente da fisica. A fisica, por sua vez, euma ciencia pura, a mais geral das ciencias ernpfricas, bern mais do que a astronomia, pois se aplica genericamente a tudo 0 que ede natureza
material, incluindo nisso os corpos celestes... E a exclusao da psicologia
do dornfnio das ciencias empiricas perdeu hoje todo 0 sentido, uma vez que 0 metodo introspectivo, criticado por Comte, ha muito deixou
de ser vital ainvestigacao psicol6gica.
Tambern se pode objetar que 0 criterio pelo qual reconhecemos a complexidade/sirnplicidade de uma ciencia nao eclaro. Em que sentido, afinal, pode-se dizer que a ffsica emais simples que a biologia? Ha varies. Primeiro, ha a rnaior variedade do que ecompreendido pela biologia, Se considerarmos a multiplicidade dos fatos que precisam ser conhecidos como fazendo parte do dominio cientffico, parece claro que a biologia e bern mais complexa do que a ffsica. Segundo, ha uma maior complexidade
em termos de regularidades a ser consideradas, Se adrnitirmos urn sentido suficientemente fraco para 0 conceito de lei, como regularidades a ser consideradas, entao devemos tambem adrnitir que as leis ffsicas sao poucas em comparacao com a grande variedade das leis (regularidades) biol6gicas a serem consideradas. Terceiro, pode-se medir a complexidade em termos de fatores intervenientes. Se considerarmos as leis em urn sentido
forte (exigindo universalidade etc.), 0 mimero de leis biologicas deve ser bastante reduzido em mimero. Mas talvez se deva entao dizer que essa ciencia emais complexa do que a fisica, no sentido de que a aplicacao de suas leis esta sujeita a uma maior variedade de fatores intervenientes que podem favorece-la, modifica-la ou suspende-la; "enunciar" tais leis considerando
os principais fatores intervenientes mais relevantes pode tornar-
se entao uma tarefa extraordinariamente complexa, embora necessaria.
A variedade de fatores intervenientes em qualquer generalizacao parece
praticamente inesgotavel, se considerarmos 0 caso da sociologia. Em qualquer das tres rnaneiras aqui sugeridas de se usar a nocao de 'complexidade',
a classificacao das ciencias fundamentais pelo criterio de graus de complexidade crescentes mantern-se razoavelmente plausivel,
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Quanto ao criterio de generalidade decrescente, trata-se de urn lugar-comum irrecusavel". Eevidente que a ffsica e a mais geral das ciencias empiricas, por aplicar-se a tudo 0 que existe no mundo empirico. Ja a quimica aplica-se apenas aquela parte do mundo ftsico formada de atomos e moleculas em suas combinacoes possiveis, e a biologia possui uma aplicacao ainda mais estrita que a quimica, reduzindo-se ao ambito dos organismos vivos. A psicologia, uma vez adrnitida como ciencia fundamental, se aplica apenas aos seres vivos conscientes. E a sociologia,
por firn, constitui 0 dominio de aplicacao mais restrito de todos, pois so pode ser aplicada a seres vivos conscientes e capazes de se organizar
socialmente. Outras ciencias nao seriam mais basic as ou fund amentais;
elas resultariam da aplicacao das ciencias empiricas fundamentais
a especificas constelacoes de fenomenos (exemplos: a astronornia, a neurofisiologia, a psicologia social).
Tambem faz sentido a ideia de Comte de uma subordinaciio entre as ciencias. A matematica e urn pressuposto necessario para 0 desenvolvimento
das ciencias. Edificil imaginar que a fisiologia ou a biologia pudessem ter-se desenvolvido se nada soubessemos de fisica. Pense-se, por exemplo, na mensuracao do consumo calorico dos organismos vivos
ou na invencao do microscopic... Tambem a psicologia experimental
nao seria certamente possivel sem uma base minima de conhecimentos
fisiologicos ou biologicos, Descontando-se inadequacoes que hoje nos parecem evidentes, concluirnos que a classificacao comteana das ciencias, embora exigindo correcoes, apoia-se em princfpios perfeitamente
validos, cuja vaguidade e adequada ao carater difuso da materia a qual se aplicam.
2. A LEI DOS TRES ESTAGIOS
A lei dos tres estagios e uma ordenacao do trajeto percorrido pela mente, que vai da supersticao aciencia, Ela nao e criacao de Comte.
8 D. L. Hull: Filosofia das Ciencias Biofrfgicas (titulo original: Philosophy of Biological Science), trad. ed. Zahar, Rio de Janeiro 1974, p. 15.
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Outros autores ja haviam tido pensamentos semelhantes. Sobre isso basta
dizer que, ja em 1750, A. Turgot havia constatado que 0 conhecimento
possui tres estagios de desenvolvimento, passando da religiao ametaftsica
e da metafisica aciencia? . Somente Comte, porem, percebeu e explorou
a ideia em todas as suas possibilidades. Ele a desenvolveu em maiores
detalhes, adicionando uma grande quantidade de material confirmador
proveniente de seus estudos de historia da ciencia e da cultura e, por
fim, generalizou-a aaltura de uma lei quase que "metaffsica" (que ele
considerava empiricamente evidente), presidindo 0 desenvolvimento
comum do saber, da mente individual e da propria historia social do
homem.
Ecomo uma lei generica acerca do desenvolvimento do saber
ou da cultura humana que a lei dos tres estagios e mais importante. Para
Comte, cada dominio de nosso saber passa necessariamente, primeiro
pelo estagio teologico oa ficttcio, em seguida por urn estagio metafisico
ou abstrato, chegando finalmente a urn definitivo estagio cientifico ou
positivo.
Comecemos pelo estagio teol6gico ou ficticio. Ele constitui 0
ponto de partida necessario para a evolucao da mente. Nele 0 homem
pretende explicar os fenomenos do mundo circundante recorrendo a
causas essenciais (primeiras ou finais), originadas da vontade de seres
pessoais sobre-humanos: os deuses ou 0 Deus. 0 conhecimento obtido
nesse prirneiro estagio pretende-se absoluto. E 0 saber assenta-se como
produto da imaginaciio, nao da razao,
oestagio teologico assume para Comte tres formas subseqtientes:
as do fetichismo, do politeismo e do monoteismo'". No fetichismo esta
. presente uma mentalidade animista, que concebe os objetos fisicos como
sendo vagamente dotados de vida, de paixoes e de vontade. Como exemplo
temos a adoracao dos astros pelos povos antigos. Com 0 transcorrer
do tempo, as forcas que animavam imanentemente os objetos sao misteriosamente
transportadas para seres ficticios, os deuses. Com isso chega:
Anne-Rbn.Jaap.1eS'Ilngt:~sur/QRrrmttnetbDsirbJittndesRtresses,
Heidelberg1913(l750),p. lOess. 10 A ilirJ.1e: JJisa:.urs SUTL'espltFbsitif,~.Paris 1968(1844), tomoXI.pp.2ess.
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gamos ao politefsmo, tipico da Grecia antiga. Mais adiante, as divindades
da religiao politeista sao fundidas em uma s6, chegando-se entao ao subestagio do monoteismo, presente nas religioes judaico-cristas, Ha nesse movimento urn progresso da mente dentro da ordem teol6gica, 0 qual, tendendo aabstracao e areducao do mimero das causas na explicacao
dos fenornenos, principia 0 processo de substituicao da imaginac;
aopela razao,
o segundo estagio e0 metafisico. Ele representa urn notavel progresso, pois, embora se continue a procurar por causas essenciais, 0 principio ou explicacao nao se encontra mais em presumiveis realidades divinas, mas de algum modo na propria natureza. 0 principio explicativo eposto nas pr6prias coisas, na medida em que estas encerram ou atuam de acordo com "propriedades essenciais", "entidades abstratas", "poderes
naturais". Tais entidades (como 0 eter e os espiritos vitais) sao, contudo,
ficcoes inefetivas, que funcionam de maneira mais ou menos semelhante
aos deuses no estagio teol6gico. Elas servem somente asatisfacao
de necessidades psicol6gicas, e 0 seu carater efundamentalmente equivoco: elas sao inerentes aos corpos ffsicos, mas ao mesmo tempo inobservaveis e diversas deles; elas nao sao seres sobrenaturais, mas tambem nao chegam a fomecer explicacoes verdadeiramente naturais para os fenomenos, E precisam permanecer suficientemente vagas e obscuras para permanecerem fora do alcance da critica.
