sábado, 24 de julho de 2010

1945 - HISTÓRIA DA FILOSOFIA

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CECÍLIA HELENA VECHIATTO DOS SANTOS
HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NOS
LIVROS DIDÁTICOS DE BIOLOGIA DO ENSINO
MÉDIO: ANÁLISE DO CONTEÚDO SOBRE A
ORIGEM DA VIDA
LONDRINA - PR
2006
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CECÍLIA HELENA VECHIATTO DOS SANTOS
HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NOS
LIVROS DIDÁTICOS DE BIOLOGIA DO ENSINO
MÉDIO: ANÁLISE DO CONTEÚDO SOBRE A
ORIGEM DA VIDA
Dissertação apresentada ao curso de
Mestrado em Ensino de Ciências e
Educação Matemática, da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Rodrigues da
Silva.
LONDRINA - PR
2006
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CECÍLIA HELENA VECHIATTO DOS SANTOS
HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NOS
LIVROS DIDÁTICOS DE BIOLOGIA DO ENSINO
MÉDIO: ANÁLISE DO CONTEÚDO SOBRE A
ORIGEM DA VIDA
Dissertação apresentada ao curso de
Mestrado em Ensino de Ciências e
Educação Matemática, da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Marcos Rodrigues da Silva
Universidade Estadual de Londrina
________________________________________
Prof. Dr. Álvaro Lorencini Júnior
Universidade Estadual de Londrina
________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Salles de Oliveira Barra
Universidade Federal do Paraná
Londrina, 01 de setembro de 2006.
3
DEDICATÓRIA
A minha família.
4
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a tantas pessoas, mas não haveria espaço para nomear a
todos, portanto, agradeço:
A Deus, pela saúde, sabedoria e perseverança que me foi dada ao longo desta vida;
Ao Professor, Filósofo e Doutor Marcos Rodrigues da Silva, pela atenção,
credibilidade e magnífica orientação;
Aos meus familiares que me incentivaram e me deram apoio para que eu chegasse
aonde cheguei, em especial, ao Renato, Carlos Renato e Ana Maria, que sempre
torceram pelo meu sucesso e que muitas vezes ficaram sem a atenção merecida
pelo tempo que me dediquei à pesquisa;
Aos meus pais e irmãos que são os espelhos da minha vida;
Ao Professor e Doutor Álvaro Lorencini Júnior, pelo carinho, amizade e
entusiasmo, pelas sugestões e boa vontade em compor a banca examinadora desta
Dissertação;
Ao Professor e Doutor Rogério Fernandes de Souza, pela atenção, valiosas
sugestões, boa vontade e disponibilidade de participar no Exame de qualificação;
Ao Professor e Doutor Eduardo Salles de Oliveira Barra, pelo carinho, atenção,
boa vontade e disponibilidade em compor a banca examinadora desta Dissertação;
Aos professores do mestrado que tive a grata satisfação de encontrar ao longo
desse tempo;
Aos autores, em que fui buscar referências para realizar este trabalho,
especialmente ao Dimas pela atenção e carinho;
Aos autores dos Livros Didáticos que, sem seus livros não seria possível realizar
este estudo;
Aos amigos deste curso de mestrado, especialmente ao Zenf, Marli, Nanci e
Virgínia, pelas preciosas sugestões e incentivo na realização desta pesquisa, aos
quais tive a grata satisfação em conhecê-los no decorrer desta jornada;
A todos meus amigos, especialmente à minha amiga Sandra, pelas palavras de
otimismo, sabedoria e carinho em todos os momentos ao longo desta caminhada; a
Marilane pela torcida, pelo carinho e incentivo para a realização de mais esta etapa
da minha vida.
5
“Acredite sempre em você, a força maior e as
respostas para suas perguntas estão dentro
do seu interior”.
C. J. Pereira
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SANTOS, Cecília Helena Vechiatto dos. História e Filosofia da Ciência nos Livros
Didáticos de Biologia do Ensino Médio: Análise do conteúdo sobre a Origem
da Vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Educação
Matemática) - Universidade Estadual de Londrina, PR.
RESUMO
Este estudo tem como principal objetivo analisar a história da ciência que está sendo
apresentada nos livros didáticos de Biologia do ensino médio. A proposta da
inserção da história e filosofia da ciência (HFC) nos livros didáticos se baseia no
princípio que, o livro didático, enquanto ferramenta acessível e utilizada tanto pelos
professores quanto pelos alunos, é ainda muito útil. Portanto, devido a sua ampla
utilização e elemento fundamental pedagógico, o livro didático necessita ser de boa
qualidade. Desse modo, as nossas investigações partem dos seguintes
questionamentos: a) A história da ciência está presente nos livros didáticos, como
ela está sendo apresentada? b) A forma pela qual a história da ciência aparece nos
livros didáticos é considerada adequada para um ensino de boa qualidade? c) Como
a história da ciência vem sendo utilizada, uma vez que ela pode ser um excelente
recurso pedagógico? Para responder essas questões, o presente estudo buscou
auxílio nas idéias de um filósofo da ciência Thomas Kuhn, o qual serviu de alicerce
para o desenvolvimento desta pesquisa. Os subsídios que encontramos nos estudos
de Kuhn foram reforçados por um estudioso em ensino de ciências, Michael
Matthews. Com esses dois referenciais teóricos, Kuhn e Matthews foi possível
realizar um estudo de caso sobre a história da ciência nos livros didáticos. Para a
realização deste estudo de caso, analisamos 4 (quatro) livros didáticos de Biologia
do ensino médio. O assunto escolhido para a análise desta pesquisa foi o problema
da origem da vida, pois é um assunto que se encontra na maioria dos livros didáticos
e que também aborda dois paradigmas: abiogênese e biogênese. Para esse estudo
de caso, foi realizada uma associação entre as idéias dos nossos principais
referenciais Kuhn e Matthews, com a reconstrução histórica do problema da origem
da vida. Estas associações foram convertidas em algumas categorias, a saber:
linearidade; ciência normal; paradigma; quebra-cabeça e relação teoria/experimento.
A partir dos resultados obtidos procuramos mapear as formas pelas quais a história
e a filosofia da ciência se encontram presentes nos livros didáticos, bem como o
modo de sua estruturação.
Palavras-chave: Ensino de ciências – Livros didáticos de Biologia – História e
filosofia da ciência.
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SANTOS, Cecília Helena Vechiatto dos. History and Philosophy of Science in
Text-Books of Biology of High School: Analysis of the Content on the Origin of
Life. 2006. Dissertation (Master’s Degree in Science Teaching and Mathmatics
Education) – Universidade Estadual de Londrina – PR.
ABSTRACT
This study has as main objective to analyze the history of Science that is being
presented in the text-books of Biology of the High School. The proposal of the
insertion of Science History and Philosophy in the text-books is based on the
principle that the text-book, while accessible and utilized tool in such a way for the
teachers as well as for the students, it is still very useful. Therefore, due to its ample
utilization and pedagogical basic element, the text-books needs to be of good quality.
In this manner, our investigations start on the following questionings: a) Is the
Science History present on the text-books, as it is being presented? b) Is the way as
the Science History appears on the text-books considered adequate for an education
of good quality teaching? c) How has the Science History been utilized, once it can
be an excellent pedagogical resource? To answer these questions, the present study
searched help in the ideas of a Science philosopher Thomas Kuhn, who served as
the foundation for the development of this research. The subsidies we found in the
Kuhn studies were reinforced by a studious on the Science Teaching, Michael
Matthews. With these two theoretical referentials, Kuhn and Matthews was possible
to accomplish a case study about the Science History on the text-books. For the
achievement of this case study, we analyzed (04) four Biology text-books of the High
School. The subject chosen for the analyses of this research was the problem of the
origin of life, therefore it is the found subject on the majority of text-books and that it
also approaches two paradigms: abiogenesis and biogenesis. For this study case
was achieved an association between the ideas of our main referentials Kuhn and
Matthews, with the historical reconstruction of the problem of the origin of life. These
associations were converted into some categories, as for: linearity; normal science;
paradigm; puzzle and the relation theory/experiment. From the obtained results we
tried to map the ways which the Science History and Philosophy are present on the
text-books, as well as the way of its structuring.
Key-words: Science Teaching - Biology text-books - Science History and
Philosophy.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................................9
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................14
CAPÍTULO 1........................................................................................................................22
1.1 THOMAS KUHN E A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS...................................34
1.2 CRÍTICA DE SIEGEL.....................................................................................................41
1.3 UMA POSSÍVEL RESPOSTA DE KUHN A SIEGEL .............................................................44
CAPÍTULO 2........................................................................................................................53
2.1 RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA ..................................53
2.2 ESTRUTURAÇÃO DA ANÁLISE HISTÓRICA......................................................................63
CAPÍTULO 3........................................................................................................................67
3.1 DESCRIÇÃO DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA APRESENTADA NO LIVRO DIDÁTICO DE
FAVARETTO E MERCADANTE .......................................................................................67
3.1.1 Categorias presentes no livro de Favaretto e Mercadante ........................................69
3.1.2 Análise da Apresentação do Problema da Origem da Vida Exibido no Livro Didático
de Favaretto e Mercadante.......................................................................................70
3.2 DESCRIÇÃO DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA APRESENTADA NO LIVRO DIDÁTICO DE
SÔNIA LOPES .............................................................................................................77
3.2.1 Categorias presentes no livro de Sônia Lopes..........................................................78
3.2.2 Análise da Apresentação do Problema da Origem da Vida Exibido no Livro Didático
de Sônia Lopes.........................................................................................................79
3.3 DESCRIÇÃO DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA APRESENTADA NO LIVRO DIDÁTICO DE
AMABIS E MARTHO .....................................................................................................86
3.3.1 Categorias presentes no livro de Amabis e Martho...................................................87
3.3.2 Análise da Apresentação do Problema da Origem da Vida Exibido no Livro Didático
de Amabis e Martho..................................................................................................88
3.4 DESCRIÇÃO DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA APRESENTADA NO LIVRO DIDÁTICO DE
SÍDIO MACHADO.........................................................................................................94
3.4.1 Categorias presentes no livro de Sídio Machado......................................................96
3.4.2 Análise da Apresentação do Problema da Origem da Vida Exibido no Livro Didático
de Sídio Machado.....................................................................................................97
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................100
REFERÊNCIAS .................................................................................................................103
9
APRESENTAÇÃO
Percebi desde muito cedo a minha paixão pelos estudos. Lembrome
da importância que atribuí aos livros didáticos utilizados como recurso para
meu processo de aprendizagem. Fui alfabetizada na primeira série do primário
(hoje denominada 1º série do ensino fundamental), com a cartilha “Caminho
Suave” a qual nunca mais esqueci.
“Caminho Suave” trazia o “be a ba” completo e o professor utilizava
o método da memorização para alfabetizar seus alunos.
Novamente fui ter contato com livros didáticos, quando cursei o
ginásio (hoje conhecido como 5º a 8º séries do ensino fundamental) e, mais tarde,
no curso do magistério (ensino médio profissionalizante).
Ao abrir as páginas dos meus livros didáticos para fazer meus
estudos, eu me deparava, na maioria das vezes, com textos que continham muitas
informações, datas e acontecimentos. Hoje, revivendo minhas memórias, começo a
questionar a relevância e a abstração dos conhecimentos que eram apresentados
nos livros didáticos, lembrando-me também que meus professores não
demonstravam, em suas considerações, preocupação com a quantidade de erros
de editoração e com as informações erradas que esses traziam.
Alguns desses professores ignoravam o livro didático de sua
disciplina, optando por apresentar resumos no quadro de giz, ao invés de se utilizar
dele, uma de suas principais ferramentas de trabalho.
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Sempre gostei das aulas das Ciências (Matemática, Química,
Física, Biologia e Ciência) e adorava, quando ao examinar o horário das aulas,
confirmava que, naquele dia, eu teria uma das disciplinas das ciências. Porém,
minha euforia durava pouco, pois, na maioria das vezes, o professor entrava na
sala, pedia aos alunos que abrissem seus livros didáticos e começava a leitura
daqueles textos que eu considerava fora da nossa realidade.
Quando cursei o magistério, aprendi a didática das disciplinas,
mas, como na maioria das vezes, se trabalha com alunos desmotivados ou com
problemas de aprendizagem, foi possível constatar que a culpa geralmente acaba
caindo sobre o professor (nesta pesquisa não será comentada a formação de
professores). Raramente, eram analisados os recursos que o professor utilizava
para ministrar suas aulas.
A partir do momento em que passei a ser professora, ao invés de
aluna, pensei que seria a melhor professora que aqueles alunos teriam. Procurei
ser uma professora dinâmica, estar sempre atualizada, por meio de leituras ou por
cursos de capacitação - para mim o mais importante era tornar minhas aulas cada
vez mais interessantes para os alunos.
Em 1997, participei de um curso de capacitação na UEL
(Universidade Estadual de Londrina) e tive o prazer de ser aluna do professor de
Biologia Álvaro Lorencini Júnior, da referida instituição, e, em uma de suas aulas,
esse professor dizia que todo professor deveria fazer uma “reflexão sobre sua
ação”.
No momento, não dei muita importância, mas ao sentir algumas
dificuldades em sala de aula, principalmente, quando me deparava com alunos
11
desmotivados para aprender ou alunos pouco preparados para vivenciar sua
realidade e com baixo conhecimento, eu me vi como um daqueles professores da
época em que eu era aluna; tinha um ótimo recurso nas mãos, que é o livro
didático, mas não tinha um material rico em conteúdo. A partir de então, comecei a
refletir sobre o que eu poderia fazer para melhorar minhas aulas, para tornar meus
alunos mais motivados para o conhecimento? Eu, como professora, não estaria
atendendo as expectativas dos alunos ou o problema estaria nos materiais
inadequados que eu estava utilizando?
Resolvi investigar se somente eu passava por essa dificuldade ou
se também outros professores a tinham. Para minha surpresa, constatei por meio
de conversas informais, que a desmotivação e o despreparo dos alunos são os
maiores problemas encontrados pela maioria dos professores.
Como sempre busquei respostas para minhas indagações, fui
persistente, de certa forma, procurando atingir meus objetivos e, também, por
gostar de estar sempre atualizada, resolvi ingressar nesse curso de mestrado, no
qual eu poderia buscar solução para algumas de minhas inquirições. Porém,
quando me inscrevi como aluna especial, na disciplina de História da Ciência,
pensei: estudar história, aquela matéria tediosa cheia de datas e acontecimentos
para quê? Qual não foi minha surpresa, ao longo do processo, de descobrir a
importância da história para a compreensão da atual realidade de nossa vida e
para o processo ensino/aprendizagem. Fiquei maravilhada ante a possibilidade de
ter encontrado a resposta para algumas de minhas inquietações.
Ao saber que eu poderia verificar como a história da ciência está
sendo apresentada nos livros didáticos e que eu teria condições de provar que a
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história associada à filosofia da ciência pode ser um excelente recurso que está
disponível aos professores e alunos, resolvi enfrentar a questão e, juntamente com
meu orientador, investigar como os livros didáticos de Biologia do ensino médio
abordam a história da ciência.
Ao iniciarmos a pesquisa, participei de uma seleção em que a
Secretaria de Estado da Educação do Paraná escolheu cinco professores de cada
disciplina para desenvolver um projeto inédito, que consistia em escrever o LDP
(Livro Didático Público), voltado aos alunos do ensino médio, uma vez que há
carência de material didático para este nível de ensino. Assim, tive o privilégio de
ser, além de pesquisadora, autora, saindo dos bastidores para ser a protagonista
nessa parte da História da Educação do Paraná.
E, como se tratava de assunto relacionado a minha pesquisa, eu
recebi incentivo do meu orientador para escrever o livro. Confesso que não foi fácil,
porém, como já comentei anteriormente, sou persistente naquilo em que acredito,
principalmente, nos meus objetivos e, portanto, consegui concluir a escrita do
primeiro LDP do Paraná. Com isso, minha bagagem de conhecimento ampliou-se
muito, fazendo crescer, ainda mais, minha vontade de analisar os textos dos livros
didáticos que chegam ao professor e ao aluno, por serem uns dos poucos recursos
disponíveis para que o processo de educação aconteça.
A pesquisa para esta dissertação se justifica em minha experiência
como professora e como autora do livro didático do Ensino Médio para a escola
pública do Estado do Paraná, para a qual fui auxiliada por meu orientador,
tornando-se nosso objetivo maior a melhoria da qualidade do ensino.
13
Ao longo desses dezesseis anos, atuando como professora de
Biologia deparei-me com várias situações críticas na educação, mas nenhuma
delas me chamou mais a atenção do que o índice crescente do percentual de
evasão e repetência escolar.
Por mais que as instituições e governos invistam na educação,
esses problemas educacionais não serão solucionados, se não houver melhoria na
qualidade do ensino. Acreditamos que um dos requisitos para essa melhoria é a
qualidade do livro didático, recurso acessível e muito utilizado pelos professores e
alunos. Portanto, o livro didático de Biologia do ensino médio será o objeto da
pesquisa, a partir do qual será feita uma análise teórica da história da ciência nele
contida.
14
INTRODUÇÃO
É comum constatarmos que o ensino de ciências, especialmente no
Brasil, não está sendo um trabalho complementar do ponto de vista da realização,
satisfação e rendimento de trabalho, tanto do professor como do aluno. Essa
realidade desanimadora é evidenciada em vários aspectos como, por exemplo, nos
altos índices de evasão e repetência escolar, na qualidade de ensino e no baixo
aproveitamento dos alunos que freqüentam as aulas.
Relata Charlot (2000, p. 15), “os docentes recebem diariamente em
suas salas de aula alunos que não conseguem aprender o que se quer que eles
aprendam, os dispositivos de inserção acolhem diariamente jovens sem diploma e
às vezes sem pontos de referência”. Isso evidencia que o ensino educacional está
sendo de baixa qualidade. Portanto, há de se pensar em estratégias para que esse
quadro crítico se reverta.
Para Patto (2000 apud MAZZOTTI, 2004, p. 1), ao longo da
história, o problema do ensino escolar tem diferentes causas, como, por exemplo,
“as deficiências do aluno (de origem psicológica), os fatores intra-escolares e a
carência cultural de seu ambiente, sendo que esta última prevalece, ainda que sob
diferentes feições, até os nossos dias”.
Nessa perspectiva, a busca de alternativas para superar o
problema que o ensino educacional se encontra está em apreender os aspectos
históricos, cognitivos, sociais, afetivos e culturais; ou seja, há um conjunto de
fatores, intra-e extra-escolares que contribuem para que o ensino seja de baixa
15
qualidade. Entre esses fatores temos as condições econômicas e culturais dos
alunos, a gestão escolar e as práticas pedagógicas (DOURADO, 2005).
Ressaltamos que, no Brasil, o ensino é o resultado de importantes
transformações pelas quais o Estado passou, sendo produto de:
[...] alterações introduzidas em 1988 por meio da promulgação da
Constituição da República Federativa do Brasil e, em 1996, por meio da
aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei
9394/96) e ainda da aprovação do Plano Nacional de Educação – PNE1,
em 2001 (DOURADO, 2005).
Todavia o objetivo da elaboração dessas leis é estabelecer normas
para a organização educacional visando assim à melhoria na qualidade do ensino.
Atualmente, no Brasil, 97,2% das crianças entre 7 e 14 anos freqüentam a escola,
porém há muito o que fazer para se ter um ensino de boa qualidade. Os resultados
dos exames de avaliação realizados pelo Ministério da Educação demonstram que
o desempenho dos estudantes brasileiros está muito abaixo dos padrões
considerados adequados. Nesta óptica, é necessário salientar os processos de
organização e gestão pedagógica que influenciam no baixo rendimento escolar,
como por exemplo:
Deficiência do processo ensino-aprendizagem, estrutura inadequada de
parte dos sistemas educacionais para dar conta do aumento de demanda
dos últimos anos, carência de professores qualificados, especialmente no
Ensino Médio, oferta de recursos pedagógicos e bibliotecas adequadas
(DOURADO 2005, p.4).
