sábado, 24 de julho de 2010

1952 - HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Revista Contracampo - n.2

ISSN:1414-7483


Comunicação, história, filosofia

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Luis Costa Lima – PUC/RJ



A maneira mais direta de abordar o tema desta palestra consistiria em um exame das inter-relações entre comunicação, história e filosofia. Este exame observaria qual a especificidade de cada uma, assinalando suas divergências e convergências. Assim, se para a comunicação o específico consistiria na ênfase no relacionamento entre os meios emissor e receptor, daí no aparato técnico e socioeconômico que cerca cada um desses meios, suas possibilidades e condicionamentos, visando-se, por fim, estabelecer o sistema peculiar dos media, em certo lugar e tempo, se para a história o específico estaria nas manutenções e mudanças ocorridas, na escala do tempo, em um objeto histórico de tamanho variável - uma vida, uma instituição, uma nação, uma época ou mesmo uma longue durée, já para a filosofia o empenho específico estaria na reflexão compreensiva do Ser e do Estar, do sentido, não-sentido ou da possibilidade de fazer-se sentido com o mundo e a criatura humana.

Ao escrever esta primeira formulação, percebi que o que me parecera a maneira mais direta de abordagem na verdade imporia ou um desfile de generalidades ou tamanha abstração que, no primeiro caso, o tédio logo se instalaria e, no segundo, a interação desejada com o público quase de imediato seria rompida. Fui então forçado a optar por outro caminho. Tratarei de apresentar a descrição esquemática de um quadro, La Tempestà, do renascentista veneziano Giorgione (ca. 1477 - 1510), para que, a partir de um solo concreto, possa vir a meu tema. Em nossa descrição, estará evidente a influência da leitura de um ensaio de Louis Marin, Les fins de l’interprétation, ou les traversées du regard dans le sublime d’une tempête, originalmente publicado em 1981 e há pouco reeditado (in De la représentation, 1994).

Duas cenas integram o quadro. A primeira, no plano de fundo, apresenta a vista de uma cidade, que se estenderia para aquém do quadro, coberta pelo clarão de um relâmpago. Todas as portas estão cerradas, assim como o parapeito da construção à direita, próxima à ponte, não mostra vivalma. O único ser vivo na cidade é o pássaro, que, sobre a construção referida, indiferente, aguarda a tempestade. Menos distante do plano de fundo, uma ponte atravessa o rio, cujas águas se escurecem com a sombra projetada pelo plano e pelas pilastras da ponte. Pelo ângulo com que são vistas, na extremidade direita, as pilastras se desdobram em duas. As sombras aí concentradas inquietam a espera. Mas há uma espera? O que equivale a perguntar: há bem uma tempestade que se precipita, no bojo da qual a ausência de criaturas humanas indicaria seu receio e busca de proteção ou, como se pergunta Marin, não seriam os sinais da tempestade “a armadilha do quadro, a armadilha que defende seu segredo?” (Marin, L: 1981, 195).

Adiante da ponte, sobre as margens, troncos e folhagens preparam o primeiro plano. Mas as margens não são idênticas. À esquerda, a construção mediana ao quadro figura uma cabeça colossal e petrificada, assinalada por dois olhos, sobrancelha e nariz descomunais. Um pouco à frente, quase no centro, duas colunas cilíndricas e quebradas se apóiam em um pedestal em ruínas. Na emblemática renascentista, dizia o crítico de arte Edgar Wind em seu livro dedicado ao quadro, “uma coluna quebrada era um emblema corrente da Fortezza”. Mais não seria importante considerar que aqui se trata de dupla coluna, em sua duplicidade relacionada com a dupla pilastra próxima à maior concentração das sombras no rio e com os olhos pétreos da construção à esquerda? Essa figuração do duplo sentido de fortaleza, construção militar e capacidade humana de resistência? E não seria essa ambigüidade a base constitutiva do próprio quadro? Antes de indagá-lo, cabe perguntar: de que duplo se trata? Que sentido poderia ter ele?

Antes de enfrentar as interrogações e como maneira de prepará-las notemos que a inquietação provocada pela tempestade e aumentada pelas sombras projetadas pela ponte ainda crescerá ao virmos ao primeiro plano.

Duas figuras a constituem. À esquerda, um soldado monta guarda. Ele olha para o promontório da outra margem, onde uma mulher semidesnuda amamenta seu filho. Ele a olha mas não é por ela visto. Da mesma maneira, a mulher olha para diante do quadro e assinala o lugar em que se situa a mirada do espectador. Como escrevia Marin: “[...] Eu que não sou representado por e no quadro, eis-me visto por uma de suas figuras, enquanto que o homem, na extrema esquerda, na interminável presença do quadro, é invisível à mulher à direita [...]. Neste jogo de olhares a três, há assim sempre um terceiro invisível aos dois outros” (Marin, L.: idem, 188). O soldado que vê e não é visto (pelo espectador) é o “representante da representação” (Marin), ao passo que a mulher é a “figura de reflexão que é o próprio quadro” (Marin, L.: idem, ibidem).