No estagio metafisico 0 conhecimento continua a ter urn carater absoluto, na medida em que as "entidades" ou "propriedades", embora devendo pertencer a pr6pria realidade, possuem em geral imutabilidade e necessidade, estando Iivres da contingencia e relatividade de cada coisa
em concreto. Nao obstante, a reducao das causas transcendentes e sobrenaturais a principios naturais e interiores as pr6prias coisas significa
uma certa "racionalizacao" na explicacao do conhecimento. Ainda aqui, contudo, 0 saber continua a assentar-se no poder da imaginacao, ou melhor, no usa abusivo de uma razao que se deixa guiar mais pela imaginacao do que 0 apoio observacional 0 perrnite.
o estagio metafisico e, nao obstante, intermediario e provis6rio,
nao passando de uma longa e laboriosa preparacao para a emergen65
cia do estagio positivo, que e aquele no qual 0 saber se afinna como ciencia, Para Comte, 0 estagio positivo e instaurado com 0 abandono das indagacoes teol6gicas e metafisicas, evidenciadas como irrespondiveis e estereis, 0 conhecimento procurado nao e mais absoluto,
mas relativo acondicao e situacao humana. Aqui nao e mais a imaginacao
que explica os fenomenos, mas a razao entendida como adesao ao dado, orientada para a a<;ao operativo-instrumental. Essa e a razao cientifica,
que nao busca mais uma causa essencial das coisas, mas a descoberta
de leis, ou seja, a verificacao observacional da vigencia de certas regularidades entre os fenomenos. 0 conhecimento dessas regularidades
nos permite fazer previsiies e, em certa medida, dominar a natureza. Atraves disso as ciencias tomam-se urn instrumento a service das necessidades
humanas reais, em consonancia com os interesses e fins da sociedade.
Para Comte,afuncaoefetivados dois primeirosestagios eapenas a de preparar 0 carninho para 0 estagio positivo: somente atraves dos estagios
teol6gico e metaffsico a mente humana reline forcas para a perseverante
observacao dos fatos que acaba por conduziraciencia, Urn exemplo muito claro disso foi a passagem da astrologia aastronornia: a continua observacao dos astros, com vistas a auscultar 0 destino humano acabou por conduzir a uma mensuracao matematica dos fenomenos celestes, a qual criou condicoes para 0 surgimento das teorias astronomicas,
A lei dos tres estagios tambern se aplica ao nivel do desenvolvimento
individual dos seres humanos, 0 que evidencia a sua raiz biologica.
Comte nota que somos teologos na infancia, pois vivemos em urn mundo imaginario, acreditando em seres mfticos; somos metaffsicos na adolescencia, quando, tendo desenvolvido 0 uso da razao, tomamo-nos capazes de especular, passando a extrair conclusoes de prernissas as mais incertas; por fim, quando atingimos a idade adulta -na medida em que realmente a atingirmos -tomamo-nos flsicos, admitindo somente 0 saber
positivo, fmnado e confirmado pela ciencia,
Por fim, a lei dos tres estagios tambem vern a se revelar ao nivel da organizacao e funcionamento da sociedade. Para Comte, 0 estagio teologico durou ate 0 fim da Idade Media, sendo constituido por uma
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sociedade autoritaria e militarista, dominada por sacerdotes e reis; da reforma protestante ate a revolucao francesa, as ideias metaffsicas passaram
a adquirir predominancia na orientacao da sociedade, instaurando-
se 0 imperio da lei e dos direitos abstratos; mas foi so com a revolu~
ao industrial que se tomou possivel 0 desenvolvimento de uma sociedade
pacifica, na qual a vida economica do homem passou ao centro das atencoes. Nessa sociedade a ciencia esta destinada a exercer papel determinante na vida social, a qual acabara por ser organizada e regulada
por uma elite de cientistas.
3. AVALIA<;Ao DA LEI DOS TRES ESTAGIOS
A lei dos tres estagios sempre foi objeto de crfticas, Responderei
brevemente a elas, pois parece-me claro que a historia a tern confirmado,
e que essa lei exige apenas correcoes de detalhes.
Ha, primeiramente, objecoes provenientes de teorias altemativas.
Como essas objecoes sao extemas e essas teorias nao sao muito plausfveis", nao sera preciso discuti-las aqui. Quanto as objecoes inter-
II Umexemploeacriticade M.Schelerem"ProblemeemerSoaologiedesWtssens"(in: DieWrssensfrlTHlI.DlddieGese11sdr!fr. Leip7ig 19w).Schelersugeriuaexistfndade diversosmteresseseatividadesculturaismdependentes,que, emborasurgmdodeum pre..estagiomitirncmn.nn.evolmmhistoricarnntedefarrnaindependenteep:rralela. SendoassiInCcrnteestariaa.di.mdindolllllpn:xlS'3Odedifermcial;ilodoespiritornm lllllJX"0CfS30dedesenvdvimntoem~.quardooquerealrrentesedaeumprocessodedif~.
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nas, ha duas mais importantes. Uma primeira, salientada par Habermas", ea de que a lei dos tres estagios e, ela propria, metafisica, pois nao se baseia em fato observacional. A resposta eque iS80 seria correto se precisassemos
adotar uma concepcao reducionista do fenomeno ou fato social ou cultural basico.: como se este devesse ser algo observavel ao nfvel da percepcao individual. Mas, primeiro, e0 proprio Comte quem denuncia a concepcao reducionista da ciencia positiva, rejeitando-a sob
o epfteto de empirismo. Segundo, parece-me perfeitamente razoavel conceber a lei dos tres estagios como uma inferencia para a melhor explicaciio, resultante da consideracao de uma grande diversidade de fatos socio-culturaisbasicos emsuaprogressaohistorica, Epordarcoerencia
amultiplicidade desses fatos que essa explicacao nos parece a primeira vista verossimil.
A segunda objecao ea de que a lei dos tres estagios, quando aplicada asociedade, contradiz flagrantemente a ordem de surgimento das ciencias. Afinal, a matematicaja existia entre os gregos, em pleno estagio teologico; e a astronomia e a ffsica ja existiam como ciencias no estagio metaffsico, antes da revolucao francesa e da instauracao do estagio
positivo.
Contudo, Comte estava perfeitamente consciente disso". Com base nele podemos dizer que, considerados do ponto de vista da ordem social predominante, os estagios sobrepiiem-se parcialmente uns aos outros, melhor dizendo, elementos culturais de urn estagio persistem em outros, ficando a identificacao de uma ordem social como pertencente a urn certo estagio dependente da predominiincia relativa de seus elementos.
Assim como no adulto alguns traces do adolescente e da crianca podem persistir, e tambem no adolescente, e mesmo na crianca, alguns traces do pensamento adulto podem precocemente surgir, 0 mesmo se da com 0 desenvolvimento da civilizacao, A sociedade, em seu estagio positivo, so pode resultar de uma situacao na qual as ciencias fundamentais
ja se encontram em geral estabelecidas, tornando-se pois com-
12J.I-faOOTms: El'ka1ntnisI.llrlInieIPsseFrankfurt 1973,p. 92. 13Cf.excertosernEvaristodeM.Filho (ed.):Cbmte,S.Paulo (Atica)1989,p. 149.