No Brasil, a baixa qualidade no ensino é evidenciada de acordo
com alguns aspectos, tais como: o fluxo de repetência, a evasão, o abandono e a
disparidade entre idade e série freqüentada, dentre outros. Conforme Dourado:
1 O PNE (Plano Nacional de Educação) foi aprovado pela Lei nº. 10.172, de 09 de Janeiro de 2001.
16
Uma análise dos indicadores do SAEB2 de 2003 já permite alguns dados
reveladores dos processos de exclusão vivenciados nas escolas
brasileiras na medida em que estes apontam que 24,8% dos alunos do
ensino fundamental são reprovados, sendo 13,3% na 1º a 4º séries e
11,5% na 5º a 8º séries. Assim, a cultura de reprovação tem sido
internalizada no sistema educativo, tanto por alunos quanto por
professores. Outro dado relevante refere-se às taxas de abandono que
nas quatro primeiras séries é de 7.5 % e nas séries finais do ensino
fundamental atinge os 12%. Analisar esses indicadores objetivando
deslindar que condições e processos, internos e externos, favorecem a
manutenção desses índices de abandono é tarefa complexa para aqueles
que buscam alternativas conseqüentes para a superação do fracasso
escolar. A distorção idade-série é outro dado alarmante, atingindo o
patamar de 36,2% e de 44,7% na 1º a 4º séries e na 5º a 8º
respectivamente. No ensino médio essa situação se agrava, pois 9,5% são
reprovados, 17% abandonam a escola antes de concluir e 51,8% dos
alunos do último ano do ensino médio estão acima da idade adequada
para a série (DOURADO 2005, p.12).
A tabela abaixo demonstra de forma quantitativa os dados sobre
reprovação, abandono e disparidade entre idade e série freqüentada na educação
brasileira.
Tabela 1 – Dados sobre Reprovação
Reprovação Abandono Disparidade entre Idade
e série freqüentada
1º a 4º - EF 13,3% 7,5% 4º - EF 36,2%
5º a 8º - EF 11,5% 12% 8º - EF 44,7%
1º a 3º - EM 9,5% 17% 3º - EM 51,8%
Fonte: SAEB/2003 – MEC – INEP (apud Dourado 2005, p. 13).
Os dados do SAEB revelam que, no Brasil, o ensino é de baixa
qualidade. Levando-se em conta que há diversos fatores que interferem no
processo ensino/aprendizagem é relevante buscar alternativas que visem à
melhoria da qualidade do ensino, especialmente no Brasil.
2 SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) é uma ação do Governo Brasileiro
criada em 1988, desenvolvido pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira). É um dos mais amplos empreendimentos e tem como objetivo coletar dados
sobre alunos, professores, diretores de escolas públicas e privadas em todo o Brasil.
17
Popkewitz (1995, p. 37) afirma que vários relatórios3 identificaram
uma crise no ensino: os alunos não estão adquirindo competências e
conhecimentos básicos, fazendo-se necessário um ensino de “melhor qualidade
para que se preserve o clima espiritual, cultural e econômico da nação”.
Para Schön (1995, p. 79), atualmente, estamos no meio de um dos
processos cíclicos de reforma educativa, e, portanto estamos tomando consciência
das inadequações da educação. Com isso buscam-se soluções para que aconteça
um ensino de boa qualidade.
Devido aos problemas apontados acima, a maior parte das
pesquisas na área do ensino de ciências, quer nos cursos de capacitação e/ou
atualização, quer na prática educativa de situações–problema, tem por objetivo o
diferencial qualitativo do processo ensino/aprendizagem da formação do educando.
No entanto, como sugerimos no primeiro parágrafo desta
introdução, a realidade da prática educativa do ensino de ciências revela alguns
problemas, tais como: evasão, repetência, abandono, disparidade entre idade e
série freqüentada, dificuldade de compreensão dos alunos, dificuldade de
abstração conceitual, incompreensão com as fases e etapas da resolução de
problemas, etc. Portanto, parece que há uma emergência que vise melhorar a
realidade educacional que o processo de ensino se encontra.
Não restam dúvidas de que os conteúdos de ciências encerram
oportunidades enriquecedoras no processo ensino/aprendizagem, pois o professor
pode usar estratégias didático-pedagógicas por meio de questionamentos para
3 Thomas Popkewitiz recomenda, no artigo citado (1995), consulta a outras referências para uma
discussão mais aprofundada do ponto em questão.
18
motivar a participação do educando na resolução de situações-problema,
favorecendo, assim, a construção de seu aprendizado. No entanto, tais processos
de aprendizagem exigem operações mentais de grande complexidade lógica e
instrumental, para as quais é exigido também um embasamento anterior que, na
prática, nem sempre é compatível com os requisitos necessários para garantir um
aproveitamento satisfatório em relação ao assunto abordado.
Uma dessas oportunidades4, de acordo com boa parte da literatura
em ensino de ciências, ocorre quando o professor se propõe à utilização de
recursos obtidos da história da ciência. Acredita-se que o conhecimento dos
processos históricos possa ser um facilitador na compreensão da realidade
científica na sua diversidade e nas múltiplas dimensões temporais5.
O ensino, aliado à reconstrução histórica, pode propiciar ao
educando a obtenção de uma visão mais ampla do estudo, gerando condições
para que ocorra aprendizagem. No entanto, como já mencionamos no parágrafo
anterior, freqüentemente os alunos não têm embasamento anterior suficiente para
a compreensão da sua utilização.
Partindo desse pressuposto, podemos então indagar o porquê
dessa situação. Podemos observar um duplo fenômeno: em primeiro lugar, os
alunos em geral não conseguem vislumbrar a história das ciências que eles
4 Os elementos históricos oportunizam aos alunos compreender que existem diversas relações
entre a produção científica e o contexto social, econômico e político, os quais possibilitam
averiguar que tanto a formulação como o sucesso, ou o fracasso das diferentes teorias científicas,
estão associados a seu momento histórico (cf. PCN 1999, p. 219).
5 Esta é a posição de filósofos da ciência como Thomas Kuhn, que afirma: “Se não se tem o poder
de considerar os eventos retrospectivamente, torna-se difícil encontrar outro critério que revele tão
claramente que um campo de estudos tornou-se uma ciência” (Kuhn 1962, p. 42).
Esta posição também é defendida por historiadores da biologia, como Ernst Mayr. Em seu livro O
Desenvolvimento do Pensamento Biológico, defendeu esta proposição: “[...] muitos problemas atuais
não poderão ser plenamente entendidos sem uma compreensão da sua história” (1998, p. 15).
19
estudam; em segundo lugar, os próprios professores, por sua vez, não conseguem
enxergar na história da ciência uma oportunidade enriquecedora para o processo
de ensino/aprendizagem. Neste trabalho, nos propomos a investigar como a
história da ciência está sendo apresentada nos livros didáticos de Biologia do
ensino médio, uma vez que ela pode ser um recurso muito útil tanto pelo professor
quanto pelo aluno. Com isso, pretendemos responder ao porquê das dificuldades
da assimilação de conteúdo por parte dos alunos.
Fica claro, então, que estamos delimitando nosso campo de
investigação, pois será tratado apenas um dos problemas da aprendizagem, que
está circunscrito à questão da apresentação da história da ciência no ensino de
Ciências, como uma estratégia de aprendizagem. Para sermos mais claros, nosso
problema parte do pressuposto de que a história da ciência pode ser uma
ferramenta conceitual bastante útil para o ensino de Ciências. Uma vez que a
história da ciência é apresentada na maioria dos livros que os professores e alunos
utilizam no processo ensino/aprendizagem, resta-nos analisar como isso está
sendo feito. É uma boa história? Por quê? Portanto, se ela está presente nos livros
didáticos e pode ser considerada um ótimo recurso pedagógico, então
investigaremos por que ela não está sendo bem apresentada.
Para responder a essa questão, buscaremos auxílio na literatura,
acerca da inserção da história da ciência no ensino de Ciências e, para isso, nos
valeremos das reflexões do teórico Michael Matthews. Com base em Matthews,
veremos como a história pode ser introduzida num curso de ciências; no entanto,
dado ao enfoque de Matthews, a história da ciência deve ser compreendida como
uma associação entre a própria história e a filosofia da ciência.
20
Desse modo, buscaremos na filosofia da ciência de Thomas Kuhn
um subsídio para a complementação da compreensão da história de Matthews.
(Porém, vale lembrar que, como Kuhn foi fortemente criticado por não ter
compreendido a importância da história da ciência para o ensino, é nossa tarefa
apresentarmos essa crítica e justificarmos esse apoio que buscamos em Kuhn).
Para nos subsidiarmos nesta pesquisa, comentaremos no capítulo 1 as idéias de
alguns estudiosos em ensino de ciência, tais como Michael Matthews e Thomas
Kuhn. A apresentação que faremos da concepção de Matthews nos mostra um
panorama da importância do ensino de ciência na educação, além de apresentar
dois modos pelos quais, segundo o autor, a história da ciência aparece nos livros
didáticos: ilustrativa e integrada. Para pavimentar nossos estudos quanto à
importância da história e da filosofia da ciência nos valeremos das idéias de Kuhn,
filósofo que revolucionou as concepções de ciência. Ainda no capítulo 1
apresentaremos uma das críticas apontadas às idéias kuhnianas e uma tentativa
de resposta a esta crítica.
Dando seqüência a nossa pesquisa, no capítulo 2, apresentaremos
um episódio da história da biologia: o problema da origem da vida, o qual servirá
como parâmetro para analisarmos como os livros didáticos apresentam a história
da ciência. O problema da origem da vida foi escolhido por se tratar de um assunto
que contém dois paradigmas na história da ciência: abiogênese e biogênese. Após
a apresentação do episódio do problema da origem da vida retomaremos o capítulo
1 e faremos uma associação dele com a história do problema da origem da vida.
Para facilitar serão utilizadas algumas categorias filosóficas que permitirão uma
melhor compreensão do tema proposto.
21
Com relação ao capítulo 3, apresentaremos as descrições do
problema da origem da vida que se encontram nos livros didáticos de Biologia do
ensino médio, as quais foram pesquisadas em quatro livros didáticos: Favaretto e
Mercadante (2003); Sônia Lopes (1996); Amabis e Martho (1997) e Sídio Machado
(2003). A escolha desses livros didáticos para a análise foi feita de acordo com o
acesso e a disponibilidade dos mesmos. Após a apresentação das descrições do
problema da origem da vida nos quatro livros didáticos, faremos a análise da
história da ciência dessas descrições, associando-as às categorias apresentadas
no capítulo 1.
Para concluir, apresentaremos as considerações finais a partir das
análises realizadas nos quatro livros didáticos de Biologia e delinearemos um
panorama de como a história da ciência está sendo apresentada nesses livros,
apresentando-o de maneira responsável e crítica.
22
CAPÍTULO 1
De acordo com Michael Matthews (1995, p. 165), o ensino de
Ciências está em crise, fato este observado explicitamente pelos altos índices de
evasão de alunos e professores das salas de aula e, também, pelos elevados
índices de analfabetismo nessas disciplinas. Segundo o autor, o ensino de ciências
por anos e anos centrou-se na memorização de conteúdos (fatos e leis), na
realização de atividades mecânicas e na aplicação de questões de regras para a
solução de problemas apresentados e resolvidos anteriormente pelo professor.
Esse fato, conforme a Fundação Nacional Americana de Ciências (cf. MATTHEWS
1995, p. 166), resultou na decadência da qualidade do ensino, o que gerou uma
demanda na reformulação do currículo de ciências.
Conforme já salientamos na introdução, Matthews (1995, p.165)
evidencia que a solução para um ensino de qualidade se encontra na inclusão da
história, da filosofia e da sociologia6. O autor acredita que a associação dessas
áreas, além de humanizar as ciências – aproximando o aluno dos interesses
pessoais, éticos, culturais e políticos de sua comunidade – também auxilia na
formação do professor no uso de recursos epistemológicos e o ajuda a ter uma
maior compreensão da estrutura e do espaço da ciência no sistema intelectual.
Como argumenta Matthews (1995, p. 168): “converter projetos
curriculares em realidade de sala de aula requer novas orientações para a prática e
6 Nesta pesquisa não serão enfocados os aspectos sociológicos da ciência, dados os limites da
mesma. Como, além disso, nosso autor de referência é Thomas Kuhn, seguimos sua orientação
entendendo que ele, apesar de confirmar a existência de aspectos sociológicos na história da
ciência, estes, em sua obra maior, sejam desconsiderados (2003, p. 97).
23
avaliação, novos materiais didáticos e, acima de tudo, a inclusão de cursos
adequados sobre HFC7 no treinamento de professores”.
O autor concorda com as Teses da American Association
Advancement of Science (AAAS), quando afirma que o ensino de ciência deve ser
mais contextualizado, histórico, filosófico ou reflexivo. Admite também que o ensino
deve ser gradual, sem ênfase de conteúdos, pois, assim, expõe Mach, (apud
MATTHEWS, 1995, p. 169) “esse derrame de conteúdos só resulta numa teia de
pensamentos frágeis demais para fornecer uma base sólida, porém complicados o
bastante para gerar confusão”. Assim, de acordo com Matthews, é preciso ensinar
a história e filosofia da ciência para que o aluno possa estabelecer parâmetros
entre o que existe e o passado, caracterizar o processo de produção do
conhecimento como uma dinâmica de busca da compreensão da realidade e
conhecer os aspectos e fatores que contribuíram para o surgimento e
desenvolvimento do assunto que está sendo estudado. Tal enfoque geraria um
ambiente ainda mais favorável à análise e à reflexão de objetos de estudo, e assim
levar a perceber o processo ativo que permeia o conhecimento.
Obviamente, esta inserção de HFC no ensino médio ocorre
fundamentalmente por meio dos livros didáticos de ciência, instrumentos pelos
quais os alunos são introduzidos na aprendizagem de uma disciplina científica. Por
isso os livros didáticos são importantes veículos da história da ciência acessíveis
aos alunos.
O livro didático é considerado uma mercadoria produzida e
comercializada, em que se leva em conta o aluno e o professor, e são os
7 Neste trabalho “HFC” significa “História e Filosofia da Ciência”.
24
professores que indicam e escolhem o livro que usam. Todavia o livro didático
pode ser considerado como agente cultural, uma vez que é muito utilizado por
professores e alunos (DAMASIO, 2003, p. 32).
Nas últimas décadas, tem crescido muito o interesse dos
pesquisadores pelo livro didático. Após ter sido desprestigiado por educadores e
diversos intelectuais como de baixa qualidade cultural, passou a ser analisado sob
vários aspectos, por exemplo, pelo educativo e por sua função na escola
contemporânea. Embora o livro didático seja um objeto cultural, que gera muitas
polêmicas e críticas de diferentes setores, ele é “considerado como instrumento
fundamental no processo de escolarização” (BITTENCOURT, 2006).
Segundo Damásio (2003), no Brasil, a política do livro didático do
MEC (Ministério da Educação e Cultura) desenvolveu-se de forma contínua, desde
1938, após o Decreto-lei 1006 de 30/12/1938 e, conquanto tenha havido mudanças
de gestão nas políticas governamentais, ou seja, na Presidência da República, no
Ministério da Educação, nos titulares das instituições responsáveis pela condução
da política do livro didático, na mudança de concepção do livro, na gestão de
programas dentre outros, ela permanece.
No Brasil, o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) foi criado
e desenvolvido no âmbito das competências da FAE (Fundação de Assistência ao
Estudante), em 19858. Em 1994, apesar dos avanços obtidos, o PNLD enfrentava
certas dificuldades na distribuição e na qualidade de conteúdos do livro didático.
8 A FAE é um órgão subordinado ao MEC e suas principais diretrizes são: promover melhoria na
qualidade do ensino; escolher o livro didático para a escola juntamente com os professores do
ensino de 1º grau, analisando, selecionando e indicando títulos; universalizar o atendimento a
todos os estudantes do ensino fundamental e utilização de livros reutilizáveis por 3 anos
(DAMÁSIO, 2003, p. 29).
25
Com isso, em 1995, o MEC iniciou uma ampla e criteriosa análise de conteúdos
dos livros didáticos que eram oferecidos, anualmente, pelo programa.
A análise era realizada por uma equipe de educadores,
coordenados pela Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da
Educação, que tinha como objetivo examinar os conteúdos dos livros, apontando
os erros e selecionando os melhores títulos. A conclusão dessa análise era
publicada no Guia de Livros Didáticos, servindo de apoio aos professores na
escolha. Esse Guia, considerado instrumento de auxílio ao professor, proporcionou
reflexão e discussão sobre o processo ensino/aprendizagem, especialmente, sobre
o material didático a ser utilizado (DAMASIO, 2003).
A tabela abaixo demonstra os dados quantitativos dos livros
didáticos inscritos, tanto os recomendados como os excluídos nos anos de 1997,
1998 e 2001 no Brasil.
Tabela 2 – Dados dos Livros Didáticos Inscritos (Anos 1997; 1998 e 2001)
PNLD Livros Inscritos Livros
Recomendados
Não Recomendados e
Excluídos
1997 466 105 361
1998 454 167 287
2001 569 321 248
Fonte: (DAMASIO, 2003, p. 30)
Os dados quantitativos demonstrados na tabela acima evidenciam
um decréscimo no número de livros excluídos, portanto, alguns avanços estão
sendo alcançados na melhoria da qualidade dos livros didáticos.
Assevera Bizzo que (1988 apud PNLD 98, p. 293) “as críticas feitas
aos livros didáticos têm sido, infelizmente, pouco efetivas para a melhoria do
26
ensino, principalmente em conseqüência do tratamento que a imprensa costuma
dedicar ao assunto”.
Geralmente, a imprensa insinua que algumas das deficiências do
ensino no Brasil podem ser atribuídas aos erros contidos nos textos dos livros
didáticos, uma vez que esses são muito utilizados pela maioria dos professores e
alunos para o processo de ensino/aprendizagem (PNLD 98: 295).
Para Freitag (1997, p. 142), até 1997 não foram encontradas
soluções ideais que “atendessem a todos os interessados no livro didático no que
diz respeito à avaliação de sua qualidade”. De acordo com essa autora, é
importante que o professor se conscientize da responsabilidade que lhe cabe,
como educador, na decisão sobre a escolha e destino do livro didático. O mesmo
se diga das editoras e dos autores. Portanto, é o que diz Freitag (1997, p. 140):
Se o professor se convencer da má qualidade de um livro, nas condições
atuais do processo decisório, pode condenar o livro às estantes e
depósitos de editoras e livrarias. Caberá, portanto ao professor controlar a
médio e longo prazo a qualidade do livro didático. É sua a
responsabilidade de, daqui para frente, quebrar o círculo vicioso da
reprodução da mediocridade. Mas como, se o próprio professor constitui
um elo dessa corrente?
Pela citação acima, podemos perceber a importância dos
professores e a responsabilidade que lhes é atribuída e, por isso, o material
didático que eles utilizam como recurso pedagógico deve ser analisado em todos
os aspectos: conteúdo e linguagem, além de vários outros.
Aqui, no Estado do Paraná, a Secretaria de Estado da Educação
elaborou um projeto inédito: o Livro Didático Público (LDP) que já está em fase
final. Esse projeto consiste na produção dos livros didáticos destinados a todos os
alunos do ensino médio da rede pública. Essa produção foi realizada por uma
27
equipe composta por 5 (cinco) professores de cada disciplina – Matemática,
Química, Física, Biologia, Língua Portuguesa/Literatura, Arte, Filosofia, Sociologia,
Educação Física, História, Geografia, Língua Estrangeira Moderna Inglês/Espanhol
- atuantes no Estado do Paraná, no ensino médio, orientados por 1 (um) consultor
em exercício no ensino superior e alguns técnicos do Departamento do Ensino
Médio da Secretaria da Educação do Paraná.
Pela primeira vez na história da educação, os livros didáticos foram
produzidos pelos próprios professores dos alunos do ensino médio9. O LDP foi
escrito em formato Folhas10 e está previsto para chegar às mãos dos alunos e
professores do ensino médio, nas escolas públicas, no segundo semestre deste
ano (2006).
Os professores vêm, desde 2003, participando efetivamente das
discussões e da elaboração das novas Diretrizes Curriculares11 no processo de
formação continuada, na produção do Projeto Folhas. O Departamento do Ensino
Médio acreditou que os professores da rede pública seriam capazes de produzir
livros de apoio teórico e didático, contemplando as 12 disciplinas curriculares do
ensino médio12. Esses livros servirão como material de apoio para professores e
alunos da rede pública do ensino médio.