É essa troca de olhares que não se encontram, nesse desencontro em que há sempre um terceiro invisível, que devemos enfatizar. Encontro e simultâneo desencontro, o visível (o representado) que encaminha para o invisível (o espectador) e o invisível que é assinalado pelo visível. Eis o duplo que se tematiza.

Será então justo dizer-se que a pintura é “este dispositivo de inscrição da pulsão de ver” (Marin, L.: ib., 190), desde que se tenha o cuidado de acrescentar o que ainda deriva da descrição do quadro: pulsão de ver que, não se vendo a si própria, implica a interminabilidade da interpretação, ou seja, o seu constante fracasso. Pois que é a interpretação senão o ver pelo intérprete da representação-apresentação de um texto, pictórico, verbal ou musical, que o prevê e não determina o intérprete, que o inclui e exclui?

Derivam daí três conseqüências: (a) a interpretação é uma necessidade que, entretanto, não se esgota. Conhecer este seu estatuto é indispensável para que ela não seja tida como parte de alguma ciência particular, pois é próprio de uma ciência, ao menos das chamadas ciências “duras”, pretender esgotar seu objeto, apreender sua estrutura. Isso, de sua parte, nos leva à primeira caracterização do objeto de arte: (b) seu fascínio é dependente da pluralidade inexaurível de seu texto. Dessa segunda conseqüência é extraível uma terceira: (c) a inexauribilidade de sentidos que caracteriza o objeto de arte vivo o diferencia do mistério, situação em que ele seria o correspondente leigo do segredo religioso. E isso porque, enquanto o mistério supõe a indecifrabilidade de desígnios de uma divindade, a inexauribilidade do sentido da arte viva significa apenas que a arte configura um discurso não dotado de uma dimensão semântica última, definida e estabilizadora. Quando esta existe, a interpretação não é uma necessidade que inevitavelmente fracassa; ao contrário, ela se torna algo que tem êxito à medida que atinge o núcleo final de seu objeto.

As conseqüências há pouco extraídas nos permitem agora dizer que a arte caminha no sentido oposto ao da ciência, cuja eficácia deriva da redução da complexidade do objeto ou fenômeno e na apreensão do código ou da lei que o subsume em uma generalidade.

O exemplo da arte parece então digno de ser considerado no momento em que nos encontramos. Não se trata de tomá-la com esteio contra a ciência, de então converter a arte no meio de resistência contra a tecnologização do planeta. Fazê-lo seria uma ingenuidade atroz e inconseqüente. Trata-se sim de mostrar que, na indagação do homem e do mundo, precisamos saber contar com o modelo de discurso que indica os limites da ciência. Que dele precisamos seja porque o mundo é mais complexo do que as técnicas de lidar com ele, seja porque, como no começo de nosso século já mostrava Weber, a ciência não dá sentido aos objetos que manipula. O desencanto do mundo que ela opera afetou de início o próprio sentido religioso das cosmovisões pré-modernas. A liberdade que tal desencanto implica significa o esvaziamento da proibição que cerca os mistérios, em cujas fronteiras se lê a interdição: “sobre isso não indagarás”. Mas essa liberdade se converte em banalidade e ignorância quando supomos que ela é em todos os campos passível de instrumentalidade, i.e., de descoberta dos códigos, leis e normas a que todos os objetos estariam subordinados. A ciência tem um limite vertical - ela não constitui sentido, no máximo já supõe um sentido que privilegia certos objetos ou estados. Assim, por exemplo, a medicina já supõe que a vida tem sentido e que, portanto, é precioso preservá-la, não lhe cabendo indagar-se quando este sentido não tem sentido. E tem ainda um limite horizontal: ainda que haja ciências estabelecidas sobre a arte, não há uma ciência da arte. Se houvesse, a interpretação da arte se submeteria a normas e não seria inexaurível.

Isso posto, que podemos agora dizer sobre o que deveria ter sido o tema de nossa palestra? A identificação da história e, mais recentemente, da comunicação social como disciplinas tem dependido de serem elas entendidas com práticas científicas. (Afirmar o contrário pareceria, ao menos do ponto de vista das instituições de fomento à pesquisa, desqualificá-las). Não dizemos que o afã de cientifizá-las seja errado, senão que não dá conta de seus objetos. Pois, para que fossem disciplinas científicas, seria preciso que seus objetos tivessem uma homogeneidade semelhante ao das ciências “duras”. Portanto que esses objetos fossem passíveis de um puro tratamento quantitativo. Pois, voltando uma última vez ao exemplo da arte, o fracasso a que toda interpretação do objeto de arte está votado não significa outra coisa senão a constatação da resistência da qualidade desse objeto às propostas de quantificação. Ou seja, no caso das ciências humanas, às propostas de explicá-lo pelo exame de seus condicionamentos histórico-sociais, julgados determinantes, i.e., suficientes para explicá-lo. Isso, conforme se dizia acima, não significa confundi-la com o culto do mistério. Essa resistência da qualidade, própria ao objeto da arte, não só a singulariza como é passível de dar outro sentido à própria atividade científica: ao mostrar para o cientista o limite de sua indagação, não só rompe com a ingenuidade dos que se contentam com a quantificação, como o estimula a procurar novas formas de tratamento de seus objetos. Assim o inevitável fracasso da interpretação deixa de se confundir com uma marca negativa.

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