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preensivel que ciencias mais gerais que surgiram muito antes, como a matematica na Antiguidade e a ffsica no Renascimento, nao pudessem deflagrar 0 estagio positivo ao nivel social. A ordem hierarquica vigente entre as ciencias explica, pois, 0 carater escalonado da positivizacao da cultura. Essa dissincronia entre 0 desenvolvimento de ideias cientificas e 0 da sociedade tambem ajuda a explicar a falta de assirnilacao de certas
descobertas cientificas na Antiguidade (e.g. a teoria heliocentrica), as quais, nao podendo encontrar a recepcao adequada, acabaram sendo rejeitadas ou esquecidas.
Poderiamos acrescentar que se quisermos admitir a existencia de leis gerais do desenvolvimento socio-historico-cultural, precisaremos
estabelece-las de maneira suficientemente vaga e flexivel para que elas facam jus apropria complexidade e variedade incoercfveis deste dominio da investigacao, Isso significa que 0 modelo a ser considerado nao deve ser 0 das generalizacoes universais, mas algo cuja vaguidade lembra as leis estatisticas. Elas devern, pois, ser entendidas em urn sentido
meramente tendencial, entendendo-se por isso correlacoes de fenomenos
necessariamente generic as e incertas, 0 que se da devido aindefinida
variedade de fatores imprevisiveis que podem intervir em sua aplicacao, Eapenas nesse sentido que se pode falar de uma "lei" dos tres estagios. Alem disso, a ocorrencia dos tres estagios nao seria acidental, pois dela se depreende que se uma outra civilizacao, constituida de seres
humanos como nos, se desenvolvesse ate a aquisicao do conhecimento
cientifico, dado apropria natureza desses seres, ela passaria provavelmente
por fases de explicacoes mitologico-religiosas, seguidas de fases de explicacoes especulativas, para so entao chegar a explicacoes cientificas. E essa e uma ideia razoavel,
Minha sugestao e, pois, a de que, no essencial e em uma interpretacao
suficientemente flexivel, a lei dos tres estagios se sustenta. No que se segue pretendo ir urn pouco alem, entrando em detalhes sobre a medida e a maneira como as concepcoes filosoficas poderiam ser explicadas a partir da descricao comteana do estagio metaffsico.
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4. APROFUNDAMENTOS E APLICA~Ao METAFILOSOFICA DA LEI DOS TRES ESTAGIOS
Comecando com 0 estagio teol6gico, parece evidente que a mais prirnitiva ou originaria forma de explicacao dos fenomenos baseia-se em uma concepcao anirnista de suas causas, resultante de uma projecao de caracteristicas pr6prias dos seres humanos no mundo extemo. Sem diivida, para os povos ditos primitivos, catastrofes naturais, pestes, uma boa ou rna colheita, tudo era explicado pela intervencao dos deuses. Isso epatente na rnitologia grega e em urn poema epico bern conhecido como a llfada: quando 0 dardo de Aquiles nao acerta oadversario, nao esua a irrisao; eque algum deus do partido oposto interferiu, segurando 0 dardo
no ar e desviando-o de seu alvo.
Urn ponto a ser notado, entretanto, eque 0 estagio teol6gico possui funcoes bern mais amp las do que a de preparar 0 carninho para 0 aparecimento da ciencia, Ap6s Comte, outros pensadores tomaram mais claras as funcoes sociais e, digamos, psicol6gico-afetivas da religiao. Do lado psicoI6gico-afetivo, ha a funcao de dirninuir a enorme inseguranca
individual e coletiva que a aquisicao da consciencia de ser urn animal mortal, vivendo em urn mundo ameacador que encerra perigos constantes, sobre os quais ele nao possui 0 menor controle, deve ter suscitado no ser humano; a religiao dirninui essa inseguranca, sugerindo que as limitacoes da condicao humana possam ser superadas pela troca de favores com 0 Deus ou os deuses, entre eles a sobrevivencia apr6pria morte (Freud). Do lado sociol6gico, ha a funcao de garantir 0 funcionamento
e a preservacao de comunidades sociais, na medida em que a divindade comum reforcaria os vinculos sociais, unificando os membros
de uma comunidade em tomo de valores, obrigacoes e ideais comuns
(Durkheim)... 0 que Comte salientou foi, portanto, apenas 0 papel psicol6gico-cognitivo da crenca religiosa, 0 de estabelecer uma maneira de conceber 0 mundo ao nosso redor, a qual seja capaz de organiza-lo e explica-lo, ainda que s6 na aparencia,
o ponto mais importante a ser esclarecido e0 da natureza dos agentes causais sobrenaturais referidos no estagio teol6gico. De manei70
ra geral podemos caracteriza-los como possuindo uma natureza mental, mas em urn sentido hipostasiado, i.e., como uma ficciio falsamente considerada
como real. Para se entender melhor em que consiste 0 que queremos chamar de hipostasia do mental, podemos caracteriza-la de modo suficientemente generico pela atribuicao as entidades hipostasiadas de certas supostaspropriedades, que podem resumir-se em:
(i)
a propriedade de serem hipennentais, no sentido de que seus poderes mentais sao alterados e/ou potencializados, freqtientemente ao infmito;
(ii)
a propriedade de serem mentais-transcendentes, no sentido de que se trata de mentes geralmente consideradas como existindo independentemente
do mundo ffsico-material.
Assim, as divindades e fatores anfrnico-magicos, resultantes de projecoes antropomorficas, podem ser por nos entendidas em termos de uma alteracao e potencializacao do mental, alern de sua transcendentalizacao com relacao ao ffsico; e 0 mental que, projetado, passa a possuir funcoes magicas, que devem ir alem do que conhecemos da ordem natural.
Ha, por fim, ainda uma outra propriedade que pode ser util na caracterizacao:
(iii) a propriedade de serem hiperfisicas, ou seja, fisicamente alteradas e/ou potencializadas, ou de deterem poderes hiperffsicos.
Do mesmo modo que a hipermentalidade e uma hipostasia do mental, a hiperfisicalidade e a hipostasia do ffsico, Introduzo essa ultima
categoria em parte com 0 objetivo de contemplar a ideia de filosofos materialistas, como Epicuro e Hobbes, que supunham serem os deuses ou 0 Deus constituidos de uma tenue e indestrutivel forma de materia. Enquanto entidades fisicas, ou pela sua forma de interacao com 0 mundo
ffsico, esses agentes tambem podem ser hipostasiados, desta vez como sendo hiperfisicos, no sentido de que suas naturezas e acoes ffsicas sao alteradas e/ou potencializadas, por serem e por realizarem algo que esta
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fora e alem daquilo que a natureza fisica, inclusive a do ser humano, e e e capaz de fazer.