9 HUTNER, Mary L. Livro Didático Público. Disponível em www.diadiaeducacao.pr.gov.br.
10 O Projeto Folhas tem como objetivo “viabilizar meios para que os professores da Rede Pública
Estadual do Paraná pesquisem e aprimorem seus conhecimentos, produzindo, de forma
colaborativa, textos de conteúdos pedagógicos, com base nas Diretrizes Curriculares do Ensino
Fundamental e/ou Médio e seus Conteúdos Estruturantes, nas disciplinas de Matemática,
Química, Física, Biologia, Língua Portuguesa/Literatura, Arte, Filosofia, Sociologia, Educação
Física, História, Geografia, Língua Estrangeira Moderna Inglês/Espanhol e Ensino Religioso”
(Manual de Produção do Folhas, projeto apresentado no seminário em Faxinal do Céu, jun./2006).
11 O documento das Diretrizes Curriculares está disponível no Portal Dia-a-dia Educação
www.diadiaeducacao.pr.gov.br.
12 Idéia extraída da palestra do professor Jairo Marçal, coordenador do projeto do Livro Didático
Público na cidade de Faxinal do Céu, Pr, em Jun./2006.
28
Podemos perceber que há interesse dos governantes e educadores
na melhoria da qualidade do ensino. Portanto, se é para alcançar essa tão
almejada qualidade da educação, é importante que os recursos pedagógicos,
como, por exemplo, os livros didáticos, sejam bem estruturados, o que se percebe
não estar acontecendo.
Uma das razões da falta de estruturação consiste, muitas vezes, no
fato de que a história da ciência contida nos livros didáticos apresenta apenas
ilustrações dos acontecimentos e estórias sobre cientistas que contribuíram para o
desenvolvimento do assunto, ou seja, não contém aspectos filosóficos que
poderiam auxiliar ainda mais na compreensão do desenvolvimento científico. Essa
história é denominada por Matthews de add-on approach. Seguindo a orientação
de Silva (2004a), denominaremos essa abordagem de ilustrativa. Sabemos que
essa história, bem ou mal contada e servindo apenas para ilustrar os fatos, é
encontrada em muitos livros didáticos para servir de parâmetro da compreensão
dos conteúdos que estão sendo estudados. (No próximo capítulo veremos alguns
exemplos dessa história ilustrativa.) No caso dessa história ilustrativa, o curso de
ciências é ministrado e, após seu encerramento “[...] uma ou [várias] unidades de
história da ciência são acrescentadas (added on)” (MATTHEWS, 1994, p. 70).
Portanto, na prática, a abordagem ilustrativa não utiliza a história
como um instrumento para a compreensão do conteúdo, mas somente para a sua
ilustração. (Com isso não se quer dizer que essa abordagem não tenha seus
méritos, mas apenas que ela não está inserida diretamente no conteúdo, mesmo
porque, como afirmou Matthews, ela aparece após a conclusão do conteúdo).13
13 Neste trabalho não nos posicionaremos quanto à eficiência da abordagem ilustrativa.
29
É importante ressaltarmos que, nesta abordagem, não importa a
forma como a história é contada, pois seu domínio não é requerido para que o
estudante apreenda o conteúdo estudado, podendo ser considerada também como
ilustrativa devido ao fato de servir apenas como uma ilustração.
Desse modo a história seria uma espécie de apêndice do conteúdo
ministrado e teríamos, em livros didáticos, algo como um box no qual constaria a
história de algum conceito científico. Por meio desse contexto, o livro didático
apresenta-se como “historiograficamente instruído”, nele a história ilustra apenas o
conhecimento principal, ou seja, ela não possui nenhum significado cognitivo14 (cf.
SILVA, 2004b, p. 8-9). (Uma forma pela qual essa história aparece freqüentemente
nos livros didáticos é a exposição da biografia dos cientistas mais famosos).
Como colocamos na introdução, a problemática diz respeito ao
modo de inserção da história da ciência no ensino de ciências. Vimos no parágrafo
anterior que um desses modos se dá pela abordagem ilustrativa. No entanto, para
Matthews, essa abordagem possui um problema: ela não permite uma integração
entre o conteúdo ensinado e a história dos principais aspectos deste conteúdo,
visto que essa integração não deveria permitir uma separação radical entre o
conteúdo e sua história.
Argumenta Matthews (1994, p. 71) que, para que essa integração
ocorra, uma abordagem histórica de um conteúdo de ciências deve levar em conta
não apenas a história, mas também os aspectos filosóficos, que estão presentes
no desenvolvimento das teorias científicas, sobretudo o próprio fato de que uma
abordagem filosófica pode auxiliar a integração desejada. Desse modo, uma outra
14 Que não auxilia na compreensão do conteúdo que está sendo estudado.
30
forma pela qual a história da ciência pode ser abordada nos livros didáticos é
denominada de integrada, a qual contém os pressupostos históricos e filosóficos
envolvidos no assunto em questão, que podem ser mais satisfatórios para a
compreensão do conteúdo.
Como exemplo de história integrada, pensemos na questão da
interdisciplinaridade, qual seja a construção do modelo da dupla hélice do DNA por
Watson e Crick em 1953, que representou um avanço extraordinário para o mundo
científico. Com os conhecimentos que Watson e Crick tinham dos trabalhos dos
pesquisadores que manipulavam os métodos físicos para o estudo de cristais na
análise de moléculas biológicas, associados aos conhecimentos (sobretudo os de
Watson) da Química na estrutura das moléculas e aos conhecimentos de cálculos
matemáticos avançados (sobretudo os de Crick), eles concluíram que o modelo da
dupla hélice é o formato helicoidal. Assim os conceitos biológicos associados aos
da Química, da Física e da Matemática possibilitaram a Watson e Crick construir o
modelo tridimensional da dupla-hélice (BRODY & BRODY, 2000, p. 373).
Um outro exemplo que podemos citar é relacionado à
intradisciplinaridade. A descoberta da hereditariedade foi uma das mais
importantes para o mundo científico. Após a redescoberta dos trabalhos de
Mendel, muitas dúvidas foram esclarecidas em relação à transmissão das
características herdadas. Mas Mendel não era o único a tentar desvendar os
mistérios que envolviam a comunidade científica da época no tocante à
hereditariedade.
Segundo Moore (1986, p. 45), Bateson explica que o problema
central que envolvia o campo científico, na época de Mendel, eram os “estudos
31
experimentais sobre o problema de Espécie”. Assim, segundo Moore (1986, p. 45),
havia, antes de 1900 (época em que surgiram os redescobridores de Mendel), uma
disputa relacionada à evolução dos seres vivos.
Alguns cientistas como Weldon, Galton, Pearson e outros eram
seguidores de Darwin, porquanto acreditavam que as populações naturais evoluem
pela variação contínua, ou seja, as espécies evoluem muito lentamente. Com isso,
as idéias de Darwin foram-se fortalecendo, o que o fez se destacar, enquanto que
Mendel permaneceu praticamente isolado em suas pesquisas. Conclui-se, então,
que tanto Darwin quanto Mendel trabalhavam, entre outras coisas, com problemas
muito próximos, a saber, a “Espécie”. Como há uma relação entre a
problematização e os pesquisadores, podemos “enxergar” importantes questões
filosóficas inseridas no desenvolvimento científico para a solução dos mistérios que
envolviam a transmissão das características genéticas.
Diante do já exposto, optamos, neste trabalho, pela segunda
abordagem: a história integrada, a qual tenta explicar a história e a filosofia da
ciência no ensino, já que acreditamos que um embasamento interpretado, a partir
de pressupostos filosófico-históricos contribui, e muito, para uma reaproximação de
conteúdos que se encontram espalhados. De certa forma, o entrelaçamento da
história da ciência com a filosofia pode consolidar e fornecer os argumentos
necessários para a apreensão de um determinado conhecimento. No entanto,
lembramos novamente que nossa opção pela história integrada não significa que
estamos desvalorizando a história ilustrativa.
Nossa opção pela história integrada está em acordo com as
concepções do grande historiador da biologia Ernst Mayr (1998, p. 15), o qual diz
32
que a história da ciência é o cerne para a solução de problemas na busca de um
entendimento do mundo em que vivemos. Porém, segundo o autor, nem todos os
historiadores da ciência respondem às questões - Quem? Quando? O quê? Como?
E por quê? – as quais se referem ao progresso da ciência, de modo crítico e
compreensivo.
Mayr (1998, p. 16) postula algumas formas de apresentação da
história da biologia. Entre essas formas estão: História cronológica que apresenta a
seqüência do tempo para toda espécie de historiografia. Assim, pode-se ter da
cronologia um critério indispensável de organização. Porém, segundo Mayr, essa
história tem a desvantagem de reduzir todo o problema científico maior à
seqüência temporal, devido ao fato de ela enfatizar datas e fatos numa seqüência
linear, o que acaba ocultando o problema em questão.
Uma outra forma de apresentação da história definida por Mayr
(1998, p. 17) é denominada de História cultural e sociológica15. Nessa abordagem
histórica, os aspectos da ciência são formas de atividades humanas, inseparáveis
no meio intelectual e institucional da época, recurso para aqueles que chegam à
história da ciência pelos conhecimentos da história geral.
Segundo Mayr, se o historiador de biologia quiser conhecer as
causas do surgimento de novos conceitos - caso não opte pela história cultural e
sociológica - ele deve analisar cuidadosamente o ambiente cultural e intelectual de
um cientista, pois só assim ele entenderá as razões das mudanças que ocorreram
nas teorias.
15 Novamente afirmamos que nesta pesquisa não serão analisados os aspectos sociológicos da
ciência.
33
No entanto, essa história, de acordo com Mayr, é uma história
muito genérica - pois as atividades humanas ligadas aos aspectos sociais e
intelectuais são muito diversificadas – e, portanto, não condiz com os objetivos da
história da ciência. Por fim, a História de problemas (MAYR 1998, p. 121)
caracteriza-se pelo estudo dos problemas e não pelos períodos. Nessa concepção,
os problemas científicos são mais bem compreendidos por meio dos estudos da
sua história e não da sua lógica. Nessa abordagem é apresentada não apenas a
história bem sucedida, mas também as tentativas fracassadas, para a solução dos
problemas.
Podemos comparar a história cronológica de Mayr com a história
ilustrativa de Matthews, sabendo que o critério principal de organização, nessas
histórias, é a seqüência dos fatos ao longo dos tempos, o que pode ser crucial para
o entendimento do conhecimento científico. Além disso, muitos dos problemas da
biologia podem ser mais bem compreendidos por essa abordagem histórica, devido
ao fato de ela permitir investigar de como os desenvolvimentos em outros ramos
da ciência (Química, Física, etc.) conseguiram influenciar a Biologia.
Já a história de problemas definida por Mayr pode ser comparada
com a história integrada de Matthews, uma vez que ambas dão ênfase à
concentração do cientista atuante e ao seu mundo conceitual, levando em
consideração os aspectos históricos e filosóficos da ciência.
A história de problemas e dos conceitos científicos não prestigia os
aspectos biográficos e sociológicos da história da Biologia, estes não são decisivos
para que se possa “entender o crescimento do pensamento biológico” e, é a partir
da história dos problemas e conceitos que podemos alcançar “uma compreensão
34
da estrutura conceitual da biologia” (MAYR, 1998, p. 21). Visto dessa forma, o
conhecimento dos problemas envolvidos numa determinada teoria é, de fato,
primordial para o entendimento dos conceitos relacionados à ciência.
Se nosso intuito é obter subsídios necessários para a explicação da
história e filosofia no ensino de ciência, precisamos nos apoiar em alguma filosofia
da ciência que valorize a inserção da história e nos leve à compreensão do
desenvolvimento científico. Por isso buscaremos apoio na concepção apresentada
pelo clássico de Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas (196216),
que será nosso principal guia nesta pesquisa17, e o qual apresentamos agora.
1.1 THOMAS KUHN E A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS
De acordo com Kuhn (2003, p. 20), alguns historiadores encontram
dificuldades no exercício de suas funções, quando essas são a partir do conceito
de desenvolvimento por acumulação. Kuhn afirma que a pesquisa histórica com
base nesse conceito torna mais difícil a compreensão do assunto estudado e que
talvez a ciência não se desenvolva pela acumulação de descobertas e invenções
individuais (2003, p. 21). Assim, de acordo com Kuhn o conhecimento científico
não cresce de modo cumulativo e contínuo. Ao contrário, esse crescimento é
descontínuo e dá-se por saltos qualitativos, os quais não se podem justificar por
critérios filosóficos do conhecimento científico. Esses saltos qualitativos,
preconizados por Kuhn, ocorrem nos períodos de desenvolvimento científico, em
16 Acima referimos ser a obra de Kuhn trabalhada no ano de 1962. Na verdade, este é o ano da
publicação da primeira edição em inglês. Em nosso trabalho utilizaremos a tradução em língua
portuguesa feita em 2003.
17 Nossa opção por Kuhn não é fruto de uma comparação nem entre concepções de filosofias de
ciências rivais, nem entre outros filósofos que defendem uma concepção próxima da de Kuhn. No
entanto, em razão de minha condição de professora de ensino médio, meu primeiro contato com a
obra de Kuhn foi no decorrer deste curso de mestrado, e deu-se apenas no ano passado.
35
que são questionados e postos em causa os princípios, as teorias, os conceitos
básicos e as metodologias, que até então orientavam toda a investigação e toda a
prática científica. Dessa forma, a importância atribuída por Kuhn aos fatores
históricos na organização do trabalho científico constitui um rude golpe na imagem
da ciência que se foi consolidando desde o século XVIII.
Kuhn não atribuiu o triunfo da ciência ao fato de ela seguir à risca
uma metodologia de concordância ou de refutação, mas sim por ser conduzida sob
a luz de um paradigma. Kuhn (2003, p. 13) afirma que: “paradigmas são as
realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,
fornecem problemas e soluções modelares para comunidade de praticantes de
uma ciência”.
O paradigma é tão aceito pela comunidade científica que, quando
um cientista não chega aos resultados desejados, aceita-se, inicialmente, que o
erro é do próprio cientista e não do paradigma. Dito de outra forma: há ciência tãosomente
onde o paradigma domina.
A vantagem de um paradigma é que ele concentra a pesquisa.
Quando não há um paradigma, os investigadores acumulam pilhas diferentes de
dados, quase ao acaso, e ficam todos ocupados demais em dar um sentido ao
caos e em derrotar as teorias concorrentes para progredir de forma consistente.
Segundo Kuhn, os que trabalham dentro de um paradigma praticam
aquilo que ele denomina de ciência normal. Assim ensina Kuhn (2003, p. 29),
“ciência normal significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais
realizações científicas passadas”. Essas realizações são reconhecidas durante
36
algum tempo por alguma comunidade científica específica e, posteriormente,
proporcionam os fundamentos para sua atividade.
Uma das características da ciência normal é o acriticismo, isto é, a
ausência de questionamento dos princípios do paradigma, o que não ocorreria no
período que ele denomina de pré-ciência. Este seria um período que antecede a
ciência normal. Nesse período, a ciência desenvolve-se de forma fragmentada, e
falta o consenso entre os cientistas que estão trabalhando nas pesquisas. Esse
consenso é fundamental para Kuhn. Por exemplo, vários grupos de pesquisadores
trabalham sério e individualmente num determinado problema. Porém, cada um
dirige suas pesquisas a seu modo, não seguindo um método e, assim, não há
acordo metodológico entre eles.
Para Kuhn é indiferente o fato de eles não se entenderem, o que
chama a atenção é a constatação dos pesquisadores não terem um critério
comum, pois, se os cientistas se reunissem, para reforçar uma pesquisa, com
certeza o trabalho seria fortalecido, tornando-se mais produtivo. Já, na ciência
normal, o que prevalece é a não-percepção de novos fenômenos e o desinteresse
pela invenção de novas teorias. Kuhn (2003, p. 44) afirma:
A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de
fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do
paradigma freqüentemente nem são vistos. Os cientistas também não
estão constantemente procurando inventar novas teorias, freqüentemente
mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros.
A ciência em estágio normal é aquela que vige uma estabilidade de
certos princípios, ou seja, em um período em que não se colocam em jogo alguns
preceitos, como as teorias que se estão desenvolvendo satisfatoriamente. Por
exemplo, a genética molecular, atualmente, está sendo satisfatória para a
37
resolução de muitos problemas relacionados à hereditariedade. Ora, se a genética
molecular está funcionando muito bem, não há motivo, segundo Kuhn, para
pesquisadores buscarem novos preceitos, ou seja, mudar o que está sendo aceito,
a não ser que haja um substituto melhor.
Então, durante o período da ciência normal, os cientistas fazem
suas pesquisas orientados pelos paradigmas aceitos. Parte de seu trabalho
resume-se em levantar novos problemas e tentar solucioná-los de modo
semelhante àquele encontrado no paradigma ao qual a sociedade adere. Como os
problemas estão sendo resolvidos dentro de um paradigma, os cientistas acabam
não se interessando por desenvolver outro.
Pode-se dizer que o paradigma é limitado e, com isso, limita
concentrar a pesquisa. A desvantagem do paradigma é que, por ele ter a tendência
de ser rígido, fechado, novos avanços científicos tornam-se cada vez mais
secretos e acessíveis apenas a quem os consegue praticar. Sendo assim, as
pesquisas, potencialmente frutíferas, emperram, pois não caminham embasadas
em premissas aceitas. Visto dessa forma, o paradigma é um tipo de obstrução,
porquanto, se de um lado possibilita descobertas, levando à compreensão de
outras coisas, de outro cerceia e ignora completamente outras.
Latour (1998, p.14), por exemplo, utiliza a expressão “caixa preta”
para definir os problemas encontrados nas pesquisas científicas. Segundo o autor,
não há necessidade de saber o que está contido numa “caixa preta” e sim o que
nela entra e o que dela sai.
Atualmente, qualquer máquina ou livro contém o modelo pronto da
estrutura do DNA. Assim, o modelo da dupla hélice de Watson e Crick pode ser
38
considerado a “caixa preta” para um pesquisador que queira desenvolver qualquer
trabalho com os ácidos nucléicos. Ele não irá importar-se, seja qual for a posição
na qual os fosfatos estarão mais bem localizados, visto que é a partir do modelo
definido e aceito do DNA que ele desenvolverá suas pesquisas, situação que foi
muito diferente para Watson e Crick, pois, na época, esses pesquisadores
encontraram inúmeras dificuldades para chegar à conclusão de que a estrutura do
DNA é uma dupla hélice. Lembramos ainda que naquela época outros grupos de
pesquisadores estavam tentando desvendar esse mistério.
Alguns pesquisadores como os do grupo de Rosalind Franklin
afirmavam que havia uma hélice de três fitas. Quando o químico Pauling revelou
uma estrutura do DNA que infringia todas as leis conhecidas da Química, Watson e
Crick receberam ordens de desistir desse trabalho, por ser considerado infrutuoso
e que era para retornarem aos estudos mais sérios. Como podemos perceber, são
muitas as dificuldades para se chegar a uma conclusão aceita por uma
comunidade científica.
Aos nossos olhos, é fácil abrir qualquer livro e deparar com o
modelo da dupla hélice pronta. Porém, em 1953, Watson e Crick tiveram muitas
dificuldades para definir a estrutura do DNA. A partir dos dizeres de Latour,
podemos concluir que a desvantagem do paradigma está associada ao
desenvolvimento da pesquisa, já que, por ser considerado fechado, rígido, o
paradigma dificulta a abertura de novos caminhos para a realização de novas
descobertas.
Assim, os cientistas tornam-se tolhidos, pois a adesão ao
paradigma vigente é tão forte que as pesquisas giram somente em torno do
39
paradigma aceito, a não ser que ele não esteja dando conta de resolver todos os
problemas existentes nas comunidades científicas. Diante do exposto, Kuhn (2003,
p. 45) assevera:
As áreas investigadas pela ciência normal são certamente minúsculas; ela
restringe drasticamente a visão do cientista. Mas essas restrições,
nascidas da confiança no paradigma, revelaram-se essenciais para o
desenvolvimento da ciência. Ao concentrar a atenção numa faixa de
problemas relativamente esotéricos, o paradigma força os cientistas a
investigar alguma parcela da natureza com uma profundidade e de uma
maneira tão detalhada que de outro modo seria inimaginável.