Epreciso notar que, embora uma mesma propriedade possa ser hiperfisica e tambem hipermental, uma mesma propriedade nao pode certamente ser hiperfisica e mental-transcendente. Nao obstante isso, uma entidade composta de propriedades poderia ter algumas propriedades
hiperffsicas e outras hipermentais e mentais-transcendentes, sem contradicao, A dificuldade encontrada pelo materialismo metaffsico que exclui 0 mental-transcendente, geralmente justificando 0 hipermental pelo hiperfisico, e que, so adrnitindo entidades materiais, e facilmente levado a contradicao quando se obriga a dotar as divindades, nao so de propriedades hiperffsicas, como tambem de propriedades que parecem so poder pertencer ao dorninio iinico do mental-transcendente, tais como as da etemidade e imutabilidade. Com essa limitacao, 0 discurso filosofico
materialista acerca do hiperfisico tende a tomar-se uma especula<;
ao livre acerca da natureza oculta do mundo fisico, coisa que realmente foi feita pelos atornistas antigos (0 que aponta, como em breve veremos, para uma limitacao na ideia de que a especulacao filosofica deva necessariamente
conter elementos antropomorficos),
Consideramos ate agora entidades mentais hipostasiadas. Podemos
tambem considerar as palavras e conceitos que as nomeiam, e que povoam 0 universo do homem prirnitivo. Embora essas palavras e conceitos
objetivem fazer referencia principalmente ao mental hipostasiado (ao hipermental, ao mental-transcendente), como 0 que se tern como modelo efetivamente apresentado aexperiencia e apenas 0 mental e 0 fisico, tal como eles se nos apresentam no mundo em que realmente vivemos, e so indiretamente, atraves de nosso conhecimento de nos mesmos e do mun-: do ffsico, que essa referencia pode ser pretendida e intersubjetivamente aceita, mesmo na falta de bases reais para a sua aceitacao.
As tres categorias que acabamos de introduzir hipermentalidade,
transcendencia do mental e hiperfisicalidade -podem parecer agora uma complicacao superflua. Mas elas evidenciarao a sua utilidade no que se segue, posta que serao usadas na elucidacao da natureza
dos conceitos metaffsicos em geral.
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Consideremos agora 0 estagio metaffsico. Nele ocorre urn afastamento
do antropomorfismo explicito, Mas nao havendo ainda ciencia,
o passo adiante nao encontra urn solo firme que 0 suporte. Entao a explicacao
dos fenomenos passa a depender da suposicao da existencia do que Comte chamou de principios ou essencias ocultas. Apela-se geralmente
a entidades e principios metafisicos ambiguos, de urn lado sendo como se pertencessem a ordem natural, mas de outro comportando-se misteriosamente, como se mantivessem ainda algo dos atributos das projecoes antropomorficas do estagio anterior. Ao exemplificar, Comte costumava ter em mente forcas, atracoes e repulsoes, que eram tidas como principios, referindo-se geralmente a formas de pseudo-ciencia imediatamente anteriores as ciencias, e de modo apenas alusivo a metafisica tradicional (provavelmente por desconhece-la e subestimala).
Contudo teria sido muito mais interessante se ele tivesse dado maior atencao a uma analise dos principios explicativos nao-observaveis que a metaffsica tradicional postula, pois esses seriam os principios ou essencias
mais caracteristicos do estagio metaffsico,
Tentemos, pois, estender as sugestoes de Comte aos conceitos e principios que caracterizaram grande parte da filosofia tradicional. No que conceme a cultura, e muito claro que na civilizacao ocidental 0 estagio metaffsico teve as suas primeiras manifestacoes entre os filosofos
pre-socraticos. Foram eles que, insatisfeitos com as explicacoes mitologicas,
substituiram os Deuses por entidades que deveriam atuar como principios iiltimos -entidades que, tal como eles 0 entenderam inicialmente,
eram entidades que deveriam reger a origem e 0 fim das coisas, alem de sustenta-las em seu ser". Quais as razoes dessa substituicao? Ao que parece, com 0 aciimulo de novos conhecimentos empiricos e tecnicos, com 0 desenvolvimento fragmentario de explicacoes cientfficas,
com a relativizacao das crencas proveniente do contato com outras culturas, as explicacoes com base na vontade dos deuses perderam 0 poder de conviccao entre os pensadores gregos, enquanto, por outro lado,
14 G. Reale: Historia da Filosofia Antiga, Sao Paulo (trad. port. ed. Loyola) 1993, vol. I, p. 48.
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faltava em quase todos os dornfnios a possibilidade de se recorrer a explicacoes
que possuissem urn verdadeiro poder explicativo e preditivo, tal como ocorre na ciencia. Ora, embora nao se podendo saber como as coisas realmente sao, esempre possivel tentar saber como em geral elas poderiam ser. Assim, movidos principalmente pela curiosidade intelectual,
esses primeiros filosofos tentaram, seguindo 0 modo de constitui~
ao das explicacoes naturalistas, instaurar algum princfpio necessariamente
vago e obscuro, de fato so alcancavel pela intuicao filosofica bern direcionada. Tal princfpio econcebido como a suposta base explicativa para os fenomenos, uma base explicativa em si mesma talvez inescrutavel, Com esse fim, esses filosofos recorreram inicialmente a entidades observaveis, como a agua, 0 fogo, 0 ar, tomando-as como princfpios; mas logo eles os substituiram por princfpios inobservaveis, como 0 infinito,
0 mimero, 0 ser, os atomos, estabelecendo com isso urn modelo de explicacao queeimportante porque foi de urn ou de outro modo repetido
em toda a tradicao filosofica.
Comte sugere que uma analise dos conceitos metafisicos evidencia
que eles dependem, para se fazer inteligiveis, da ambiguidade incoerente acima aludida (razao pela qual ele chama tais princfpios de equivocos ou contraditorios), Fixando algumas distincoes, podemos dizer
que esses conceitos metaffsicos referem-se a entidades metafisicas e aos seus modos de aciio, ou seja, a sua atuacao como principios. No que concerne as entidades referidas por tais conceitos, elas precisam em geral representar algo que deve ficar a meio caminho entre entidades animicas hipostasiadas e entidades naturais, sejam elas fisicas ou mentais -as iiltimas sendo entidades admitidas pelo senso comum (como estados mentais, no ultimo caso, e eventos fisicos observaveis, no primeiro) ou justificadamente postuladas pela ciencia (como mentes, disposicoes, atitudes etc., estudadas pela psicologia cientffica, e corpusculos e ondas,
estudados pela fisica). Enquanto tais conceitos referem-se tambem a principios de aciio, ou seja, a modos de acao ligados as entidades por eles referidas, os referidos princfpios devem encontrar-se a meio caminho
entre a actio de entidades animicas hipostasiadas e formas de causadio natural, a serem explicadas pela lei cientifica. Sob uma perspectiva
referencial, tais entidades e princfpios, ou entidades-princfpios, sao
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certamente ficcoes incapazes de se dar a experiencia, so podendo 0 discurso
acerca delas ser tornado intersubjetivo na medida que os conceitos
metafisicos a elas referentes, da mesma forma que os conceitos das divindades transcendentes, forem construidos de maneira indireta, por metaforas ou analogias irresgataveis, feitas do material semantico retirado
do conhecimento que temos do mental e do fisico tal como habitualmente
os experienciamos. A inaceitabilidade cientifica dessas entidades
e principios nao repousa, porem, em sua inexperienciabilidade. Se fosse so isso, essas entidades e principios poderiam adquirir urn status similar, digamos, ao dos corpusculos e ondas descritos pela microfisica. Ocorre que essas entidades e principios sao ficcoes que, ao contrario de entidades postuladas pela ciencia, nao possuem poder explicativo ou preditivo capaz de legitimar a sua postulacao: elas se assemelham mais ao eter da ffsica classica ou ao flogisto da quimica pre-Lavoisieur do que, digamos, as particulas subatomicas, A questao nao e, pois, a da irresgatabilidade das metaforas, mas a de sua utilidade em termos de poder explicativo e preditivo.
Para fazer jus a ambigUidade essencial dos conceitos metafisicos, podemos recorrer, pois, a urn duplo conjunto de caracteristicas identificadoras. De urn lado, consideraremos:
(a) As categorias empregadas na caracterizacao das divindades, com a suposta referencia do conceito metafisico ao dominio do mental, entendido como mental-transcendente (i.e. do mental pretensamente transcendente, como se admite quando
se recorre a divindade), ao hipermental (i.e., a poderes
mentais transformados), e mesmo ao hiperfisico (i.e., a poderes fisicos que a natureza nao oferece realmente a experiencia),
Do outro lado:
(b) 0 mental-natural e, notadamente, 0 fisico-natural, tal como
se pretende quando se recorre a lei natural.