Latour (1998, p. 16) estabelece dois parâmetros da ciência: ciência
pronta e ciência em construção. Segundo o autor, se compararmos hoje a ciência
realizada por Watson e Crick com qualquer ciência voltada ao estudo dos ácidos
nucléicos, essa ciência seria considerada ciência pronta ao passo que a ciência
atualmente relacionada aos ácidos nucléicos é a ciência em construção. Nós, que
somos interessados na contribuição da HFC para o ensino, faremos nossa entrada
no mundo da ciência e da tecnologia pela porta de trás, a da ciência em
construção, e não pela entrada mais grandiosa da ciência acabada (LATOUR,
1998, p. 17).
Um outro exemplo de limitação do paradigma que podemos citar é
referente à hereditariedade que está relacionada com a variabilidade dos seres
vivos. De acordo com Rose (2000, p. 50), sabemos que tanto Darwin quanto
Mendel, entre outros, estavam empenhados em desvendar os mecanismos da
hereditariedade. Darwin, porém, acreditava na herança miscível (no sangue) e
tinha muitos adeptos, enquanto que Mendel, envolvido em experimentos com
ervilhas, concluía que a herança se dava por fatores (genes) que se segregavam
aos pares (um de origem paterna e outro materna), os quais determinavam uma
característica específica (ROSE, 2000, p. 50).
40
Bateson e outros pesquisadores aderiram às idéias de Mendel,
porém Pearson e outros biometristas aceitavam e confiavam nas idéias de Darwin,
a ponto de rejeitarem totalmente os conceitos de Mendel (ROSE, 2000, p. 52).
Entretanto, Galton realizou alguns experimentos relacionados à herança, para
mostrar que não havia as “gêmulas” circulatórias, as quais Darwin acreditava ser
responsáveis pela transmissão dos caracteres hereditários. E esse foi um dos
maiores erros de Darwin.
Como a maioria dos pesquisadores da época apoiava as idéias
darwinianas, talvez esse tenha sido um dos motivos pelos quais as pesquisas de
Mendel foram ignoradas e redescobertas somente muitos anos depois.
Percebe-se que, quando os cientistas aderem a um paradigma
prendem-se a ele totalmente, ignorando qualquer contato com outro. E, se, para
Kuhn, é assim que a ciência normal funciona, então parece correto concluir que,
dado o sucesso do paradigma darwiniano, alternativas, como a de Mendel, tenham
sido esquecidas.
É importante registrar que, nesse caso, o sucesso do trabalho de
Darwin como paradigma não se estendia à genética, porém à comunidade
científica, que em razão do êxito de Darwin em outros campos, não teve
dificuldade de aderir aos resultados de Darwin. Desse modo podemos
compreender por que, para Kuhn (2003, p. 45), os pesquisadores não estão,
freqüentemente, buscando novas teorias: eles estão mostrando-se intransigentes
com as teorias inventadas pelos outros.
Assim, a pesquisa científica normal, de acordo com Kuhn, está
direcionada para a organização daqueles fenômenos e teorias já propostos pelo
41
paradigma18. Entretanto, a teoria de Kuhn, quando aplicada ao ensino de ciências,
é possível de provocar algumas críticas. Vejamos agora uma delas.
1.2 CRÍTICA DE SIEGEL
Uma das críticas apontadas por Harvey Siegel (1979, p. 111),
quanto à opinião de Kuhn é que a ciência educacional não deveria distorcer a
história da ciência, considerando como meta do estudante a indicação do
paradigma dominante. Conforme Siegel (1979, p. 111), Kuhn argumenta que o
“historiador da ciência, a fim de indicar o paradigma, deveria sistematicamente
distorcer a história da ciência”, considerando que os textos da ciência, de fato,
distorcem sua história, e explica este “fato” a partir do ponto de vista de suas
funções científicas normais.
Diante dessa visão sobre a distorção do papel da história da
ciência e ciência educacional, Siegel discute sobre os pontos de vista de Kuhn e o
critica pela sua visão distorcida da história da ciência, considerando-a incorreta.
Na óptica kuhniana, os textos dos livros didáticos, de fato,
distorcem a história da ciência, uma vez que eles são direcionados para “perpetuar
a ciência normal”; independentemente, da linguagem escrita nos textos e de seus
18 Entretanto quando os modelos antigos são convincentemente desafiados por novas evidências, os
paradigmas sofrem mudanças, pois chega um momento em que o paradigma não resolve mais os
problemas, o que acaba gerando uma crise na ciência. Sendo assim, soluções alternativas são
procuradas, abrindo-se mão do paradigma vigente. Quando uma dessas soluções é aceita, ocorre
uma revolução científica semelhante a uma revolução política. Primeiramente, alguns cientistas se
convertem ao novo paradigma e passam a enxergar as coisas de forma diferente. O importante é
que a comunidade científica admita o paradigma, pois uma comunidade só sobrevive porque o
paradigma vive. Quem adota um paradigma é fiel a ele. Um dos resultados provocados por uma
revolução científica é uma nova visão dos cientistas a respeito do passado de sua disciplina. O
paradigma substituto não só provoca no cientista uma visão diferente de sua atividade e da
natureza, como também faz com que ele reescreva a própria história da disciplina. A partir daí,
tudo é visto e reinterpretado de acordo com o novo paradigma. Sendo assim, os cientistas que
trabalham dentro de um paradigma não se interessam por outro.
42
princípios, eles devem estar voltados ao paradigma dominante (SIEGEL, 1979, p.
111).
Siegel entende que, apesar de os livros de ensino de ciência
distorcerem a história da ciência, eles não deveriam fazê-lo; ele defende a
importância da história da ciência no ensino, a qual deve ser elucidada de maneira
clara e objetiva. Para ele, os livros didáticos são importantes ferramentas para a
compreensão da pesquisa, visto que somente assim o aluno pode adquirir o hábito
de pensar de acordo com o desenvolvimento científico baseado em fatos
acontecidos em épocas antigas. Portanto, é necessário que os textos expostos nos
livros didáticos tragam toda a história de uma forma não distorcida.
Além de apontar a distorção histórica existente nos livros didáticos,
Kuhn teria defendido essa distorção, com argumento de que, para realizar sua
função, os livros didáticos não necessitam fornecer informações verdadeiras sobre
o modo como as bases do novo paradigma eram reconhecidas no passado e
compreendidas pela profissão. Devemos, além disso, apresentar a história da
ciência como uma “tradição clara”, mesmo estando cientes de que a tradição não
tem sido tão clara, de fato (SIEGEL, 1979, p. 111).
Os textos dos livros didáticos de ciência apostos geralmente numa
introdução do capítulo ou em esparsas referências aos grandes heróis da história,
contêm apenas um pouco da história. É evidente que os livros didáticos de ciência
referem-se apenas àquela parte da pesquisa dos cientistas antigos que podem
contribuir para o relato e solução dos problemas dos textos do atual paradigma
(SIEGEL, 1979, p. 112).
43
Dessa forma, os livros didáticos começam por truncar o
entendimento dos cientistas sobre a história de suas disciplinas. Sendo assim,
Siegel discorda da visão de Kuhn quanto ao papel da história da ciência no ensino
e acredita que essa visão distorcida é inadequada para fazer entender o
desenvolvimento científico.
Todavia Siegel (1979, p. 113) critica e condena a distorção da
história da ciência, no ensino educacional aceita por Kuhn, ele ainda enfatiza que
os responsáveis pela educação do estudante não devem, de forma alguma, fugir
às suas responsabilidades morais como educadores, nem distorcer os materiais
curriculares, em particular no que se refere à história da ciência, no ensino
educacional.
Parece claro que a crítica de Siegel é referente ao capítulo 10 da
obra de Kuhn. De acordo com Kuhn (2003, p. 176), para preencher suas funções,
os livros didáticos não necessitam proporcionar “informações autênticas a respeito
do modo pelos quais essas bases foram inicialmente reconhecidas e
posteriormente adotadas pela profissão”. Com essas afirmações, Kuhn realmente
defende que os livros didáticos não devem apresentar uma história verdadeira para
explicar um problema científico que foi aceito pela comunidade passada.
Entretanto, como se modifica não só a linguagem, mas também a estrutura dos
problemas e as normas da ciência normal modificam, após cada revolução
científica, os livros necessitam ser “parcial ou totalmente reescritos” (KUHN, 2003,
p. 177). Todavia, “os manuais começam truncando a compreensão do cientista a
respeito da história de sua própria disciplina e em seguida fornecem um substituto
para aquilo que eliminaram” (KUHN, 2003, p. 177). Os livros didáticos, segundo
44
Kuhn (2003, p. 177), apresentam apenas trechos da história na introdução do
capítulo ou fazem esparsas referências a heróis.
De fato, podemos observar que Kuhn referindo-se à apresentação
da história da ciência, nos livros, afirma que a história é apresentada de forma
errada e isso acaba gerando confusão a respeito da história da ciência. Porém,
considerando o que expomos sobre o entendimento de Kuhn, é preciso levar em
conta que ele, apesar de, no capítulo 10, ter apresentado passagens que reforçam
o argumento de Siegel, possui razões que, em nosso entender, defendem essa
concepção a respeito dos livros. Na próxima seção, procuraremos, levando em
conta aquilo que apresentamos na seção anterior, mostrar que Kuhn pode escapar
à crítica de Siegel e desse modo continuar a ser um filósofo importante para nossa
discussão.
1.3 UMA POSSÍVEL RESPOSTA DE KUHN A SIEGEL
No capítulo 10, da Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn
(2003, p. 175) reforça a existência e a natureza das revoluções científicas,
comentando que os exemplos ilustrados nos capítulos anteriores não são
considerados como revoluções, mas sim, como adição ao conhecimento científico.
Kuhn acredita que existem excelentes razões para que as revoluções sejam quase
invisíveis.
De acordo com Kuhn (2003, p. 176), cientistas e leigos têm uma
imagem da atividade científica proveniente de três categorias: a) os manuais
científicos comunicam através de uma linguagem contemporânea; b) textos de
divulgação descrevem numa linguagem próxima à vida cotidiana; c) obras
45
filosóficas analisam a estrutura lógica dos conhecimentos científicos. Essas três
categorias referem-se a um corpo articulado de problemas, dados e teorias aceitos
pela comunidade científica em revoluções passadas. Desse modo, essas
categorias, principalmente os manuais, não necessitam fornecer informações
verdadeiras da forma pelas quais as bases foram inicialmente reconhecidas e
aceitas pela comunidade científica.
Conforme Kuhn (2003, p. 29), muitos livros tornaram-se manuais
da ciência normal como, por exemplo, a Física de Aristóteles e a Química de
Lavoisier, servindo para definir implicitamente os problemas e os métodos
autênticos da pesquisa para as gerações seguintes. Nesse aspecto, há uma
confiança crescente por parte dos praticantes de ciência nos livros didáticos
(KUHN, 2003, p. 176). Dessa forma, a pesquisa é realizada de acordo com os
ensinamentos contidos nesses livros e as soluções dos problemas buscadas pelos
estudantes de ciência serão encontradas nas teorias atuais e não naquelas antigas
que já foram descartadas, pois os livros didáticos não se preocupam com o
passado.
Kuhn (2003, p. 177) afirma que os livros didáticos são veículos
pedagógicos destinados a perpetuar a ciência normal. Portanto, devem ser
reescritos imediatamente após cada revolução científica e, uma vez reescritos,
devem ocultar a própria existência das revoluções que os produziram (a não ser
que o cientista tenha vivenciado uma revolução durante sua vida, ele não terá
contato com ela). Assim, os livros didáticos são produzidos somente com base nos
resultados de uma revolução científica, servindo de base à nova ciência. Com isso,
quando se dedica à ciência normal, o pesquisador tem a tendência de se
46
comportar como um solucionador de quebra-cabeças e não como alguém que
testará paradigmas. Os manuais omitem a compreensão do cientista a respeito da
história e fornecem um substituto para o que eliminaram.
De acordo com o autor, multiplicar os detalhes históricos apenas
geraria um erro e abriria espaço à confusão humana; não há sentido em venerar
cientistas do passado que trabalharam em pesquisas não propícias à compreensão
do contexto científico atual. Vistos por esse lado, os heróis da ciência passada
podem ser descartados em razão da grande acumulação de fatos que só
confundiriam a mente humana. Entretanto, segundo Kuhn (2003, p. 178),
Whitehead não estava muito correto quando disse que “a ciência que hesita em
esquecer seus fundadores está perdida”. De fato a ciência necessita de heróis para
o desenvolvimento científico. O que não se pode, segundo Kuhn, é fazer com que
a história da ciência pareça ser linear e cumulativa, chegando a afetar até mesmo
os cientistas que examinam suas próprias pesquisas. Conforme afirma Kuhn:
Disso resulta uma tendência persistente a fazer com que a história da
ciência pareça linear e cumulativa, tendência que chega a afetar mesmo
os cientistas que examinam retrospectivamente suas próprias pesquisas,
por exemplo, os três informes incompatíveis de Dalton sobre o
desenvolvimento do seu atomismo químico dão a impressão de que ele
estava interessado, desde muito cedo, precisamente naqueles problemas
químicos referentes às proporções de combinação, cuja posterior solução
o tornaria famoso. Na realidade, esses problemas parecem ter-lhe
ocorrido juntamente com suas situações e, mesmo assim, não antes que
seu próprio trabalho criador estivesse quase totalmente completado. O
que todos os relatos de Dalton omitem são os efeitos revolucionários
resultantes da aplicação da química a um conjunto de questões e
conceitos anteriormente restritos à física e à metereologia. Foi isto que
Dalton fez; o resultado foi uma reorientação no modo de conceber a
química, reorientação que ensinou aos químicos como colocar novas
questões e retirar conclusões novas de dados amigos (KUHN 2003,
p.178).
Outro exemplo de ciência linear e cumulativa citado por Kuhn
(2003, p. 179) é o que Newton escreveu sobre a descoberta feita por Galileu, que
47
disse: “a força constante da gravidade produz um movimento proporcional ao
quadrado do tempo”.
De acordo com Kuhn, Galileu não fez semelhante afirmação. O
relato de Newton teria ocultado parte de uma revolucionária reformulação nos
problemas, assim como as respostas dadas pelos cientistas à questão do
movimento. Esse disfarce da maioria dos textos contidos nos livros didáticos tende
a tornar linear e cumulativo o desenvolvimento da ciência, o que acaba
escondendo o processo mais expressivo do desenvolvimento científico.
Segundo Kuhn (2003, p. 180), os exemplos citados acima
evidenciam o início de uma reconstrução histórica que comumente se completa por
“textos científicos pós-revolucionários”. Essa distorção, assim denominada por Kuhn,
torna as revoluções invisíveis. O contexto que é aparentemente visível nos textos
científicos pressupõe uma visão que, se realmente existisse, acabaria com toda e
qualquer função relacionada às revoluções, pois a idéia de linearidade não é
compatível, à primeira vista, com a idéia de revolução. Entretanto, de acordo com
Kuhn (2003, p. 180), a ciência não se desenvolve dessa maneira. Poucos “quebracabeças”
da ciência normal remontam ao início histórico dessa disciplina na qual
aparecem atualmente. Assim, os cientistas anteriores ocuparam-se com seus
próprios problemas, com seus próprios instrumentos e procedimentos de resolução.
Algumas pessoas, cientistas ou não, acreditam que a maneira
ideal, segundo a qual a ciência deve transformar-se é pela evolução gradual, ou
seja, cada nova teoria vai-se aperfeiçoando da antiga até chegar à verdade. Essa
forma de evolução da ciência é considerada linear. Kuhn não aceita essa forma
evolutiva da ciência. Para ele, muitos dos problemas das teorias antigas e
48
contemporâneas são características exclusivas de cada uma, pois os conceitos
envolvidos nas duas teorias geralmente têm significados completamente
diferentes. Nesse sentido, há uma grande disparidade entre as duas teorias:
ambas são diferentes, ou seja, possuem problemas diferentes.
Portanto, Kuhn rejeita a idéia de evolução linear em favor da
“revolução científica” pelo fato de haver essa disparidade. Assim a evolução das
teorias da ciência, de acordo com Kuhn, não ocorre de forma linear, como
geralmente é apresentado nos livros didáticos, mas sim por momentos de rupturas
nos contextos científicos.
É comum o livro didático conter um pouco da história, seja na
introdução de um capítulo, seja nas referências aos heróis de uma determinada
época. Com isso, tanto os profissionais quanto os estudantes sentem-se
participantes de toda uma história. O problema é que, para Kuhn, como a citação
antes feita já mostrou, os cientistas sentem-se partes integrantes de uma tradição
que jamais existiu (KUHN, 2003, p. 177). Sendo assim, os livros didáticos que
deveriam servir não só de base para uma nova tradição da ciência normal, servem
também para definir implicitamente os problemas e métodos verdadeiros de um
campo de pesquisa para as futuras gerações praticantes de ciência, criando uma
tradição histórica inexistente.
A maioria dos livros de ciência apresenta a evolução científica de
forma contínua ou cumulativa, dando a impressão de que os fatos históricos
ocorridos num determinado desenvolvimento científico aconteceram com alguns
cientistas que foram adicionando uma a uma suas descobertas a fim de que o
problema fosse solucionado. É comum o livro didático conter apenas partes do
49
trabalho de antigos cientistas que contribuíram para a solução dos problemas do
paradigma.
Dessa forma, há impressão de que os cientistas de épocas
anteriores trabalharam com os mesmos problemas e utilizaram as mesmas
metodologias, fazendo com que a ciência pareça cumulativa. Em virtude disso, nos
livros abordados sobre as ciências, o estudante encontra sérias dificuldades para
compreender o conteúdo programático, os conceitos e as definições de fatos
históricos. Portanto, essa história, segundo Kuhn, é ensinada de uma maneira
errada. Um exemplo de abordagem pedagógica em livros de biologia que adotam a
evolução contínua, encontra-se no conteúdo da evolução dos seres vivos,
abordada no livro de Amabis e Martho (1997, p. 551).
Primeiramente, os autores explicam as idéias relativas à evolução
das espécies (uso e desuso) de acordo com Lamarck, dizendo que o mérito
atribuído a ele foi devido à atenção dada para o fenômeno da adaptação e para a
própria teoria da evolução que, na época não era levada muito a sério e que o erro
de Lamarck foi explicar que a atrofia dos órgãos seria herdada pela descendência
(transmissão das características adquiridas).
Na seqüência, Amabis e Martho (1997, p. 552) explicam que
Darwin lançou a idéia de que a evolução dos seres vivos era dirigida pela seleção
natural, sendo então essa a atual teoria aceita para explicar o fenômeno da
evolução. O exemplo citado da história evolutiva dos seres vivos de Amabis e
Martho (1997, p. 551) nos dá a impressão de que Lamarck explicou a primeira
parte da evolução dos seres vivos e a parte final foi desvendada por Darwin. Essa
forma de explicação da história da ciência é o que Kuhn denomina de cumulativa,
50
semelhante numa construção com a superposição dos tijolos a uma construção.
Podemos comparar essa história com a história ilustrativa de Matthews.
Se tomarmos por base a história da evolução das espécies
abordada na maioria dos livros-texto, como é o caso da história analisada no livro
de Amabis e Martho (1997, p. 551), podemos considerar Lamarck como um
predecessor de Darwin19. Porém, se levarmos em consideração alguns aspectos
da história da evolução, não contidos no livro dos autores mencionados, Lamarck
pode não ser considerado como predecessor de Darwin, visto haver dois conceitos
envolvidos na história da evolução: o fato e o mecanismo explicativo.
Se por um lado for levado em conta o fato da evolução, Lamarck,
assim como outros cientistas, pode ser considerado como predecessor de Darwin;
porém, se for analisado o mecanismo, Lamarck não pode ser considerado como
tal, seu postulado acerca da evolução seria o resultado da soma dos caracteres
observáveis nas espécies (hoje conhecido como fenótipo), mas para Darwin, seria
a seleção natural (que teria como produto a luta pela sobrevivência seguida da
adaptação).
Um outro aspecto que poderia ser levado em consideração na
história da evolução das espécies e que colocaria Lamarck como predecessor de
Darwin é o “argumento do desígnio”, ou seja, a natureza se desenvolve de acordo
com um plano projetado por um designer, sendo todas as transformações
realizadas por um arquiteto.
19 O que segue são anotações de aulas de meu orientador, no curso de pós-graduação em História e
Filosofia da Ciência da Universidade Estadual de Londrina (UEL) no ano de 2005.
51
Nem Lamarck nem Darwin aceitavam a explicação de desígnio:
ambos desejavam uma explicação natural para a evolução. Com isso, no que se
refere ao modelo de explicação, Lamarck poderia ser apontado como um
predecessor de Darwin.
Se a história da evolução contida nos livros didáticos esclarecesse
os problemas acima citados, provavelmente abriria novos caminhos para o
estudante compreender outros problemas relacionados ao desenvolvimento das
teorias científicas que lhe serão ensinadas.
Assim, quando for direcionado para o estudo da evolução a partir
dos conhecimentos supracitados, o estudante terá, provavelmente, maiores
condições de compreender a importância da “seleção natural”, assim como a
“evolução das espécies”. Com base nesses conhecimentos, o estudante consegue
“enxergar” melhor como a ciência acontece, e essa visão nem sempre é observada
com o auxílio da história que está sendo apresentada nos livros didáticos.
O que analisamos na história da evolução contida no exemplo de
Amabis e Martho (1997, p. 551), assim como na maioria dos livros didáticos, é que
Lamarck sempre foi considerado como um predecessor de Darwin. Essa imagem
da ciência é a que Kuhn tem como incorreta, pois mesmo que Lamarck e Darwin
tenham trabalhado, por vezes, num mesmo conjunto de problemas, nem sempre
utilizaram estratégias idênticas, fato que nem sempre é abordado nos livros
didáticos, o que acaba camuflando o desenvolvimento científico.
O conhecimento da história para Kuhn é tido como bastante
importante. Talvez possamos dizer que, para ele, a história não seja como um
conteúdo a mais para o conhecimento na educação científica, mas sim um
52
complemento capaz de tornar o estudante ou o candidato à cientista um
solucionador de problemas. Nesse caso, um estudante fica mais apto a resolver
problemas caso saiba, por exemplo, que a dupla hélice foi construída a partir de
vários elementos biológicos associados aos da química, como, por exemplo, o
comportamento das bases timina-adenina, citosina-guanina, as quais permanecem
pareadas, o que permitiu aos pesquisadores definir que “os intervalos da dupla
hélice têm a mesma forma” (LATOUR, 1998, p. 28). Esses elementos foram
essenciais para que Watson e Crick elaborassem o modelo do DNA aceito
atualmente. Essa história mostra as dificuldades que Watson e Crick tiveram para
elaborar a teoria que abriu novos caminhos para o desenvolvimento da ciência.
Portanto, um estudante pode procurar a carreira científica com as
melhores motivações, mas é a educação científica que o levará a procurar tãosomente
provar seu valor e que ele é um ser capaz de dar respostas aos “quebra
cabeças” da ciência20.
Sem dúvida, Kuhn dá grande importância aos livros didáticos, pois,
segundo ele, estes são utilizados como instrumentos pedagógicos capazes de
formar os novos cientistas de acordo com o paradigma atual. E isso tem
implicações no ensino, pois ensinar a dupla hélice, por exemplo, a partir dos textos
contidos nos livros didáticos deixa parecer à impressão que foi muito fácil para
Watson e Crick descobrir a estrutura do DNA, o que na realidade não foi. Portanto,
a árdua história de Watson e Crick, deveria segundo Kuhn, ser explicada nos
livros-textos.
20 De acordo com Kuhn (2003, p. 59), quebra-cabeça significa “aquela categoria particular de
problemas que servem para testar nossa engenhosidade ou habilidade na resolução de
problemas”.
53
CAPÍTULO 2
Neste capítulo, lembraremos alguns acontecimentos importantes de
um episódio da história da ciência referente ao problema da origem da vida. Esse
episódio encontra-se em diversos livros didáticos de nível médio de Biologia e servirá
para vermos como a história da ciência está sendo apresentada nos livros didáticos.
Em seguida, serão apresentadas cinco categorias que serão
retomadas do capítulo 1: linearidade; ciência normal; paradigma; quebra-cabeça e
relação teoria/experimento. Tentaremos associar essas categorias com a história
reconstruída do problema da origem da vida. O objetivo dessa associação é tornar
mais compreensível tanto o capítulo 1, como a análise que realizaremos da história
da ciência apresentada nos livros didáticos de biologia do ensino médio.
Escolhemos o problema da origem da vida por ser um assunto que envolve dois
paradigmas, abiogênese e biogênese, e também porque a maioria dos livros
didáticos do ensino médio de Biologia contém este assunto.
2.1 RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA
O conhecimento da teoria celular foi uma das mais importantes
realizações na história da Biologia, sendo visto até hoje como a base fundamental
para a explicação da estrutura e funcionamento dos organismos animais e vegetais.
Tal importância decorre do fato de que essa teoria estabelece que as células são as
unidades básicas morfofisiológicas dos seres vivos e “que elas são as menores
unidades capazes de ter vida independente”, isto é, são capazes de obter e utilizar
substâncias do meio para produzir e manter o ser vivo (MOORE, 1986, p. 20).
54
Um outro fato importante decorrente do desenvolvimento da teoria
celular é a possibilidade do entendimento dos níveis mais complexos de
organização dos seres vivos, a partir da análise dos níveis mais simples. Assim, no
século XX, os cientistas pensavam que se conhecessem melhor as células,
poderiam saber mais sobre a vida. Com o desenvolvimento da teoria celular,
também foi possível conhecer o mundo dos microrganismos e então esclarecer
como os seres vivos surgiram.
Até o início do século XIX, a comunidade científica não se
preocupava com a questão da origem da vida; muitos cientistas e filósofos
acreditavam que os seres vivos nasciam da matéria bruta inanimada do meio, ou
seja, pela geração espontânea ou abiogênese. A aceitação da geração espontânea
se baseava, geralmente, na crença de que existiam verdadeiras “receitas” para
produzir seres vivos, desde vermes, insetos, e até crocodilos; para isso bastava
utilizar matéria orgânica em estado de putrefação (ZAIA, 2003, p. 260).
Não muito além de um século atrás, as pessoas aceitavam
facilmente que certos animais, tais como sapos, cobras e camundongos poderiam
nascer de solos úmidos. Uma das receitas para a produção de camundongos era
ensinada por Johann Baptista van Helmont (1577–1697), grande adepto da geração
espontânea: dever-se-ia colocar num jarro algumas roupas suadas e cobri-las com
trigo; 21 dias após surgiriam os camundongos. É evidente que, estando aberto, no
jarro poderia entrar o animal em busca de alimento. Naquela época, não se levou em
conta que os ratos poderiam vir de fora (ZAIA, 2003, p. 260).
Em meados do século XVII, a abiogênese começou a perder suas
forças com os experimentos do físico italiano Francesco Redi. Em 1668, antes das
55
descobertas da existência dos microrganismos realizadas em 1683 por van
Leeuwenhoek, Redi, que era um forte cientista oponente da geração espontânea,
começou a demonstrar que as larvas de insetos não se originavam
espontaneamente de carnes em putrefação.
Ele demonstrou que as larvas de insetos surgem de ovos
depositados pelas moscas na carne em decomposição. Redi realizou seu
experimento da seguinte forma: colocou um pedaço de carne de cobra em uma
caixa aberta e observou algumas larvas na carne em putrefação, as quais se
transformaram em moscas adultas.
Em seguida, Redi utilizou carne fresca de cobra, dividiu-a em duas
partes, colocando, numa caixa aberta uma parte exposta; e a outra parte,
embrulhada num pano, numa outra caixa, cobrindo-a (fig. 1). O resultado foi que,
na caixa aberta, surgiram ovos e larvas de moscas e, na caixa fechada, Redi não
observou nenhum ovo nem larvas.
Fig 1. Experimento de Redi. Fonte: Lopes (1996, p. 33).
Com isso, Redi concluiu que, na caixa aberta, as moscas vinham e
depositavam seus ovos, os quais se transformavam nas larvas e estas em moscas
56
adultas e, na caixa coberta com o pano, nenhuma mosca conseguiu entrar e, por
essa razão, não surgiram nem ovos, nem larvas e nem moscas (ZAIA, 2003, p. 260).
De acordo com Zaia (2003, p. 260), os resultados dos
experimentos de Redi, apesar de simples, foram um duro golpe na geração
espontânea, porém alguns cientistas mantiveram-se resistentes, defendendo a
abiogênese, pois eles acreditavam que pequenos organismos, como os
“animálculos” de Van Leeuwenhoek, poderiam surgir de materiais não-vivos.
Em 1745, a geração espontânea foi fortalecida, quando o
naturalista inglês John Turberville Needham descobriu que os fluidos nutrientes,
mesmo depois de aquecidos e antes de colocados em frascos fechados, quando
resfriados, ficavam contaminados com microrganismos.
Needham demonstrou sua conclusão por meio do seguinte
experimento: colocou extratos em frascos de vidros que foram submetidos à
ebulição e, logo em seguida, lacrados hermeticamente. Alguns frascos ele fechou
com rolhas. Após alguns dias, ele verificou que em todos os frascos havia
microrganismos; o que, porém, ele não sabia é que antes de os frascos serem
lacrados o ar contaminado de micróbios penetrava nos mesmos. Isso fez com que
os defensores da geração espontânea acreditassem, ainda mais, que os
microrganismos poderiam ser formados a partir da matéria bruta.
Vinte anos após os resultados de Needham, o cientista italiano
Lazzaro Spallanzani advertiu que os micróbios existentes no ar poderiam ter
penetrado nas soluções de Needham após estas terem sido fervidas. Spallanzani
repetiu a experiência que Needham havia realizado, mas com uma diferença:
57
ferveu o caldo de carne por uma hora, deixou um frasco lacrado para impedir a
entrada de ar e tampou um outro com uma rolha.
Após alguns dias, Spallanzani observou que o frasco lacrado
permaneceu estéril e o arrolhado estava contaminado com microrganismos. Needham
não aceitou o resultado de Spallanzani, dizendo que, ao ferver o caldo de carne por
muito tempo, teria destruído a “força vegetativa” capaz de gerar novos seres.
Essa “força vegetativa” imaginária foi salientada pouco tempo após
os resultados de Spallanzani, quando Lavoisier expôs a importância do oxigênio
para os seres vivos. Assim, os experimentos de Spallanzani foram criticados pelo
fato de que nos frascos lacrados não havia oxigênio suficiente para manter a vida
dos microrganismos. Needham insistia que o ar era essencial para a vida e
também para a abiogênese. Como a maioria da opinião pública comungava da
mesma idéia de Needham, a abiogênese continuou acreditada (TORTORA;
FUNKE; CASE, 2003, p. 6).
Spallanzani não se deu por vencido. Voltou ao seu laboratório,
quebrou a boca de um dos seus frascos e ouviu o ruído do ar saindo. Para saber
se o ar estava entrando ou saindo do frasco, Spallanzani repetiu o experimento,
utilizando uma vela acesa próxima ao gargalo e concluiu que o ar estava entrando,
devido à ação da chama e, quando este era aquecido, o ar se expandia e saía.
Spallanzani preparou novos frascos, colocou água e sementes e vedou a boca dos
mesmos sob a chama, em seguida, fez com que o gargalo se afinasse, esticandoo.
Novamente aqueceu-os, vedou-os e, em seguida, quebrou-lhes as pontas junto
a uma vela acesa para demonstrar que o ar não estava entrando. Após alguns
dias, Spallanzani verificou que nos frascos preparados e aquecidos, não surgiam
58
os micróbios. Assim, a polêmica da “força vegetativa” deixou de existir (RAW;
SANT’ANNA, 2002, p. 22).
O cientista alemão Rudolf Virchow, em 1858, desafiou os adeptos
da geração espontânea, preconizando que células vivas poderiam originar-se
somente a partir de outras células vivas preexistentes, ou seja, pela biogênese.
Em 1847, após realizar estudos sobre a reprodução de animais
superiores, o médico naturalista Félix Pouchet debruçou-se sobre a questão da
abiogênese, realizando muitas experiências que pareciam provar a existência da
geração espontânea. Em seus experimentos com infusões esterilizadas de chá de
feno ao mercúrio constatou que na mistura havia crescimento de vida orgânica
(MARTINS, 1989, p. 11).
No entanto, o ilustre químico Pasteur assegurou que, se, no
experimento em questão, surgiu vida, ao introduzir-se ar esterilizado na infusão de
feno, era porque o ar ou o mercúrio estava contaminado. Pasteur realizou muitos
experimentos que confirmaram a geração espontânea, porém como ele não
acreditava que um ser pudesse surgir espontaneamente, optou por acreditar que
existia alguma falha em seus experimentos (MARTINS, 1989, p. 14).
Um teste que se destacou foi o de Pasteur, que utilizou frascos
expostos ao ar em elevada altitude, ocasionando a réplica de Pouchet. Pasteur
verificou que os frascos abertos em locais altos, nas montanhas, raramente, se
alteravam, enquanto que em lugares mais baixos contaminavam-se. Pouchet
contestou esses resultados e repetiu os experimentos de Pasteur apenas com uma
pequena diferença: utilizou uma lima aquecida para abrir os frascos e não uma
torquês, como o fez Pasteur (COLLINS e PINCH, 2003:127).
59
A conclusão foi que os fragmentos de vidro que caíam na infusão
estavam contaminados pela lima. Uma outra diferença entre o experimento de
Pasteur e o de Pouchet é que Pasteur utilizou infusões de levedura e Pouchet,
infusões de feno. Hoje, se sabe que certos esporos resistem a fervuras em
infusões de feno (COLLINS; PINCH, 2003, p. 127).
Segundo Martins (1989, p. 15), no “dia 30 de janeiro de 1860, a
Academia de Ciências de Paris propôs um prêmio no valor de 2.500 francos (Prêmio
Alhumbert) ao melhor trabalho que esclarecesse a questão das gerações espontâneas”.
Tanto Pouchet quanto Pasteur se inscreveram, com seus trabalhos,
da premiação, porém Pouchet acabou desistindo de participar, porque tudo
indicava que os membros da Academia de Ciências de Paris eram favoráveis aos
trabalhos de Pasteur.
Uma das evidências favoráveis aos trabalhos de Pasteur foi o fato
de que os membros da referida Academia eram opositores do darwinismo21 que,
naquela época, acreditava-se ser favorável à geração espontânea. Portanto, é
evidente que, caso se colocasse um fim à geração espontânea, também se
acabaria com o darwinismo. No dia 29 de dezembro de 1862, o prêmio foi entregue
ao único participante da premiação: Pasteur.
Pasteur demonstrou que os micróbios existiam no ar e poderiam
infectar soluções que aparentavam ser estéreis, além de que o ar, por si só, não
poderia criar microrganismos. Ele colocou líquido nutritivo (água, lêvedo de cerveja
21 Martins (1989:28) explica que: “Darwin, cuidadosamente evita se posicionar sobre o problema.
Após dizer os motivos que levaram Lamarck a aceitar a geração espontânea, afirma: “A ciência
ainda não provou a verdade desta crença, ou seja o que for que o futuro nos revele” (DARWIN,
The origin of species, p. 61). Mas era natural que tanto os opositores quanto os adeptos da geração
espontânea (por exemplo, ROHAUT, Transformisme) vissem uma conexão entre essas idéias”.
60
e suco de beterraba) em balões de vidro com gargalos estreitos e longos, que
foram aquecidos ao fogo e recurvados de modo a semelharem um “pescoço de
cisne” (fig. 2).
Pasteur ferveu o líquido dos frascos para matar os microrganismos
que ali se encontravam. Após a fervura, os frascos foram lentamente resfriados
para que os microrganismos presentes no ar fossem retidos nos gargalos curvos
dos balões, que funcionavam como filtro (COLLINS; PINCH, 2003, p. 119).
Fig. 2. Experimento de Pasteur. Fonte: Lopes (1996, p. 35).
Após a apresentação do experimento de Pasteur, passaram-se mais
de 60 anos até que a comunidade científica voltasse a questionar o problema da
origem da vida. Uma das razões dessa demora foi a quantidade de informações
obtidas a respeito da morfologia (formação) e das reações que acontecem no interior
da célula, responsáveis pela grande complexidade na constituição dos seres vivos.
61
Outro fator importante foi o desenvolvimento científico-tecnológico
que tornou possível estudar a composição química das estrelas pela
espectroscopia, desencadeando discussões a respeito da idade e formação da
Terra e do Sistema Solar.
Assim, a afirmação de que a Terra era muito antiga e que uma
competição entre moléculas poderia ter acontecido até o surgimento do primeiro
ser vivo, contribuíram para que muitos cientistas pensassem que os experimentos
de Pasteur não seriam suficientes para excluir a possibilidade da geração
espontânea, porém tais experimentos não poderiam ser feitos num curto espaço de
tempo, como defendiam os adeptos da abiogênese (ZAIA, 2003, p. 261).
Segundo Zaia (2003, p. 261), Darwin foi o primeiro a propor a teoria
segundo a qual os seres vivos nasciam da matéria bruta, por meio do aumento da
complexidade das substâncias formadas nas reações químicas; porém, Darwin não
divulgou suas idéias.
Em 1924, o bioquímico russo A. I. Oparin propôs uma teoria para
explicar a origem da vida e, em 1929, independentemente de Oparin, o geneticista
inglês J. B. S. Haldane propôs semelhante teoria. Esta proposta, hoje, é conhecida
como hipótese22 de Oparin-Haldane.
22 Segundo Zaia (2003, p. 261), a tentativa de explicação da origem da vida proposta por Oparin-
Haldane conduz os cientistas a pensarem na possibilidade da existência de vida em outros
planetas, pois, se em outros planetas houver condições adequadas, provavelmente existirá vida
neles. Existe também a possibilidade de que a vida não se originou aqui na Terra e sim que ela
pode ter surgido em outro planeta e posteriormente ter-se imigrada para cá. Zaia refere: “Darwin
foi o primeiro a escrever uma proposta de que a vida poderia ter surgido da matéria inanimada,
através de reações químicas. Porém, não despendeu tempo desenvolvendo tais idéias ou mesmo
divulgando-as” (2003:261). Se a hipótese de Oparin-Haldane estiver correta, então a vida pode
surgir da matéria inanimada, por abiogênese. Isso quer dizer que, alguém poderia produzir um ser
vivo em laboratório a partir dae matéria não-viva? É correta a hipótese de Oparin-Haldane?
Podemos perceber que a ciência nunca esta pronta, acabada, sempre há questionamentos em
busca de respostas para tentar entender o ser vivo em seu mundo.
62
De acordo com Oparin-Haldane, na atmosfera primitiva do nosso
planeta existiam gases como metano (CH4), amônia (NH3), hidrogênio (H) e vapor
de água (H2O). Sob altas temperaturas e descargas elétricas, esses gases foramse
combinando e formando biomoléculas (aminoácidos, lipídios, açúcares, purinas,
pirimidinas, etc); para que essas moléculas se unissem formando biopolímeros
(moléculas grandes como as proteínas) transcorreram milhões de anos; após os
quais essas macromoléculas uniram-se para formar os coacervados (agregados de
proteínas em meio aquoso).
Com o passar desses milhões de anos, reações químicas
começaram a ocorrer no interior dos coacervados até acontecer a formação da
“primeira coisa viva”. Vale a pena lembrar que existem muitas definições do que é
um ser vivo - nesta teoria é considerado ser vivo aquele que é capaz de captar
substâncias do meio ambiente e transformá-las em energia (metabolismo), gerar
descendentes (reprodução) e poder se transformar (evoluir) (ZAIA, 2003, p. 261).
A primeira demonstração experimental para tentar comprovar a
hipótese de Oparin-Haldane foi realizada em 1953, com um aparelho construído por
Stanley Miller e seu professor Harold Clayton Urey (fig. 3). Esse aparelho foi
construído de tal forma que se pudessem reproduzir as supostas condições existentes
na terra primitiva. Miller e Urey colocaram uma mistura dos gases amônia, metano,
hidrogênio e vapor de água, para fazer as vezes da terra primitiva, submetendo essa
mistura a descargas elétricas para simular as tempestades que teriam acontecido nos
primórdios, em nosso planeta. O aparelho continha um condensador para resfriar a
mistura dos gases, fazendo com que o vapor da água se condensasse, escorresse e
se acumulasse na parte inferior do aparelho.
63
Miller e Urey simularam as chuvas que se armazenavam nos lagos,
rios, mares e oceanos. Com um aquecedor ferveram a água acumulada para
transformá-la novamente em vapor, representando, assim, a evaporação da água
das chuvas. O resultado foi um líquido acumulado na parte inferior do aparelho, o
qual continha diversos compostos, entre os quais os aminoácidos alanina e glicina.