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Segundo essa perspectiva, 0 conceito metaffsico e uma especie desconfortavel de amalgama, referindo-se em proporcoes variaveis as especies de caracteristica apresentadas em (a) e em (b), ou entao, como veremos, a algo que nem e (a) nem (b), mas que tambern nao pode ser realmente outra coisa.
Essas caracterizacoes mostram a sua utilidade quando consideramos
os exemplos. Consideremos 0 caso da agua como principio explicativo em Tales, 0 primeiro dos filosofos da tradicao ocidental. Ele afirma que 0 principio (a causa, 0 sustento e 0 fim) de tudo e a agua, dando a entender que 0 momenta do principio-agua e vivo e animado; como tudo e penetrado pela agua, tudo e repleto de deuses. Assim, 0 principio-agua e visto nao so como uma entidade fisica natural, mas tarnbem de algum modo hipermental e hiperffsica, se considerarmos 0 naturalismo da escola jonica, a teoria dos quatro elementos etc. Como nao se apela aqui a deuses pessoais, tenta-se ao mesmo tempo uma explicacao
naturalista, que, embora excessivamente vaga para perrnitir cornprovacao pratica, satisfaz nosso desejo de obter compreensao especulativa de como, de urn modo geral, as coisas poderiam ser eventualmente
esclarecidas. Se nao se obtem uma explicacao concreta, ha ao menos a direciio desta, aforma de uma explicacao. Essa ambiguidade dos principios com os quais se tenta a aproximacao de uma explicacao naturalista, geralmente sem se libertar por completo do recurso a explicacao
que se vale de elementos magico-animicos, esta em maior ou menor medida tarnbem presente em outros principios dos filosofos presocraticos,
como, muito claramente, no infinito (apeirons de Anaximandro -que e divino -e no ar de Anaximenes -material do qual as almas sao feitas.
Ainda outro exemplo, importante porque extremamente influente,
e 0 do ser dos filosofos eleatas. Para Parmenides 0 ser, embora pertencendo a physis, so se revela ao pensamento (nousi, devendo pois ser hiperfisico, 0 que seria mais coerente, ou mental-transcendente, 0 que seria mais compreensivel, na medida em que ele e explicitamente concebido como incriado, incorruptivel, perfeito, etemo, possuindo, dessa maneira, algumas caracteristicas do Deus das religi6es monoteistas. Mas
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o Ser parmenidico, ao menos, tambern possui aspectos claramente naturais:
ele e considerado redondo e finito, tal como os objetos que se situam
no espaco, embora aqui tambem em urn sentido hiperfisico, posta que nao se revela aos sentidos, nao sendo encontravel em lugar algum.
Desde os gregos, 0 recurso a certas essencias inobservaveis, as entidades metaffsicas em maior ou menor medida incognoscfveis, que funcionam como princfpios explicativos fundamentais que tendem a ser em alguma medida dotadas de traces antropom6rficos, passou a desempenhar
urn papel fundamental em toda a hist6ria da filosofia ocidental, tendo essa tendencia durado ate 0 infcio de nos so seculo, Em razao disso,
a mesma forma de analise recem sugerida pode ser geralmente aplicada
a outras entidades metaffsicas que agem como princfpios e que povoaram a hist6ria da metaffsica, Esse e 0 caso da ideia do ser em Parmenides, do bem em Platao, da causa primeira de Arist6teles e do assim chamado Deus dos fil6sofos, do Uno plotiniano, do Deus abstrato presente na filosofia medieval e modema, da substiincia-natureza-Deus de Spinoza, da coisa em si kantiana e do eu transcendental, do sujeito absoluto do idealismo alemao, da vontade schopenhaueriana, do indizivel
do primeiro Wittgenstein, e, de forma urn tanto extemporanea, do ser heideggeriano (em muitas passagens substituivel pela palavra 'Deus' sem perda de sentido). Como a lei dos tres estagios deve aplicar-se de forma difusa e tendencial, e como os estagios fatalmente se sobrepoem, que manifestacoes do estagio metaffsico tenham e precisem ter vida tao longa toma-se algo compreensivel,
Como ja foi notado, do ponto de vista referencial, a alusao, mesmo que metaf6rica e equfvoca, ao domfnio do mental e do ffsico naturalmente dados e urn elemento necessario a pr6pria significatividade e compreensibilidade dos conceitos metaffsicos. Considerando isso, uma analise dos conceitos metaffsicos como os acima aludidos nos sugere que eles possam ser apresentados sob duas formas basicas: ada hibride; (forma inflacionada) e ada elusividade (forma deflacionada). No primeiro
caso, 0 conceito metaffsico e mais ou menos rico, referindo-se pretensamente a uma variedade de supostos elementos hipostasiados (mental-transcendentes, hipermentais, hiperfisicos), alern da referencia ao mental e ao ffsico, tal como eles sao habitualmente ou cientificamen77
te conhecidos por nos. Isso eprovavelmente incoerente, problema que se tenta resolver apelando para intuicoes de natureza mais ou menos duvidosa. Isso seria bern exemplificado por conceitos metaffsicos dos filosofos pre-socraticos, como 0 de agua em Tales, cujo momenta e animico, hipermental. No caso da forma elusiva ou deflacionada, pretende-
se resolver a incoerencia pela negacao de que possamos ter acesso
experiencial, mesmo que indireto, aentidade metaffsica cuja existencia
eproposta. Pretende-se assim que 0 conceito metaffsico seja significativo
sem alusao ao nosso conhecimento do ffsico e do mental pertencentes
aordem natural, ainda que isso rigorosamente nao chegue a fazer sentido. 0 exemplo mais notorio a esse respeito e0 conceito kantiano de coisa em si. 0 esquema seguinte resume essa divisao:
Entidades
postuladas:
(a)
Entidades mentais e eventualmente fisicas.concebidas de forma hipostasiada (entidades animicas com atributos divinos etc.) e os seus modos de aciio.
(b)
Entidades ffsicas e eventualmente mentais normalmente aceitas como pertencentes a ordem natural, alem das leis naturais que regem 0 seu comportamento.
HlBRIDOS (inflacionados)
Sao semanticamente dependentes da pretensa designacao dessas entidades.
Sao semanticamente dependentes da designacao dessas entidades.
ELUSIVOS (deflacionados)
Nao devem se-lo.
Nao devem se-lo.
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Urn rapido exame mostra que essa divisao dos conceitos metafisicos em hibridos e elusivos erealmente aplicavel,
Casos de conceitos metafisicos hibridizantes sao 0 da substancia
infinita em Spinoza, que tambern merece 0 nome de Deus, embora nao deva ser sobrenatural; essa substancia etambern natureza, que procede
segundo as leis naturais, nela persistindo, ainda, 0 trace antropom6rfico de se tratar de uma atividade "viva", que se ama a si mesma com urn amor intelectual infinite". Ha tambern 0 caso das ideias platonicas: nao se pretende que elas sejam nem mentais nem ffsicas, mas ao se tentar explica-las recorre-se necessariamente a urn material de rnetaforas e explicacoes que retiram 0 seu sentido da alusao ao fisico e ao mental tal como normalmente sao compreendidos (por exemplo: elas devem ser encontradas em enorme quantidade em urn lugar que nao elugar, 0 hiperuranio, sendo intuidas por uma especie de visao intelectual;
embora sejam somente inteligiveis, delas depende 0 ser das coisas visiveis etc.). 0 mundo das ideias eassim supostamente esclarecido por meio de urn sistema de alus6es ao mundo dos sentidos. Contudo, adiferenca
de outros conceitos introduzidos por analogia, 0 conceito platonico de ideia sempre resistiu a uma explicacao em termos nao-analogicos, e como ha raz6es para se pensar que a sua suposicao seja superflua, M tarnbem razoes para descrer de sua existencia (esse e0 argumento do capitulo 8 deste livro).