Atualmente, há muitos questionamentos a respeito dos gases presentes na
atmosfera primitiva. Alguns cientistas defendem que os gases mais abundantes
eram o gás carbônico (CO2) e o nitrogênio (N2) (ZAIA, 2003, p. 261).
Fig. 3. Experimento de Miller e Urey. Fonte: Amabis e Martho (1997, p.8).
2.2 ESTRUTURAÇÃO DA ANÁLISE HISTÓRICA
A análise a seguir é referente à reconstrução do problema da origem
da vida, envolvendo as seguintes categorias: linearidade; ciência normal; paradigma;
quebra-cabeça e relação teoria/experimento. Estas categorias apareceram no
capítulo 1 desta pesquisa. Portanto, retomaremos o texto sobre o problema da
origem da vida apresentado, neste capítulo 2, os acontecimentos deste texto,
relacionando-os com as categorias apresentadas no texto do capitulo 1.
64
Identificamos como linearidade a seqüência da história que pode
ser entendida, desde sua origem até os dias atuais, seguindo uma linha reta de
pensamento, como, por exemplo, alguns autores o fazem, ancorados nas idéias de
Aristóteles, asseverando que a geração espontânea surgiu há mais de 2 mil anos,
idéia posteriormente reforçada pelo experimento de produção de camundongos
proposta pelo biólogo Helmont. Dando seqüência à história linear, são
apresentados os experimentos realizados em 1668, pelo cientista que tentou
combater a geração espontânea, Francesco Redi, para, em seguida, serem
exibidos os trabalhos favoráveis à abiogênese, realizados em 1745 pelo padre
naturalista Needham, e as pesquisas contrárias à geração espontânea feitas em
1776 pelo biólogo italiano Spallanzani.
A seqüência da idéia de linearidade está nas experiências feitas
por Pasteur, em 1862, quando este cientista “colocou fim” à geração espontânea.
Para completar e finalizar a história linear pode ser apresentada a hipótese de
origem da vida, defendida por Oparin, em 1924, e o reforço desta hipótese por
meio dos experimentos de Miller, em 1953.
A ciência normal tem como base as pesquisas realizadas dentro de
um paradigma, com o objetivo de solucionar os problemas que vão surgindo.
Consideramos como ciência normal o período vigente em que as pesquisas são
realizadas de acordo com um paradigma universalmente aceito, como o sustentado
a respeito da existência dos micróbios e, também, da abiogênese de
camundongos. Esses dois exemplos nos mostram que a abiogênese, sendo o
paradigma da época, quando se pensava que os micróbios e os camundongos
nasceriam da matéria inanimada.
65
Se, conforme entende Kuhn (2003, p. 13), paradigma são “as
realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,
fornecem problemas e soluções, modelares para a comunidade de praticantes de
uma ciência”, podemos considerar como paradigma as realizações científicas,
quando se baseiam num único conhecimento como, por exemplo, o sustentado a
respeito da geração espontânea.
Dizemos ser a geração espontânea a idéia de que os seres vivos
surgiam da matéria inorgânica. Quando se conheceu a existência dos
microrganismos, os pesquisadores acharam impossível que os micróbios pudessem
reproduzir-se. Quando, porém, se deram conta de que esses seres insignificantes
eram seres vivos, passaram a acreditar que eles só poderiam surgir por abiogênese.
Como vimos, geralmente, tenta-se solucionar os problemas de
acordo com um paradigma. Mas, logo que não se é capaz de dar conta dos
problemas surgidos, o paradigma começa a enfraquecer-se, podendo, como
conseqüência, surgir outro paradigma considerado melhor para resolver as
questões que o anterior não conseguiu.
Os problemas a que se procura dar solução, segundo um
paradigma, podem ser considerados como peças de um quebra-cabeça que, aos
poucos, vai-se montando. Para Kuhn (2003, p. 59), quebra-cabeça é “aquela
categoria particular de problemas que servem para testar nossa engenhosidade ou
habilidade na resolução de problemas”. Visto dessa forma, o problema da origem
da vida é uma das peças do quebra-cabeça que se quer montar, obedecendo-se
ao paradigma da abiogênese para resolvê-lo. O conhecimento da existência dos
micróbios foi um problema (quebra-cabeça) que surgiu no paradigma da
66
abiogênese, porém ele não teve sustentação para solucionar o problema da origem
dos micróbios, perdeu forças e foi substituído por outro melhor (biogênese). Como
a ciência nunca está pronta e sempre existirão problemas na sua evolução,
podemos levantar outro exemplo de quebra-cabeça para o paradigma da
biogênese: existe vida em outro planeta?
Quanto à questão da relação teoria/experimento podemos atentar
para as idéias de Arruda, Silva e Laburú (2001): “teoria e experimento não são
independentes e antagônicos, mas contribuem ambos para a estruturação do
paradigma”, portanto, teoria/experimento contribuem para estruturar ou até mesmo
para reforçar um paradigma.
Podemos perceber que, na maioria das vezes, existe uma relação
de “simbiose” entre uma teoria e um experimento, pois ambos se fortalecem,
quando juntos dão estrutura para o paradigma do momento. Quanto a isso
podemos aceitar que o experimento realizado por Miller fortalece e ajuda a
estruturação da teoria de origem da vida proposta por Oparin. Um outro exemplo
que nos possibilita observar que a relação entre teoria/experimento dá estrutura a
um paradigma é o experimento de Pasteur, realizado com balões do tipo “pescoço
de cisne”, que permitiram estruturar e fortalecer a biogênese.
Vimos aqui a relação existente entre as categorias abordadas no
capítulo 1 desta pesquisa e o problema da origem da vida. Com isso, temos uma
visão mais clara das idéias kuhnianas, as quais nos permitem relacionar a história
da ciência ao problema da origem da vida abordada nos livros didáticos de Biologia
do ensino médio.
67
CAPÍTULO 3
Neste capítulo, serão apresentadas algumas descrições e análises
de um episódio da história da biologia: a origem da vida. Para isso, utilizaremos
alguns livros de Biologia do ensino médio, os quais nos ajudarão a perceber como
a história da ciência está sendo apresentada nos livros didáticos destinados aos
alunos e aos professores do nível médio.
Graças à disponibilidade dos livros existentes e ao livre acesso a
eles, escolhemos quatro livros que serão descritos e analisados: Favaretto e
Mercadante (2003); Sônia Lopes (1996); Amabis e Martho (1997) e Sídio Machado
(2003). Em seguida, relacionaremos a descrição desses livros com algumas
categorias, tais como: linearidade; ciência normal; paradigma; quebra-cabeça e
teoria/experimento, que apresentamos nos capítulos 1 e 2 dessa pesquisa. Com
isso teremos um parâmetro que nos auxiliará para verificarmos como os livros
didáticos de Biologia do ensino médio apresentam a história da ciência.
3.1 DESCRIÇÃO DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA APRESENTADA NO LIVRO DIDÁTICO DE
FAVARETTO E MERCADANTE
Favaretto e Mercadante (2003, p. 111) lembram que, há mais de
2.000 anos, Aristóteles lançou postulados, pelos quais os seres vivos surgiam em
virtude da existência de um princípio ativo ou vital, capaz de produzir matéria viva a
partir de matéria bruta, quando em condições favoráveis.
Segundo os autores (2003, p. 111), o médico, biólogo e
pesquisador de fisiologia vegetal, Jean Baptiste van Helmont, ensinava a produzir
68
camundongos a partir de camisa suada e grãos de trigo, sob a ação do princípio
ativo. Porém, era evidente que Van Helmont não utilizava método científico para tal
experimento, pois, se o empregasse, com certeza, os resultados seriam diferentes,
por exemplo, se ele colocasse uma camisa num lugar aberto e outra dentro de uma
caixa fechada. Mas como o pensamento da época estava voltado somente para a
abiogênese, ninguém questionava o experimento.
Favaretto e Mercadante (2003, p. 111) explicam que, em 1668,
começaram a surgir grandes pensadores que passaram a contestar a geração
espontânea. O médico e biólogo Francesco Redi fez experimentos para provar a
origem dos insetos, colocando pedaços de carne em frascos abertos e em frascos
fechados, para observar a quantidade de larvas surgidas dentro deles. Porém, os
defensores da abiogênese contestaram, dizendo que, no frasco fechado não havia
entrada de ar e, em razão disso, as larvas não conseguiam desenvolver-se. Os
autores (2003, p. 111) dizem que René Descartes e Isaac Newton, dois grandes
pensadores de todos os tempos, eram defensores da abiogênese e isso fortalecia
ainda mais a idéia da origem da vida.
Segundo Favaretto e Mercadante (2003, p. 111), alguns avanços
tecnológicos como, por exemplo, o desenvolvimento do microscópio, reforçaram
idéias falsas, pelo fato de que os pesquisadores, ao observarem pelo microscópio
gotas de água, acharam inexpressivos os inúmeros seres minúsculos que existiam
no material observado.
Os autores (2003, p. 111) explicam que, em 1745, o padre
naturalista inglês, John Needham, realizou algumas experiências com caldos
nutritivos, imaginando o surgimento dos microrganismos por abiogênese. Em 1776,
69
o padre e biólogo italiano, Lazzaro Spallanzani, repetiu as experiências de
Needham. Em 1859, o cientista francês, Félix Pouchet, publicou uma obra em
defesa da geração espontânea e, em 1860, foi ofertado pela Academia Francesa
um prêmio para o pesquisador que conseguisse realizar um experimento que
provasse a abiogênese.
De acordo com os autores (2003, p. 112), por volta de 1860, o
cientista francês Louis Pasteur já havia demonstrado que o ar continha micróbios e
que estes causavam infecção. Mas, foi em 1862, que Pasteur demonstrou, numa
experiência, em que utilizou frascos com gargalos retorcidos, que um ser vivo não
nasce espontaneamente, ou seja, para nascer há necessidade de um outro
preexistente: biogênese.
Na seqüência, os autores (2003, p. 113) apresentam a hipótese
proposta por Oparin e Haldane, em 1924, aceita atualmente, para explicar a origem
da vida no Universo, Segundo essa hipótese, os seres vivos teriam surgido como
resultado lento e gradual de transformações de algumas substâncias simples como
metano, amônia, hidrogênio e vapor de água, dando origem às unidades básicas
de formação dos seres vivos. Posteriormente, tal hipótese foi confirmada pelo
experimento de Stanley Miller, em 1953, que foi apresentado por Favaretto e
Mercadante (2003, p. 113).
3.1.1Categorias presentes no livro de Favaretto e Mercadante
Na apresentação histórica do problema da origem da vida exibida no
livro didático de Favaretto e Mercadante (2003, p. 111), identificamos a presença de
algumas categorias: I) a linearidade, existente nos momentos em que os autores
70
apresentam, numa seqüência de períodos, vários cientistas, tais como Aristóteles,
Helmont, Redi, Needham, Spallanzani, Pasteur, Haldane, Oparin e Miller e seus
trabalhos relacionados com o problema da origem da vida; II) a ciência normal,
notada quando Favaretto e Mercadante exibem a “receita para produção de
camundongos”, visto que a abiogênese estava funcionando muito bem e, portanto,
não havia o que questionar, naquela época; III) a existência de um paradigma,
visível no momento em que é apresentado o conhecimento da vida dos micróbios,
pois os cientistas tentaram solucionar o problema da origem desses seres
minúsculos de acordo com a abiogênese (que era o paradigma, naquele momento).
3.1.2Análise da Apresentação do Problema da Origem da Vida Exibido no Livro
Didático de Favaretto e Mercadante
Com relação ao livro didático de Favaretto e Mercadante (2003),
podemos observar que os autores descrevem diversos fatos, datas, cientistas e
seus experimentos, dando a impressão que os mesmos, no que se refere ao
problema da origem da vida, foram feitos ao longo do tempo, por vários cientistas,
que se dedicaram à mesma pesquisa e com o mesmo objetivo, cada um
contribuindo com uma parcela e, numa seqüência, em períodos diferentes. A esse
respeito, podemos ver, no livro de Favaretto e Mercadante (2003, p. 111), um
exemplo de história linear de pesquisa, quando os autores relatam:
Há mais de 2 mil anos, Aristóteles lançou postulados que nortearam por
muito tempo diversas áreas do conhecimento. Suas idéias sobre a origem
da vida, por exemplo, baseavam-se na existência de um princípio ativo (ou
princípio vital), capaz de produzir matéria viva a partir de matéria bruta.
Por essa citação, fica evidente para nós que, desde a época de
Aristóteles, os cientistas se preocupavam com o problema da origem da vida e que
o mesmo foi sendo solucionado ao longo do tempo.
71
Ao afirmarem que a origem da vida, na época de Aristóteles,
baseava-se num princípio vital, os autores dão a entender ao leitor que os
conhecimentos atuais acerca da origem da vida foram produto de idéias e
pesquisas seqüenciadas numa linha de mesmo pensamento. Sabemos que, de
acordo com Kuhn, não foi assim que a história da origem da vida ocorreu e que a
história não se dá de forma linear e sim por saltos qualitativos.
Existem, no livro de Favaretto e Mercadante (2003, p. 111),
exemplos certos sobre a origem da vida, graças aos quais entendemos o que Kuhn
(2003, p. 29) denomina de “ciência normal”. Podemos citar, por exemplo, o trecho
em que os autores registram:
[...] para o pensamento dominante da época, a geração espontânea era
algo tão evidente que não tinha de ser testado [...] os preconceitos e
suposições dos cientistas a respeito do assunto sobre o qual estão
investigando podem influenciar o método de execução dos experimentos e
sua interpretação.
Como vimos, no capítulo 1 desta pesquisa, a ciência normal é a
estabilidade de certos princípios, durante determinado período, em que não se
colocam em dúvida alguns preceitos ou teorias, que estão sendo desenvolvidos
satisfatoriamente, como foi o caso da abiogênese durante uma época.
Podemos constatar que, no entender de Kuhn, a abiogênese
estava sendo muito bem aceita, e não havia motivos para os pesquisadores criar
novos preceitos ou alterar a maneira de pensar a respeito da abiogênese.
Para Kuhn (2003, p. 45), “as áreas investigadas pela ciência
normal são certamente minúsculas; ela restringe drasticamente a visão do
cientista”.
72
Percebemos, ainda, que a abiogênese era um paradigma naquela
época e como a sua tendência é limitar, estreitando o campo da pesquisa, os
avanços científicos são restritos, tornando-se acessíveis apenas aos membros da
comunidade. Conforme os dizeres de Kuhn (2003, p. 44), “um paradigma pode ser
muito limitado, tanto no âmbito como na precisão, quando de sua primeira
aparição”. Visto dessa forma, o paradigma pode limitar muitos conhecimentos e
impedir novos desenvolvimentos científicos. Podemos constatar isso nos seguintes
dizeres de Favaretto e Mercadante (2003, p. 111):
[...] quando os pesquisadores viram, em uma gota de água, grande
quantidade de seres minúsculos, acharam-nos muito insignificantes para
que pudessem se reproduzir. Julgaram que só poderiam aumentar em
número por abiogênese.
Como vimos na citação acima, na época em que a teoria da
abiogênese era considerada o paradigma vigente, as pesquisas científicas giravam
em torno dessa teoria. Quando os pesquisadores tiveram conhecimento da
existência dos micróbios, por meio do microscópio, a teoria da abiogênese parecia
ser tão forte que os cientistas ignoravam qualquer outra parte digna que pudesse
contradizer o que universalmente se aceitava como definido. Se o paradigma não
fosse tão limitado, os pesquisadores tenderiam a “olhar com outros olhos” a origem
desses seres tão minúsculos.
Com relação à apresentação dos trabalhos e das idéias de alguns
cientistas famosos, como, por exemplo, Aristóteles, a impressão que nos fica é a
de que a história que lemos no livro didático de Favaretto e Mercadante (2003, p.
111) mostra que ela não é utilizada como instrumento para a compreensão do
conteúdo e sim para a ilustração deste. Podemos observar esse fato quando os
autores iniciam o assunto com estas palavras:
73
[...] há mais de 2 mil anos, Aristóteles lançou postulados que nortearam
por muito tempo diversas áreas do conhecimento. Suas idéias sobre a
origem da vida, por exemplo, baseavam-se na existência de um princípio
ativo (ou princípio vital), capaz de produzir matéria viva a partir de matéria
bruta, quando em condições favoráveis.
Sabemos que as idéias de Aristóteles foram importantes para o
desenvolvimento científico, porém, em se tratando do problema da origem da vida,
relatado nos livros didáticos, elas, talvez, não contribuam para o entendimento do
assunto, uma vez que podem servir apenas para ilustrar a história. Já comentamos
no capítulo 1 desta pesquisa que Kuhn (2003, p. 177) esclarece:
É característica dos manuais científicos conterem apenas um pouco de
história, seja um capítulo introdutório, seja, como acontece mais
freqüentemente, em referências dispersar aos grandes heróis de uma
época anterior. Através dessas referências, tanto os estudantes como os
profissionais sentem-se participando de uma longa tradição histórica.
Contudo, a tradição derivada dos manuais, da qual os cientistas sentemse
participantes, jamais existiu.
Vemos uma história ilustrativa também num outro trecho do livro de
Favaretto e Mercadante (2003, p. 112) sobre o problema da origem da vida.
Pedimos escusas ao leitor pela extensa citação que faremos, mas ela é necessária
para demonstrar que Pouchet, dificilmente, é contemplado nos livros didáticos e,
quando algum autor o apresenta, ele aparece como mais um personagem para
ilustrar a história. Confira a veracidade dessa afirmação no seguinte tópico de
Favaretto e Mercadante (2003, p. 112):
[...] Houve forte objeção contra os resultados de Spallanzani,
principalmente dos seguidores de Needham. Eles diziam que Spallanzani
havia “torturado” os caldos nutritivos, aquecendo-os a uma temperatura
alta por tanto tempo que destruíra o princípio ativo, e que seus frascos
fechados impediam a entrada do ar, essencial para a abiogênese.
Mudanças em conceitos antigos são lentas. A contestação apresentada
por Needham foi suficiente para derrubar os resultados convincentes (pelo
menos para nós) dos trabalhos de Spallanzani.
Em 1859, o cientista francês Félix Pouchet publicou uma extensa obra,
reunindo os argumentos que lhe pareciam mais conclusivos em defesa da
hipótese da abiogênese. A questão tornava-se tão intrincada, irritante e
passional que, em 1860, a Academia de Ciências de Paris instituiu um
prêmio para o pesquisador que realizasse experimentos esclarecedores
sobre a questão.
74
Nessa época, o cientista francês Louis Pasteur já havia demonstrado que
o ar representa uma fonte de microrganismos e que eles são causadores
de infecções. São famosos seus estudos sobre a contaminação e a
conservação dos alimentos e a respeito da importância dos métodos de
esterilização.
Os trabalhos de Pasteur e os de François Appert possibilitaram o
desenvolvimento da indústria de alimentos em conserva e da
pasteurização.
Em 1862, Pasteur elaborou um engenhoso experimento em que diversos
caldos nutritivos eram colocados em frascos de vidro. Aquecia os gargalos
de alguns frascos, tornando-os maleáveis, e os curvava (frascos de
pescoço de cisne). Outros frascos permaneciam com o gargalo curto e
reto. A seguir, fervia durante alguns minutos os caldos. Nos frascos de
pescoço reto, ocorria rápida contaminação do caldo; nos frascos de
pescoço de cisne, mesmo depois de meses, os caldos permaneciam
claros e sem germes.
Como os frascos ficavam abertos, não se podia falar da impossibilidade de
entrada de ar. Com a curvatura do gargalo, os microrganismos do ar
ficavam retidos na superfície interna úmida e não alcançavam o caldo.
Quando Pasteur quebrava o longo pescoço de um frasco, em um ou dois
dias o caldo era invadido por bactérias e fungos, exatamente como nos
frascos de gargalo reto. Isso também acontecia quando o frasco era
inclinado, de modo que o caldo entrasse em contato com a poeira
acumulada na curvatura.
Simples e completo, o experimento não permitiu contra-argumentação:
não impedia a entrada do ar com o imaginado princípio ativo, pois
mantinha os frascos abertos e preservava a capacidade de os caldos
desenvolverem vida, o que acontecia quando os frascos eram quebrados
ou inclinados.
Pasteur foi contemplado com o prêmio da Academia de Ciências. A partir
de então, os críticos da biogênese calaram-se. Nova interrogação passou
a ocupar as mentes dos investigadores: como surgiram os primeiros
organismos vivos?
Na citação acima, podemos verificar que os autores apenas
ilustram Pouchet, que foi, conforme observamos apresentado como um cientista
“fracassado”, que, simplesmente, publicou uma obra com suas idéias e depois saiu
de cena. Todo o mérito coube a Pasteur. Ora, sabemos que não foi assim que
aconteceu. Os experimentos de Pasteur não foram nem simples nem completos,
como Favaretto e Mercadante referem; muito ao contrário, exigiram muito esforço
de Pasteur e de outros cientistas que tentavam desvendar o enigma da origem da
vida. Pasteur realizou vários experimentos e foi muito persistente nas suas idéias,
pois ele sabia o que era certo e o que era errado nos seus resultados (COLLINS;
PINCH, 2003, p. 129).
75
Todavia, Pasteur tinha como defensores os membros da Academia
de Ciências de Paris e isso contribuiu (e muito) para fortificá-lo. Seus experimentos
foram objetos de muitas contra-argumentações, porém, se eles não fossem contraargumentados,
Pasteur não teria realizado suas pesquisas nas montanhas. Havia
um equilíbrio entre as idéias de Pasteur (biogênese) e as idéias de Pouchet
(abiogênese). Portanto, expor que os experimentos de Pasteur foram simples e
completos e não permitiram contra-argumentação, seria mais uma ilustração de
mais um personagem da história do problema da origem da vida.
Outro trecho que podemos considerar como história ilustrativa no
livro de Favaretto e Mercadante (2003, p. 111) é aquele em que os autores
afirmam que “René Descartes e Isaac Newton – dois dos maiores pensadores de
todos os tempos – foram ilustres defensores da abiogênese”.
Retomando o capítulo 1 desta pesquisa, vimos que, para
Matthews, essa abordagem histórica, ou seja, ilustrativa, possui um problema:
ela não permite uma integração entre o conteúdo ensinado e a história dos
principais aspectos desse conteúdo, pois com essa complementação não
haveria separação entre o conteúdo e sua história. Para que isso ocorra,
Matthews (1994, p. 71) assevera que um conteúdo de ciências deve levar em
conta não apenas a história, mas também os aspectos filosóficos que estão
presentes no desenvolvimento das teorias científicas, sobretudo o próprio fato
de que uma abordagem filosófica pode auxiliar a alcançar a integração
desejada. Uma abordagem filosófica, nesse caso, seria a apresentação das
pesquisas realizadas por Pouchet, pois pelo que se percebe, havia um equilíbrio
entre os trabalhos de Pouchet e os de Pasteur.
76
Que a história relatada no livro de Favaretto e Mercadante (2003, p.
112) é ilustrativa podemos constatar em um outro excerto desses autores, quando
eles relatam o seguinte:
Nessa época, o cientista francês Louis Pasteur já havia demonstrado que
o ar representa uma fonte de microrganismos e que eles são causadores
de infecções. São famosos seus estudos sobre a contaminação e a
conservação dos alimentos e a respeito da importância dos métodos de
esterilização.
Os trabalhos de Pasteur e os de Fraçois Appert possibilitaram o
desenvolvimento da indústria de alimentos em conserva e da
pasteurização.
Em 1862, Pasteur elaborou um engenhoso experimento em que diversos
caldos nutritivos eram colocados em frascos de vidro. Aquecia os gargalos
de alguns frascos, tornando-os maleáveis, e os curvava (frascos de
pescoço de cisne). Outros frascos permaneciam com o gargalo curto e
reto. A seguir, fervia durante alguns minutos os caldos. Nos frascos de
pescoço reto, ocorria rápida contaminação do caldo; nos frascos de
pescoço de cisne, mesmo depois de meses, os caldos permaneciam
claros e sem germes.
Notamos que nessa ilustração há apenas uma informação,
praticamente sem relação com o assunto, e que os autores destacam essa
informação em um texto referente aos trabalhos de Pasteur. Como vimos no
capítulo 1 desta pesquisa, nessa abordagem histórica, ou seja, ilustrativa, não
importa a forma como ela é contada, pois seu conhecimento não é requerido para
que o estudante apreenda o conteúdo estudado, podendo ser considerada também
como ilustrativa, devido ao fato de ela servir apenas como ilustração.
Dessa forma, a história seria uma espécie de apêndice do
conteúdo ministrado, algo como um box, no qual se contaria uma história de algum
conceito científico. Vale a pena lembrar que não queremos dizer que essa
abordagem não tenha seus méritos, mas apenas que ela não está inserida
diretamente no conteúdo. Como afirmou Silva (2004b, p. 8-9), dessa forma, o livro
didático se apresenta como “historiograficamente instruído”, nele a história ilustra
77
apenas o conhecimento principal, não servindo de subsídio para a compreensão do
conteúdo que está sendo estudado.
3.2 DESCRIÇÃO DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA APRESENTADA NO LIVRO DIDÁTICO DE
SÔNIA LOPES
Lopes (1996, p. 33) inicia o assunto apresentando as idéias da
origem da vida. Para isso, explica que atualmente a idéia da biogênese é aceita
com facilidade, porém, no passado, acreditou-se na abiogênese. A abiogênese, de
acordo com a autora, surgiu de um erro de interpretação de fatos cotidianos como,
por exemplo, o surgimento de moscas nas carnes em putrefação. A interpretação
precipitada de que as moscas nascem de cadáveres em putrefação levou os
cientistas de uma época a admitir que a carne em decomposição transformava-se
em moscas. A autora explica que na época não se dispunha dos meios de
observação hoje disponíveis (LOPES 1996, p. 33).
Na seqüência, Lopes (1996, p. 33) apresenta os experimentos
realizados por Francesco Redi em 1860, nos quais ele utilizou frascos abertos e
fechados para acompanhar o surgimento e desenvolvimento de insetos na carne.
Tais foram, como explica a autora, as primeiras experiências contra a abiogênese.
A seguir, Lopes (1996, p. 34) argumenta que, com a utilização do
microscópio, o mundo dos micróbios foi revelado, possibilitando desvendar o
mistério da origem desses seres vivos.
Segundo a autora (1996, p.34), por volta de 1745, John T.
Needham demonstrou em experimentos que, em vários tipos de infusão, em
recipientes fechados ou não, apareciam microrganismos, concluindo que existia
78
uma “força vital” especial, responsável pelo aparecimento das vidas microscópicas.
Com isso, Needham defendia a geração espontânea. Em 1770, o cientista italiano
Abbey Lazzaro Spallanzani fez sérias críticas aos experimentos de Needham,
provando que o aquecimento prolongado de substâncias orgânicas não propiciava
o desenvolvimento de microrganismos. Entretanto, Needham saiu fortalecido, o
que consolidou ainda mais a abiogênese.
De acordo com Lopes (1996, p. 34), por volta de 1860, Louis
Pasteur realizou experimentos com balões do tipo “pescoço de cisne” e conseguiu,
definitivamente, provar que os seres vivos nascem a partir de outros preexistentes,
colocando um ponto final na geração espontânea. Pasteur detectou, ainda, a
presença de micróbios no ar atmosférico.
Na seqüência, Lopes (1996, p. 35) explica que esclarecida a
origem dos seres vivos, uma outra pergunta começa a instigar os cientistas: Como
foi que se originou o primeiro ser vivo?
Por fim, a autora apresenta a hipótese de origem da vida proposta
na década de 20, por Oparin e Haldane.
3.2.1Categorias presentes no livro de Sônia Lopes
Lopes (1996, p. 33) apresenta o problema da origem da vida a
partir das seguintes categorias: I) a linearidade nos é transmitida em vários
trechos, como, por exemplo, quando a autora refere que hoje aceitamos que os
seres vivos surgem por meio da biogênese, porém no passado o entendimento era
outro. O trecho que relata que a concepção atualmente aceita é o resultado de
pensamentos anteriores nos conduz à idéia de linearidade; II) constatamos que a
79
autora expôs a hipótese de origem da vida proposta por Oparin e Haldane e não
mencionou o experimento de Miller. Como vimos, há uma relação entre
teoria/experimento, pois ambos contribuem para estruturar o paradigma. Neste
sentido, o experimento de Miller seria uma espécie de reforço da teoria de Oparin e
Haldane.
3.2.2Análise da Apresentação do Problema da Origem da Vida Exibido no Livro
Didático de Sônia Lopes
No livro de Lopes (1996, p. 33), vemos que a autora inicia o
problema da origem da vida apresentando:
Hoje aceita-se facilmente a idéia de que os seres vivos originam-se de
outros seres vivos: é o que chamamos de biogênese. No passado,
entretanto, essas noções não eram aceitas e as tentativas de explicação
eram bem diferentes.
Essa idéia, transmitida por Lopes, segundo a qual a atual
concepção da origem da vida foi o resultado de conhecimentos preexistentes nos
conduz a uma idéia de linearidade. Quanto a isso, Kuhn (2003, p. 178) afirma que
existe “uma tendência persistente a fazer com que a história da ciência pareça
linear e cumulativa, tendência que chega a afetar mesmo os cientistas que
examinam retrospectivamente suas próprias pesquisas”. Como mencionamos no
capítulo 1 desta pesquisa, essa idéia não deve prevalecer e é esse o entendimento
de Kuhn (2003, p. 178), fazer com que a história da ciência não pareça linear e
cumulativa, chegando a afetar até mesmo os cientistas que examinam suas
próprias pesquisas.
Mais adiante, a autora apresenta os trabalhos de alguns cientistas
como, por exemplo, Redi, Needham, Spallanzani e Pasteur que pesquisaram o
80
problema da origem da vida. Expõe também que o pesquisador Pasteur
demonstrou por meio de um experimento a solução do problema. Lopes (1996, p.
34), por exemplo, salienta:
Louis Pasteur, por volta de 1860, através de seus célebres experimentos
com balões do tipo “pescoço de cisne”, conseguiu provar definitivamente
que os seres vivos originavam-se de outros seres vivos.
Essa citação indica o momento em que a história apresentada por
Lopes parece ser linear e cumulativa. A autora, ao dizer que Pasteur provou
definitivamente a origem dos seres vivos, dá-nos a entender que havia um
problema a ser solucionado e que vários cientistas trabalharam para solucioná-lo,
e, ainda, que Pasteur simplesmente encontrou a solução. Percebe-se, nesse
trecho, que cada pesquisador deu sua parcela de contribuição e que se unindo
todas elas, chegou-se enfim à explicação para a origem da vida. Isso pode levar o
aluno a pensar que a ciência é algo pronto e acabado e não em construção.
A ciência, nas palavras de Kuhn (2003, p. 180), não é como o que
ocorre “num processo freqüentemente comparado à adição de tijolos a uma
construção, os cientistas juntaram um a um os fatos, conceitos, leis ou teorias ao
caudal de informações proporcionados pelo manual científico contemporâneo”.
Talvez a ciência não evolua dessa forma, pois em cada geração os cientistas
trabalham com os problemas da sua época, utilizando suas “ferramentas” para
tentar dar uma solução para o problema.
No entanto, ao apresentar Pasteur, a autora enaltece o cientista,
tornando-o um “herói”, o responsável pela solução do problema. Para ela, os
demais eram “vilões”, só cometeram erros, só fizeram confusões. A história,
apresentada dessa forma, pode ser considerada também como ilustrativa, pois dá
81
a entender que Pasteur resolveu o problema com muita facilidade. No entanto,
nem todos acreditam que tenha sido tão fácil como Lopes apresenta.
Não queremos, de forma alguma, tirar o mérito do brilhante
cientista Pasteur, pois a sua contribuição na solução do problema da origem da
vida, que muito afligia a comunidade da época, foi muito importante. Porém, a
autora, ao expor como foi solucionado o problema da abiogênese, personalizou
demais a história, destacando Pasteur como o único “herói”. Se Lopes tivesse
relatado as controvérsias havidas entre Pasteur e Pouchet, o assunto exposto
poderia ter sido mais bem entendido, pois como apresentamos no capítulo 1 desta
pesquisa, “a história da ciência é o cerne para a solução de problemas na busca de
um entendimento do mundo em que vivemos” (MAYR, 1998, p. 15).
Segundo Collins e Pinch (2003, p. 116), “tendemos a acreditar que
a concepção moderna foi moldada de maneira rápida e decisiva”. É essa imagem
que Lopes (1996, p. 34) transmite ao apresentar Pasteur como o finalizador da
geração espontânea.
Podemos perceber que os resultados alcançados por Pasteur e
apresentados no livro didático de Lopes dão a impressão de que a biogênese foi
provada de forma definitiva, mas nós sabemos que não foi bem assim. Convém
ressaltar que, naquela época, houve manobras políticas, ridicularização e criticas;
no entanto Pasteur atraiu fazendeiros, cervejeiros e médicos para suas idéias e
isso enfraqueceu Pouchet.
Collins e Pinch (2003, p. 125) afirmam que, no século XIX, “as
disputas científicas eram resolvidas, nomeando-se comissões da Academia
Francesa de Ciências, sediada em Paris para decidir a questão”. A Academia
82
ofereceu um prêmio “àquele que, por meio de experimentos bem conduzidos,
trouxesse novos esclarecimentos à questão da assim chamada geração
espontânea” (COLLINS; PINCH, 2003, p. 125). Nessa época, os cientistas
pensavam que a geração espontânea estivesse relacionada com o darwinismo.
Então, como muitos pesquisadores da Academia Francesa não apoiavam a teoria
da evolução de Darwin, o secretário dessa Academia aproveitou o momento para
tentar derrubar Darwin e seus seguidores.
Pouchet, defensor da abiogênese apresentou os relatórios dos
resultados de seus experimentos para a comissão da Academia. Porém, como a
maioria dos membros da Academia era opositora às idéias de Darwin, esta não
apoiou os resultados dos trabalhos de Pouchet. De acordo com Collins e Pinch
(2003, p. 125), “todos os membros da comissão não simpatizavam com as idéias
de Pouchet e alguns anunciaram suas conclusões antes mesmo de examinar os
relatórios”. Com isso, Pouchet decidiu retirar-se da disputa, “deixando que Pasteur
recebesse, incontestado, o prêmio” (COLLINS; PINCH, 2003, p. 125).
Assim, na tentativa de atacar Darwin, destruíram as idéias da
abiogênese de Pouchet. Portanto, segundo Collins e Pinch (2003, p.129), “os que
consideram, que a ciência está justificada porque “deu tudo certo” no final,
deveriam pensar novamente”, pois sabemos que havia possibilidade de os
experimentos de Pasteur darem errado, como, por exemplo, poderia ocorrer com
alguns esporos que são resistentes ao aquecimento de 100ºC, mas Pasteur sabia
o que poderia considerar erro e o que poderia contar como resultado.
Podemos destacar aqui a importância e a força de um paradigma.
Vimos que os franceses rejeitaram os trabalhos de Pouchet e isso os deixou
83
predispostos a refutar qualquer contato com outro paradigma, pois, uma vez aceito
um, não se adere a outro. Com isso, o paradigma torna-se tão rígido e fechado que
não dá margens para novas descobertas e essa é uma de suas desvantagens, pois
os cientistas que aderem a um paradigma prendem-se totalmente a ele, ignorando
qualquer forma de contato com outro. Portanto, não percebemos a noção de
paradigma, no trecho do livro didático de Lopes, quando esta autora apresenta os
trabalhos de Pasteur.
No que diz respeito à relação entre teoria e experimento, podemos
concluir que, como a maioria dos livros didáticos apresenta o experimento de
Miller, Lopes, ao tratar do problema da origem da vida, não o menciona. De acordo
com Zaia (2003, p. 261), esse experimento foi a primeira evidência para comprovar
a hipótese atual de origem da vida proposta por Oparin e Haldane.
Se considerarmos as idéias de Popper sobre a importância da
experimentação numa teoria, podemos dizer que, para ser considerada como
verdadeira, uma hipótese ou teoria deve ser comprovada, pois elas são passíveis
de falseamento; caso contrário, não podem ser tomadas como científicas, sendo,
portanto, a experimentação “um instrumento de detecção do erro”. Vista dessa
forma, a ciência é compreendida como um processo de “superação de teoria por
meio do contraste empírico, o que levaria a uma aproximação sucessiva da
realidade por meio de teorias cada vez mais verdadeiras” (ARRUDA; SILVA;
LABURÚ, 2001).
Com isso, as teorias científicas, na visão de Popper, são aquelas
que “passam pelo crivo do experimento ou, pelo menos, as que produzem
conseqüências empiricamente testáveis” (ARRUDA; SILVA; LABURÚ, 2001). Para
84
Popper, os experimentos refutam uma teoria ou a confirmam; ou seja, o
experimento tem como função apenas confirmar ou refutar as teorias.
Entretanto, de acordo com as idéias de Arruda, Silva e Laburú
(2001), “teoria e experimento não são independentes e antagônicos, mas
contribuem ambos para a estruturação do paradigma”; havendo, nesta visão, uma
ligação entre a teoria e o experimento, no sentido de reforçar a articulação do
paradigma. Um exemplo disso é a construção de aparelhos, que contribuem para a
solução de problemas, como a máquina de Atwood na mecânica newtoniana.
Freqüentemente a teoria do paradigma está diretamente implicada no
trabalho de concepção da aparelhagem capaz de resolver o problema.
Sem os Principia, por exemplo, as medições feitas com a máquina de
Atwood não teriam qualquer significado (KUHN, 2003, p. 48).
De acordo com as idéias kuhnianas, no desenvolvimento da
ciência, as atividades experimentais estão inseridas nos processos pela ciência
normal, como também estão relacionadas aos momentos de crise e formação de
novos paradigmas. Assim, os problemas abertos, quando um novo paradigma é
proposto, serão objetos de estudo no decorrer da atividade normal da ciência
(ARRUDA; SILVA; LABURÚ, 2001).
Para Kuhn (2003, p. 54), alguns dos problemas da ciência “visam
simplesmente à clarificação do paradigma por meio de sua reformulação”, uma vez
que reformulações semelhantes de um mesmo paradigma aconteceram
sucessivamente em todas as ciências. Todavia, os problemas surgidos em
decorrência da articulação do paradigma são concomitantemente experimentais e
teóricos, como o exemplo da máquina de Atwood acima citado.
85
Retomando o capítulo 2 desta pesquisa, lembramos que o
conhecimento da teoria celular foi uma das mais importantes realizações na
história da Biologia; sabemos que a maioria das células são invisíveis a olho nu e
para o seu conhecimento foi necessário o uso de um instrumento que permitisse a
visualização de células: o microscópio.
Segundo Moore (1996, p. 14), a Citologia nasceu no dia 15 de abril
de 1663, quando Hooke apresentou sua observação em cortiça para seus colegas
da Royal Society em Londres. “Esse era o início de dois séculos de observações e
experimentações que estabeleceram a Teoria Celular”. Entretanto, a importância
das células somente se conheceu após a proposta da hipótese de que todos os
organismos vivos eram constituídos de células ou de produtos celulares.
Morre refere: “Essa hipótese foi formulada e testada no começo do
século XIX e está associada principalmente a três cientistas: R. J. H. Dutrochet,
Matthias Jacob Schleiden e Theodor Schwann” (MOORE, 1996, p. 15). Podemos
constatar que a experimentação foi muito importante para a estruturação da Teoria
Celular e que, uma vez aceita esta teoria, vários cientistas trabalharam utilizando,
na maioria das vezes, instrumentos para resolver os problemas surgidos nesse
novo paradigma.
Se teoria e experimento, segundo Arruda, Silva e Laburú (2001),
contribuem para a articulação do paradigma, então, o experimento de Miller é um
exemplo que serviu para reforçar uma teoria proposta. Vendo dessa forma,
acreditamos que a apresentação da hipótese de Oparin e Haldane, juntamente
com o experimento de Miller, pode tornar mais compreensível o conteúdo, uma vez
que a presente pesquisa é referente à apresentação da história da ciência nos
86
livros didáticos e estes são geralmente utilizados por estudantes ou leigos no
assunto.
Em se tratando da história da ciência exposta em livros didáticos,
que é a questão central da nossa pesquisa, vemos que Lopes, ao apresentar o
problema da origem da vida, não mencionou o experimento de Miller. O fato de
Lopes não o ter apresentado, não significa que a hipótese de origem da vida
proposta por Oparin e Haldane, aceita atualmente, não foi apresentada.