Urn conceito metafisico pode certamente fazer referencia mais ao mental ou ao ffsico, como e0 caso do Deus cartesiano, que esumamente
born, como urn Deus pessoal, mas que tern uma funcao de lei ao promover a realidade objetiva de nossas ideias (como 0 Deus dos filosofos
medievais, ele e princfpio metafisico e Deus religioso ao mesmo tempo). Exemplos melhores do que esse (posto que 0 fato do Deus dos fil6sofos ser 0 Deus judaico-cristao e contingente) sao a vontade de Schopenhauer (entendida como constitutiva do mundo noumenico] e as monadas de Leibniz, que hipostasiam essencialmente 0 dominio do psicol6gico
(todas as monadas devem possuir algum grau de consciencia),
15 B.Spinat.a: Et1licu, livroV.prop. 35.
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Do lado oposto, os atomos de Dernocrito e de Epicuro hipostasiam em certa medida 0 dominio do fisico.
Ha tambem lirnites para a construcao de conceitos metafisicos, Eles nao podem pretender designar somente sob uma perspectiva, seja ela hipostasiante (a) ou naturalista (b), sob pena de recair, ou no ponto de vista religioso (perspectiva hipostasiante), ou em uma visao naturalista do mundo,
fisico ou mental, apoiada no senso comum (perspectiva naturalista). No ultimo caso nao teremos mais metafisica no sentido mais caracteristico, mas ainda assim parece que poderiamos ter especulacao filos6fica antecipadora da ciencia, Essa poderia ser, alias, uma raiz oculta da distincao modema entre metafisica e filosofia: a metafisica trabalha mais com conceitos
que combinam a perspectiva hipostasiante e a naturalista (a exemplo de Descartes); ja a filosofia nao metafisica deveria permanecer mais no dominio de uma especulacao naturalista (a exemplo de Locke).
Vejamos agora casos de conceitos metafisicos deflacionados ou elusivos. Tais conceitos sao esvaziados, tanto quanto possivel, de relac;
6escom 0 mundo mental ou fisico. Esse ja era 0 caso do Uno ou Deus plotiniano, que era inefavel, dele nada sendo possivel predicar, a nao ser 0 que ele nao e(0 Uno ploniniano esta na origem da teologia negativa). Semelhante recurso etambern utilizado por Kant com os conceitos intrinsecamente
incognosciveis de coisa em si, do eu transcendental e de todo urn mundo noumenico inacessivel aexperiencia. No seculo xx0 mesmo recurso foi utilizado por Wittgenstein, com 0 conceito do indizivel (que a linguagem apenas "mostra"), e por Heidegger com 0 seu conceito de ser, cujo "misterio" pode ser desvelado, mas nao efetivamente explicado, atraves
de uma metaforica que so os meios da linguagem poetica logram propiciar.
0 recurso a tais nocoes metafisicas deflacionadas evita incoerencias
em seu conteudo, mas ao preco da vacuidade semantica, da esterilidade teorica e da substituicao do argumento pela retorica,
Do que foi considerado parece deixar-se concluir que a filosofia especulativa (ao menos em sua forma tradicional) so tern razao de ser na medida em que ainda nao estiver presente a possibilidade de compreensao
cientifica da natureza, sendo essa falta por ela preenchida pelo recurso
rnistico a entidades animicas hipostasiadas ou pelo recurso
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especulativo ao desconhecido natural, que apenas direciona 0 pensamento.
A mente especulativa manobra sempre no sentido de tentar alcancar,
e em alguns casos de dar a irnpressao (quem sabe nao ilusoria) de ter alcancado, mais do que concretamente e capaz. Diferentemente do que Comte possa ter pensado, essa nao precisa ser uma atividade prirnitiva nem obscurantista: a especulacao metaffsica e como uma aposta em uma situacao na qual pouco ou nada se pode fazer alem de apostar. Sempre e possivel que a aposta seja ganha, que ao menos a direcao apontada seja certa, que as metaforas abram 0 caminho para urn conhecimento
mais seguro, ou que a sua rejeicao nos aponte melhores alternativas.
0 esforco metafisico-especulativo imiscui-se a necessidades psicologicas
do ser humano, como a de dirirnir ansiedades atraves da organizacao
de uma imagem racional do mundo, mas ele responde tambern
-e talvez seja isso 0 que importa -ao exercicio inteiramente legitimo
da curiosidade intelectual propria do ser humano.
Quanto ao ultimo estagio, que marca a instauracao da ciencia positiva, trata-se daquele no qual a explicacao dos fenomenos e feita nao mais pela imaginacao, visando a urn controle da realidade que no fundo e meramente imaginario e que satisfaz necessidades meramente psicologicas, mas pela razao cientffica, que pramove urn controle efetivo sobre a realidade independente de nos. A diferenca entre ciencia e preciencia
e, pois, qualitativa. No caso paradigrnatico da fisica, por exemplo,
temos (sem querer polemizar com 0 clara anti-realismo comteano) a investigacao das medidas de massas, de forcas, de relacoes espaciotemporais
entre elas, da combinacao disso em estruturas (particulas, ondas) cujo comportamento e regulado por leis impessoais... Eo efeito da aplicacao dessas leis nada tern de psicologico, Elas demonstram a sua adequacao ao permitir-nos fazer previsoes suficientemente precisas e objetivas, sejam essas previs6es verdadeiras ou nao; e tais resultados podem ser intersubjetivamente aceitos em urn contexto critico, capaz de prevenir a influencia sub-repticia de interesses ideologicos escusos. 0 poder preditivo ainda e -hoje como sempre -universalmente aceito pelos cientistas como a caracteristica mais marcante da investigacao cientifica.
Que a episternologos da ciencia isso possa nao parecer mais tao
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6bvio deve-se a acumulacao excessiva de contra-argumentos relativizadores, que acabou por turvar 0 born senso de alguns".
Parece licito concluirmos que Comte acertou no atacado -mostrando
a grosse modo 0 que acontece -ainda que tenha errado no varejo -por vezes confundindo, reduzindo e rigidificando 0 processo. Ele errou
ao crer que a sua epoca estaria assistindo aos momentos finais da formacao e ramificacao das ciencias, e esse erro encorajou-o em direcao ao reducionismo sociolatrista que deu ao seu positivismo urn sentido pejorativo, em certa medida merecido. Mas hoje, quando sabemo-nos as portas de urn mundo esclarecido e potencialmente domesticado pela ciencia,
parece que devemos reconhecer em Comte 0 seu mais destacado profeta.
5. A. KENNY: UMA POSI<;Ao ALTERNATIVA
A lei dos tres estagios sugere que ao estagio metafisico deve seguir-se inexoravelmente a ciencia, e que a filosofia (no sentido tradicional
que estivemos considerando) deve esgotar-se na ciencia e na filosofia
da ciencia, Ha fi16sofos, porem, que, mesmo adrnitindo que as ciencias tenham nascido ap6s urn periodo mais ou menos lange de reflexao
filos6fica correspondente, continuam a defender que ao menos certos
dominios da filosofia continuarao para sempre filos6ficos: 0 sol seminal
e tumultuoso de que fala va Austin, embora perdendo grande parte de sua massa original, possui urn micleo que epermanente e irredutivel. Esse e0 caso de A. Kenny, no prefacio de seu livro sobre a filosofia da
16A~bisi:.a. peJaqualaaiticaaorndrnalisrroxretJ:xlqrotmtarelativimraOO1cia,
ami':lIe,a:m:>~Fq:p:r.t:meJa:Wflfd!fb.ddadesemilTqrssili1tixl(U"NcrmalSdfnreand
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Kin.I.icdg:?, Camt:rtJge 1974).Pretroderqueaastrd~ aalquimiaeoCl.mllldeirismo
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mente em Tomas de Aquino, quando tenta justificar a atualidade das reflexoes filos6ficas deste ultimo sobre a natureza e faculdades da mente".
Kenny comeca fazendo algumas observacoes acerca do que distingue
a filosofia da ciencia. Se considerarmos a hist6ria da filosofia, diz ele, podemos dizer que uma disciplina permanece filos6fica enquanto seus conceitos permanecerem nao clarificados e enquanto os seus metodos
forem controversos.,Pode ser verdade que mesmo nas ciencias estabelecidas isso tambem aconteca, "Contudo", prossegue ele, "quando
problemas podem ser colocados de maneira nao ambigua, quando conceitos sao apropriadamente estandartizados, e quando 0 consenso quanto ametodologia de solucao emerge, entao n6s temos uma ciencia independente, mais do que urn ramo da filosofia?". A isso podemos acrescentar que a diferenca basica nao esta somente na falta de consenso
metodologico, mas notadamente na impossibilidade de se chegar a urn consenso quanto aos resultados obtidos: diversamente da ciencia, a filosofia tern urn carater inevitavelmente especulativo, no sentido de que epraticamente impossivel que filosofos cheguem a uma concordancia
acerca da verdade do que quer que seja que considerem merecedor de discussao".
Nesse mesmo texto, Kenny expoe a maneira como para ele a filosofia da luz aciencia: por urn processo que ele chama de parturiciio ou fissiio, Issoeilustradopelaexposicaodo problemado inatismo. 0 problema inicial teria sido: quais de nossas ideias sao inatas e quais sao adquiridas? Essa questao dividiu-se em dois problemas, urn psicologico e outro epistemol6gico. 0 problema psicol6gico era: 0 que devemos a hereditariedade e 0 que devemos ao ambiente? Enquanto 0 problema epistemologico era: quanto de nosso conhecimento ea priori e quanto e a posteriori? A primeira questao foi passada apsicologia experimental, nao pertencendo hoje mais afilosofia. A questao de quanto de nosso
17A Kenny:Aquinas anMind, op. tit 18A Kenny:AquinasanMind,lbid. p. 4.
19C.Fmtira(h;ta:A~qJ.citp.12ess.
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conhecimento e a priori e quanta e a posteriori nao era uma questao acerca da aquisicao, mas acerca dajustificafiio de nosso conhecimento, e isso permaneceu, ao menos inicialmente, no dominio da filosofia. Mas essa ultima questao tambern sofreu urn processo de fissao. Ela subdividiu-
se em urn conjunto de questoes que sao filosoficas e em urn conjunto
de questoes que nao 0 sao. As nocoes filosoficas de urn a priori e de urn a posteriori ramificaram-se e refinaram-se em urn mimero de questoes,
uma delas sendo "quais sao as proposicoes analiticas e quais sao as sinteticas?", sendo dada a nocao de analiticidade (segundo Kenny) uma resposta mais precisa nos termos de 16gica matematica. Restam, todavia,
questoes residuais acerca da natureza e justificacao de verdades analiticas. Comecamos, pois, com uma questao filos6fica inicial confusa,
que no seu esc1arecimento se ramifica, cedendo partes a ciencia e deixando urn residuo a filosofia.
A questao fundamental que Kenny finalmente se coloca e se ao final desse processo nada mais sera deixado para ser abordado pela filosofia;
se todo 0 questionamento nao passara finalmente ao dominio de ciencias independentes. De fato, escreve ele, se lancarmos 0 olhar as obras de Arist6teles, por exemplo, veremos que a grande maioria daqui10
que ele escreveu pertence hoje a disciplinas que nao sao mais consideradas
filos6ficas. Considere-se a fisica, a biologia, a metereologia, que, entendidas como tais, sao hoje materia de hist6ria das ideias e da pre-historia das ciencias. 0 que ainda permanece merecendo estudo filos6fico
e a sua etica, a sua filosofia da mente, a sua metafisica e a sua epistemologia. A pergunta crucial e: sera que tambern essas materias deixarao de pertencer a filosofia?
Kenny acredita que nao. Ele ere que a teoria do significado, a epistemologia, a etica e a metafisica permanecerao para sempre filos6ficas.
Mesmo que novos problemas nao-filosoficos sejam gerados pelo estudo dessas disciplinas para serem resolvidos por intermedio de rnetodos
nao-filosoficos, permanecera sempre urn cerne irredutivel, que somente
a filosofia e capaz de abordar, razao pela qual 0 estudo de urn fil6sofo como Tomas de Aquino continua a valer 0 esforco.
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Kenny nao expoe razoes para essa opiniao. Mas algumas paginas
adiante" ele tenta fundamenta-la indiretamente, ao sugerir uma concepcao
altemativa da natureza da filosofia, diversa da apresentada acirna
e em certa medida oposta a ela. Trata-se da ideia de que a filosofia e algo semelhante a uma forma de arte, e, como tal, produto do genic de alguns individuos excepcionais, Se tal for 0 caso, nao ha progresso em filosofia, nem a questao da passagem da filosofia para a ciencia se coloca:
nesse caso, Kant nao esuperior a Platao, assim como Shakespeare nao esuperior a Homero.
Kenny reconhece 0 exagero dessa concepcao -sem diivida, em praticamente tooos os dominios da filosofia temos hoje muito mais a dizer do que ha alguns seculos, Mesmo assim, ele a considera essencialmente
valida, ao menos com respeito ao que ele chama de res(duo filosofico,
i.e., no tocante as indagacoes metafisicas, epistemologicas, eticas...
Como razao para a adocao dessa concepcao, ele observa que a filosofia em si mesma nao equestao de conhecimento, de aquisicao de novas verdades, mas de compreensiio (understanding), no sentido de ser uma questao de organizaciio do que jaeconhecido. A filosofia deve oferecer 0 que Wittgenstein chamava de iibersichtliche Darstellung: uma representacao sinoptica, capaz de esclarecer e unificar nossa compreensao
das coisas", E isso requer, para Kenny. a intervencao do genic: "A filosofia etao abrangente em seu objeto, tao vasto e0 seu campo de operacao, e a aquisicao de uma visao filos6fica sistematica do conhecimento
humano ealgo tao dificil, que somente uma mente excepcional pode perceber as consequencias mesmo do mais simples argumento filosofico,
quando para nos a maneira que resta para compreender a filosofiaeestudando
algum grande filosofo do passado"."
Se Kenny esta certo, entao a lei dos tres estagios, ao menos no que ela diz acerca da passagem do estagio metafisico para 0 estagio cientifico,
eessencialmente incorreta: 0 que a filosofia perde para a ciencia e
~ A Kenny: AquinasmMind. cpo cit p. 9.
2\ 1..Wittgens1:ein: ~Unte1sl.xtJungeFrankfi..nt 1976.vd. 1.sec. 122.
22A Kenny:AquinasmMind, cpo cit. p. 9.
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apenas aquilo que nunca the pertenceu legitimamente -nao 0 seu ceme irredutivel,
6. CONCLUSOES
Quero finalizar com algumas objecoes urn tanto ceticas a respeito
do que Kenny quis sugerir.
Primeiro: e prima facie arbitrario -ao menos enquanto nao nos forem apresentadas boas razoes para tal -que se considere a teoria do significado, a epistemologia, a etica e a metaffsica, como formando urn ceme irredutivel aciencia, Epreciso notar 0 quanto elas se distinguem entre si. A teoria do significado e (como a teoria da verdade, dos nomes proprios etc.), apenas parte da filosofia da linguagem. Ja a metaffsica nao e uma area da filosofia no mesmo sentido da anterior: em seu sentido
mais difundido, 'metaffsica' eo nome que damos a uma investigacao especulativa acerca da natureza ultima da realidade, ou seja, acerca da fundarnentacao "ultima" dos objetos de nossa investigacao, Tal investigacao
atravessa praticamente todas as areas filosoficas, pois em todas elas podemos apresentar questoes e respostas metaffsicas, relativas aos seus fundamentos. Assim, metaffsica nao e so uma teoria geral dos universais,
mas pode ser tambem uma filosofia da natureza; a filosofia da religiao e essencialmente metaffsica; a filosofia dos valores baseia-se em decisoes metaffsicas; questoes de filosofia da historia, de filosofia social, como a da liberdade etc. -tudo 0 que e filosofico tern a sua metaffsica, Ecerto que em domfnios definidos do conhecimento, como na ciencia, sendo os fundamentos bern definidos, nao ha lugar para a sua investigacao metaffsica. Mas 0 mesmo nao acontece com as diversas areas da filosofia, que por nao terem fundamentos consensualmente aceitos
demandam intrinsecamente a especulacao metaffsica. Dai a sugestao
de que a recfproca seja verdadeira: a filosofia como metaffsica, para existir, tambem demanda a existencia da filosofia que nao e metaffsica, devendo desaparecer com 0 desaparecimento da ultima.
Everdade que, entre outras, a filosofia da linguagem, a ontologia, a etica e a epistemologia permanecem como dominios centrais da
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atividade filos6fica. Mas urn defensor da completa absorcao da filosofia pela ciencia din} que isso reflete apenas 0 estado atual da filosotia e das ciencias, Filosofos de outras epocas tenderiam a incluir no cerne irredutivel coisas diversas daquilo que Kenny esta disposto a incluir, e isso expoe 0 casuismo de sua escolha.
Tambem devemos notar que mesmo que a filosotia possa ser considerada em certa medida semelhante aarte, isso nao serve de objecao contra 0 seu suposto carater protocientifico. Se a metafisica eessencialmente
produto do raciocinio orientado pela imaginacao, entao ela deve ter tambem uma funcao que se assemelhe ada obra de arte, como a de nao possuir urn tim fora de si mesma, a de produzir urn prazer desinteressado
etc. Ela se distingue da arte por ter uma preocupacao com a verdade e com uma resposta racional a questoes fundamentais.
Por fim, quanto aideia de que a filosotia e, em seu cerne, questao
de entendimento, interpretado como organizacao do que ja sabemos, devemos notar que essa euma ideia inspirada em Wittgenstein enos fil6sofos da linguagem ordinaria, os quais compreenderam a filosofia em termos de analise ou elucidacao conceitual. Podemos perguntar em que medida isso e lfcito; em que medida, atinal, precisamos organizar 0 que ja sabemos, se 0 pr6prio saber ja e, em si mesmo, organizacao conceitual? Ese essa organizacao e apenas explicitacao de uma organizacao
ja implicitamente presente em nossos habitos lingufsticos ordinarios,
como muitas vezes se pretende, por que razao ela nao pode vir a ser feita pelo pr6prio homem de ciencia, da mesma forma que a organiza~
ao da gramatica de uma lfngua e feita pelos gramaticos? E por que razao devemos supor que essa explicitacao nao possa chegar a urn tim? AMmdisso, a ideia da analise conceitual carece de limites distintos: em que sentido podemos dizer que Arist6teles analisou 0 conceito de movimento,
mas nao que Einstein analisou 0 conceito de simultaneidade?
Falta, a vaga proposta de Kenny, urn desenvolvimento que a torne convincente. Faltam, pois, razoes que nos impecam de chegar a conclusao de que mesmo as areas mais nobres da filosotia nao estao imunes apossibilidade de se tornarem cientificas. Pode ser que essas areas s6 tenham ate agora permanecido filos6ticas porque tratam de pro87
blemas excepcionalmente complexos, apelando para niveis variados de abstracao e pertencendo a uma variedade de dominios que se inter-reIacionam
de tal maneira que considera-Ios passa a demandar urn trabalho reflexivo particularmente amplo e elaborado -mas isso nao significa que, com a ampliacao dos dominios cientificos, 0 trabalho correspondente
nao possa deixar aos poucos de ser especulativo para seguir os mesmos rumos da ciencia,
Na verdade, eassim que outros filosofos contemporaneos veem a questao. Eis 0 que afirma 0 epistemologo Keith Lehrer acerca da sua especialidade: "Nos sustentamos que a afirmacao de uma distincao entre
filosofia e ciencia teorica efalsa, tanto historica quanta sistematicamente.
Historicamente, eclaroqueasciencias especiaisseparam-seda filosofia quando alguma teoria emerge tratando de urn objeto circunscrito
de uma maneira precisa e satisfatoria. A filosofia permanece como
o pote residual de problemas intelectuais irresolvidos. Atualmente, teorias
do conhecimento ainda permanecem no pote. Nao queremos afirmar
que 0 presente estudo ou outra pesquisa recente nos tenha levado ao ponto onde a teoria do conhecimento possa ser depurada em uma ciencia
especial, mas esperamos que estejamos nos aproximando dessa meta mais do que alguns suspeitam e outros receiam."23
Caso K. Lehrer e, em sua essencia, a intuicao comteana de que a especulacao filosofica pertence a urn estagio intermediario do desenvolvimento
do saber humano estejam com a verdade, outras questoes se colocarao. Uma delas seria a de se saber se nao havera urn fim tambem para a propria ciencia e, conseqiientemente, para 0 proprio exercicio do espirito de investigacao, Uma outra questao -mais proxima de nossa problematica -seria a de se saber que forma tomarao os dominios cientificos
que acabarao por se desenvolver como continuacao da atual epistemologia, da teoria do significado, da etica... Tratar-se-a de alguma coisa fragmentaria, de uma multiplicidade de teorias localizadas, respondendo
a questoes especificas e separaveis entre si, ou de algo mais
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abrangente, constituido talvez por uma grande multiplicidade de teorias interdependentes entre si, formando em sua totalidade urn extraordinariamente
complexo sistema conceitual, uma teorizacao holistica de dificil
apreensao, na medida em que cada parte seria urn elemento necessario
aadequada compreensao do todo? S6 no ultimo caso podemos ter a esperanca de que a grandeza do pensamento filosofico tradicional -no sentido dado por Kenny de urn saber abrangente -permaneca de alguma forma preservada. Ainda assim, parece que nao teriamos mais filosofia, ao menos no sentido tradicional e predominante da palavra.
Sem duvida, tudo isso pode soar desalentadoramente cetico aos ouvidos dos cultores da filosofia, mais do que aos filosofos, Soa como se serrassemos 0 galho sobre 0 qual estamos sentados. Minha opiniao, contudo, ea de que emelhor que seja assim. A metafisica tradicional, ainda que possa conter insights duradouros, cuja importancia dificilmente
pode ser exagerada, ainda que tenha sido e que certamente ainda seja capaz de inspirar e orientar novas pesquisas, de fato em certa medida
tambem existiu como uma especulacao melancolica e enganadora uma
maneira de "ocultar desertos", no dizer critico de Nietzsche. Nessa medida e aliando-se areligiao, ela nao serviu apenas para saciar a curiosidade
especulativa, mas tambem como forma de consolo para 0 espirito
humano em urn mundo de ignorancia e de carencia, Ja em urn mundo esclarecido pela ciencia e domesticado pelos meios da tecnica, a especulacao destinada a confortar 0 espfrito atraves da ilusao tenderia a tornar-se urn injustificado anacronismo.


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