3.3 DESCRIÇÃO DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA APRESENTADA NO LIVRO DIDÁTICO DE
AMABIS E MARTHO
Amabis e Martho (1997, p. 5) iniciam o assunto da origem da vida,
explicando que a abiogênese tornou-se inconsistente após os experimentos de
Redi e Pasteur. Redi começou a investigar a origem dos seres vivos a partir de
observações de moscas voando em torno de cadáveres e supôs que os vermes
pudessem ser larvas originadas dos ovos dessas moscas.
De acordo com Amabis e Martho (1997, p. 6), a origem dos
micróbios dividiu a comunidade científica em duas opiniões: os que acreditavam
que os micróbios originavam-se por geração espontânea e os que defendiam que
os seres microscópicos originavam-se de “sementes” presentes no ar. Essa dúvida
permaneceu até meados do século XIX, quando Louis Pasteur demonstrou, em
seus experimentos, que os micróbios resultam da contaminação da matéria por
microrganismos (ou por esporos) existentes no ar (AMABIS; MARTHO, 1997, p. 7).
Segundo Amabis e Martho (1997, p. 7), ao ruir a teoria da geração
espontânea, surgiram entre os cientistas algumas dúvidas: Como e de que maneira
87
surgiu o primeiro ser vivo e em que época? A teoria aceita atualmente para a
origem da vida e explicada pelos autores, é aquela que leva os cientistas a admitir
que os primeiros seres vivos surgiram espontaneamente na Terra primitiva e
evoluíram ao longo do tempo, dando origem às espécies atuais.
Na seqüência relata-se que Miller e Urey (1997, p. 8) construíram,
em 1953, um aparelho no qual foram reproduzidas as supostas condições
existentes na Terra primitiva. Os autores relatam o experimento de Miller e Urey,
esclarecendo a biogênese.
Amabis e Martho (1997, p. 9) explicam que a formação dos
coacervados pode ter sido um fator importante para o aparecimento dos seres
vivos, pois, a partir do momento em que um agregado de moléculas adquiriu a
capacidade de se organizar e se multiplicar, a vida surgiu.
3.3.1Categorias presentes no livro de Amabis e Martho
Na apresentação histórica do problema da origem da vida, feita no
livro de Amabis e Martho (1997, p. 6), identificamos as seguintes categorias: I) a
noção de paradigma está claramente visível no momento em que os autores
referem que a teoria da geração espontânea começa a perder sua força, após as
demonstrações dos trabalhos de Redi, os quais foram responsáveis por suas
idéias; II) a história não-linear e a integrada vêm expressas no trecho em que os
autores não apresentam os trabalhos de Needham e Spallanzani; III) a linearidade
é detectada no momento em que se diz que os experimentos de Pasteur derrubou
definitivamente a geração espontânea; IV) a história ilustrativa está presente nos
momentos em que os autores enfocam teoria/experimento, uma vez que, como
88
vimos, eles contribuem para a estruturação do paradigma; V) o paradigma da
abiogênese, relatado por Amabis e Martho, no caso da origem dos micróbios, é
como um quebra-cabeça, pois a partir do conhecimento da existência desses seres
surgiu um problema – qual a origem desses seres?
3.3.2Análise da Apresentação do Problema da Origem da Vida Exibido no Livro
Didático de Amabis e Martho
Amabis e Martho (1997, p. 6) apresentam as pesquisas de Redi,
destacando que foi a partir dos resultados desse pesquisador que a teoria da geração
espontânea começou a perder força, surgindo duas linhas de pensamento em
conseqüência do conhecimento da existência dos microrganismos – uma que admitia
a geração espontânea e a outra que atribuía o nascimento dos micróbios das
sementes existentes no ar. Então vemos que, a partir daí, o paradigma vigente, a
abiogênese estava em crise: no âmbito da ciência normal os problemas persistiam.
Como já comentamos no capítulo 1 desta pesquisa, para Kuhn
(2003, p. 13) “paradigmas são as realizações científicas universalmente
reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções
modelares para a comunidade de praticantes de uma ciência”. No entanto, quando
há algum problema formulado dentro do paradigma e os cientistas, com utilização
dos recursos unicamente do paradigma, não encontram solução, isso acaba
gerando uma crise na ciência e buscam-se soluções alternativas, as quais podem
vir a romper o paradigma vigente e, no momento em que uma delas é aceita,
ocorre o que Kuhn denomina de “revolução científica”.
Alguns cientistas aderem ao novo paradigma e passam a “enxergar”
as coisas de maneira diferente. É o que aconteceu com o paradigma da abiogênese,
89
visto que esta não solucionou os problemas dentro do paradigma e, por isso, os
cientistas começaram a buscar soluções alternativas; quando uma destas foi
encontrada formou-se um novo paradigma que é a biogênese (DUTRA, p. 1999).
Como vimos, a teoria de Kuhn afirma que a pesquisa científica
normal está direcionada para a organização daqueles fenômenos e teorias já
proporcionados pelo paradigma, porém, quando aplicada ao ensino de ciência
provoca algumas críticas, como as de Siegel, por exemplo. A crítica de Siegel é
contra a distorção da história da ciência no ensino, que percebemos na
apresentação da história do problema da origem da vida, contida no livro de
Amabis e Martho (1997, p. 6), quando eles silenciaram sobre os trabalhos de
alguns cientistas, como Needham e Spallanzani.
Segundo Siegel, a história não pode ser distorcida, ela deve, sim,
ser apresentada com todos os fatos ocorridos ao longo do tempo, como, por
exemplo, os trabalhos dos cientistas Needham e Spallanzani devem ser
apresentados, para que o leitor (leigo ou não) perceba que eles também
contribuíram para solucionar o problema da origem da vida. Por outro lado, Kuhn
aceita que a história seja, de certa forma, distorcida, podendo-se silenciar alguns
fatos para que o assunto seja melhor compreendido, pois o acúmulo de
informações lineares, segundo Kuhn (2003, p. 178), pode gerar confusão na mente
do aluno, tornando o assunto menos compreensível. A história não-linear
defendida por Kuhn seria justamente a que oculta certos fatos que não são
necessários para o entendimento do conteúdo que está sendo apresentado.
Podemos ver um exemplo de história não-linear e integrada na
passagem do livro de Amabis e Martho (1997, p. 7), que silencia sobre os trabalhos
90
de Needham e Spallanzani. A história vista por esse lado é distorcida, porém, nas
idéias kuhnianas, o fato de não serem relatados os trabalhos de Needham e
Spallanzani, não significa que a ciência não se desenvolve, ou seja, que o
paradigma vigente (que é, de certa forma, o que nos interessa) fica menos
compreensível, pois se podemos “encurtar” o caminho para chegarmos ao destino,
por que não o fazer?
Com relação à linearidade, observamos que Amabis e Martho
(1997, p. 7), assim como Lopes, destacam Pasteur como solucionador do enigma
da origem da vida. Como já comentamos anteriormente, a história apresentada
dessa forma, dá a impressão de que Pasteur resolveu, com muita facilidade a
questão. No entanto, como já descrevemos, a história não foi tão fácil como
Amabis e Martho, bem como Lopes, deixam entender. Os autores, ao mostrarem
como foi solucionado o problema da abiogênese, atribuem exclusividade da
solução desse problema a Pasteur, salientando-o como o único “herói” da situação.
A citação abaixo mostra como Amabis e Martho (1997, p. 7)
atribuem a Pasteur o sepultamento da teoria da abiogênese:
As discussões entre os cientistas a respeito da origem dos microrganismos
prolongaram-se até meados do século XIX, quando o cientista francês Louis
Pasteur demonstrou experimentalmente que os seres microscópicos
presentes em caldos nutritivos resultam da contaminação por
microrganismo (ou por seus esporos) provenientes do ar.
A experiência de Pasteur consistiu em colocar um líquido nutritivo (água,
lêvedo de cerveja e suco de beterraba) em balões de vidro dotados de
gargalos longos e estreitos, que eram amolecidos ao fogo e curvados
como o pescoço de um cisne. Em seguida, Pasteur fervia o líquido dos
frascos com o objetivo de matar os microorganismos presentes. Depois da
fervura os frascos eram resfriados lentamente, de modo que
microorganismos presentes no ar ficariam retidos no gargalo curvo dos
balões, que atuava como um filtro. A ausência total de microrganismo nos
líquidos dos frascos com pescoço de cisne, mesmo depois de
transcorridos meses ou anos, demonstrou que a hipótese da
contaminação microbiana a partir do ar estava correta, derrubando
definitivamente a hipótese da geração espontânea.
91
Segundo Martins (1998, p.19), Pasteur não resolveu a questão ao
apresentar os resultados de suas pesquisas, pois os experimentos de Pouchet,
realizados na mesma época, eram “igualmente bem concebidos, traziam
evidências favoráveis à geração espontânea” e, dessa forma, havia um equilíbrio
na situação. Uma outra questão em que Martins persiste: os experimentos de
Pasteur “não provaram que todo ser vivo provém de um outro pré-existente, uma
vez que isso seria impossível: para isso, Pasteur teria que ter estudado a
reprodução de todos os seres vivos” (MARTINS, 1998, p. 19).
Podemos considerar um exemplo de história ilustrativa o trecho
citado abaixo em que Amabis e Martho (1997, p. 7) destacam Pasteur como o
cientista que chegou, apresentou seu experimento e resolveu a questão. Confira:
A ausência total de microrganismo nos líquidos dos frascos com pescoço
de cisne, mesmo depois de transcorridos meses ou anos, demonstrou que
a hipótese da contaminação microbiana a partir do ar estava correta,
derrubando definitivamente a hipótese da geração espontânea.
Como já comentamos anteriormente, Pasteur não resolveu
definitivamente a questão, nem elaborou suas pesquisas de forma simples e
definitiva, pois, ao mesmo tempo em que ele realizava suas pesquisas, Pouchet
também o fazia, porém, sob outros enfoques, ou seja, enquanto Pasteur enxergava
a biogênese, Pouchet acreditava na abiogênese.
Retomando o conceito de quebra-cabeça apresentado no capítulo
1 desta pesquisa, vemos Kuhn (2003, p. 59) afirmar que quebra-cabeça é “aquela
categoria particular de problemas que servem para testar nossa engenhosidade ou
habilidade na resolução de problemas”.
92
Portanto, é comum existirem problemas não resolvidos dentro da
ciência normal, como foi o caso da origem dos micróbios na época de Pasteur.
Esses problemas são as “peças” dos quebra-cabeças da ciência. Quando essas
“peças” tornam-se importantes demais para serem deixadas de lado, ocorre uma
mudança no rumo da ciência normal. Com isso, o quebra-cabeça passa a ser uma
anomalia e começa-se, então, uma investigação para tentar solucioná-la. Porém, a
solução desta anomalia pode gerar novos conhecimentos, provocando instabilidade
no paradigma vigente, como ocorreu por ocasião do conhecimento da origem dos
micróbios.
Quando os cientistas tiveram conhecimento da existência dos
microrganismos, alguns questionamentos surgiram. Por exemplo: como esses
seres tão minúsculos se originam? Como o paradigma vigente era a abiogênese, a
maioria dos cientistas passou a acreditar que os seres microscópicos surgiam da
matéria inanimada.
É interessante perceber que Amabis e Martho relataram os fatos
marcantes do problema da origem da vida, enunciando cada fato por meio de
experimentos, como o fizeram, no caso dos cientistas Redi, Pasteur, Miller e Urey.
Além disso, observamos que os autores enfatizam os experimentos ao longo do
texto, fato que pudemos identificar em alguns trechos, como estes:
[...] Discussões mais aprofundadas a respeito da origem da vida na Terra
ocorreram somente quando a hipótese da geração espontânea revelou-se
inconsistente, principalmente devido aos experimentos de dois: Francesco
Redi e Louis Pasteur.
Os experimentos de Redi
Em meados do século XVII, o cientista italiano Francesco Redi decidiu
investigar a origem dos seres vermiformes que surgem nos cadáveres em
decomposição. Até essa época a maioria das pessoas acreditava que eles
fossem provenientes da transformação espontânea da matéria do próprio
cadáver. Redi, porém, havia observado moscas voando em torno de
93
cadáveres de diversos animais e supôs que esses seres vermiformes
pudessem ser larvas que surgiam dos ovos dessas moscas. Dotado de um
admirável espírito investigativo, Redi realizou experimentos para testar
sua hipótese. [...]
Os experimentos de Pasteur
As discussões entre os cientistas a respeito da origem dos microorganismos
prolongaram-se até meados do século XIX, quando o cientista francês Louis
Pasteur demonstrou experimentalmente que os seres microscópicos
presentes em caldos nutritivos resultam da contaminação por microrganismo
(ou por esporos) provenientes do ar. A experiência de Pasteur consistiu em
colocar um líquido nutritivo (água, lêvedo de cerveja e suco de beterraba) em
balões de vidro dotados de gargalos longos e estreitos, que eram amolecidos
ao fogo e curvados como o pescoço de um cisne. Em seguida, Pasteur fervia
o líquido dos frascos com o objetivo de matar os microorganismos presentes.
Depois da fervura os frascos eram resfriados lentamente, de modo que
microorganismos presentes no ar ficariam retidos no gargalo curvo dos
balões, que atuava como um filtro. A ausência total de microrganismo nos
líquidos dos frascos com pescoço de cisne, mesmo depois de transcorridos
meses ou anos, demonstrou que a hipótese da contaminação microbiana a
partir do ar estava correta, derrubando definitivamente a hipótese da geração
espontânea. Esses novos conhecimentos deram consistência à Teoria da
Biogênese, [...] (AMABIS; MARTHO, 1997, p. 7).
Pela citação acima, fica a impressão de que, pelo texto que trata do
problema da origem da vida, apresentado por Amabis e Martho, os experimentos
têm como objetivo demonstrar ou falsear uma teoria. Isso nos faz lembrar as idéias
de Popper (1959, p. 53 apud SILVA, 2005, p. 9), em que “a metodologia da ciência
deve ser estatuída em função de regras, sendo a mais importante dela a bem
conhecida regra da falseabilidade”. Portanto, nesta concepção, “teoria e
experimento são conceitos metacientíficos distintos” (POPPER, 1959, p. 53 apud
SILVA, 2005, p. 9). Porém, nas idéias kuhnianas, teoria e experimento não são
separados, ambos se interligam para reforçar o paradigma.
Podemos perceber que, diferentemente de Lopes, Amabis e Martho
apresentam a teoria aceita atualmente para explicar a origem da vida, por meio do
relato do experimento de Miller e Urey, sem mencionar o autor da teoria proposta,
Oparin e Haldane (AMABIS E MARTHO, 1997, p. 8). Como já vimos anteriormente,
teoria e experimento, segundo Kuhn, contribuem para a estruturação do
paradigma. O papel da teoria pode ser definido de acordo com duas funções: os
94
fatos se adequarem à teoria, diminuindo as diversas conclusões experimentais e a
discordância relacionada à sua conclusão; a teoria é a principal ferramenta que
conduz o cientista no desígnio do experimento e das práticas de medida
(ARRUDA; SILVA; LABURÚ, 2001).
Para Kuhn, os experimentos são sempre organizados em função de
um paradigma, e, portanto, a relação entre teoria e experimento, segundo Arruda,
Silva e Laburú (2001), é “adaptativa”, não servindo para demonstrar ou descartar
uma teoria, conforme afirma Popper.
A impressão que temos é que Amabis e Martho destacam a
experimentação de forma isolada da teoria, pois, na maioria dos fatos
apresentados, há o enunciado de algum experimento. Como comentamos no
parágrafo acima, os experimentos, segundo Kuhn, são organizados em função de
um paradigma. Sendo assim, se fosse enfatizado o paradigma, ao invés do
experimento, talvez o assunto não tão sistematizado, pudesse ser mais
compreensível, como se mostra no livro analisado.
3.4 DESCRIÇÃO DO PROBLEMA DA ORIGEM DA VIDA APRESENTADA NO LIVRO DIDÁTICO DE
SÍDIO MACHADO
Machado (2003, p. 19) inicia o assunto, afirmando que a questão
da origem da vida é discutida, desde muitos séculos atrás, e a seguir faz uma
breve apresentação da formação da atmosfera primitiva, originada de gases
simples como o metano (CH4), amônia (NH3), hidrogênio (H2) e vapor de água
(H2O) acumulando-se, após o resfriamento da crosta terrestre, a água na litosfera,
formando-se os oceanos, nos quais surgiu o primeiro ser vivo.
95
Na seqüência, Machado (2003, p. 20) apresenta a teoria do big
bang, dizendo que precisamos estabelecer ligação entre a complexa questão da
origem da vida e a formação do Universo para compreendermos melhor o assunto.
A seguir, o autor (2003, p. 20) faz uma breve apresentação do surgimento da vida
na Terra, dizendo que há evidências de que a vida surgiu em nosso Planeta por
volta de 3,8 bilhões de anos. Outras apresentações são feitas como contribuição
para o entendimento do assunto, como, por exemplo, o destaque à importância e à
função dos geólogos e ao calendário cósmico elaborado pelo cientista Carl Sagan.
Machado (2003, p. 21) mostra as contradições do paradigma da
geração espontânea e da biogênese, dizendo que há 2.200 anos, Aristóteles
acreditava que existia um princípio ativo capaz de gerar vida a partir da matéria
inanimada. Esse filósofo, segundo Machado, formulou a teoria da geração
espontânea ou abiogênese. Na seqüência, o autor apresenta que, no século XVII,
ainda existiam cientistas que defendiam a geração espontânea; porém, foi nesse
mesmo século que a teoria da biogênese começou a ganhar adeptos, provocando
debates entre os cientistas que tentavam explicar a origem dos seres vivos. De
acordo com Machado (2003, p. 21), a biogênese foi reforçada, em 1674, por
Antony van Leeuwenhoek, com a descoberta dos micróbios. Seis anos antes,
porém, Francesco Redi já havia realizado algumas experiências que sustentavam
a teoria da biogênese. A seguir, Machado (2003, p. 22) menciona o experimento
realizado por Redi, explicando que este cientista levou em consideração o
problema “Como surgem os seres vivos?”, e partiu da seguinte hipótese: “a
matéria em decomposição deverá, nas mais diversas situações, gerar
espontaneamente a vida”.
96
De acordo com o autor (2003, p. 22), “Redi não conseguiu
convencer os defensores da geração espontânea, que argumentavam que o “ar era
essencial à vida”, pois continha o princípio ativo dela, e que o experimento estava
incorreto, porque um dos frascos permaneceu tampado”.
Na seqüência, Machado (2003, p. 22) apresenta os experimentos
de Pasteur, afirmando que muitos cientistas tentaram resolver o problema da
“essencialidade do ar”, porém o mérito coube ao químico Louis Pasteur (1822–
1895) em cujos experimentos utilizou a técnica de esterilização.
Após a apresentação e ilustração dos experimentos de Pasteur,
Machado (2003, p. 23) explica a teoria atual de origem da vida, proposta, em 1922,
por Oparin e reforçada pelo cientista Haldane. Segundo o autor (2003, p.23), Haldane
baseou-se nas idéias de Oparin, admitindo que as proteínas que se acumularam por
milhões de anos nos mares primitivos formaram as primeiras células.
A seguir, Machado (2003, p.23) explica que as idéias de Oparin
foram testadas, em 1953, por um aparelho construído por Stanley Miller, que
simulou a atmosfera primitiva da Terra, obtendo compostos orgânicos simples, os
quais confirmariam as idéias de Oparin.
Em 1957, Sydney Fox, baseado nos experimentos de Miller,
verificou que “os aminoácidos se ligaram, formando peptídeos e proteínas”.
3.4.1Categorias presentes no livro de Sídio Machado
Identificamos, na apresentação histórica do problema da origem da
vida feita no livro didático de Sídio Machado (2003, p. 21), as seguintes categorias:
97
I) a noção de quebra-cabeça é identificada no momento em que é apresentado o
conhecimento da origem dos micróbios, uma vez que, como já comentamos
anteriormente, o conhecimento da existência desses seres minúsculos gerou para
o paradigma da abiogênese um problema; II) a idéia de linearidade está visível na
apresentação no livro de Machado, no trecho em que se mencionam as pesquisas
de Redi e de Pasteur, destacando este último como o merecedor do mérito por ter
resolvido a questão.
3.4.2Análise da Apresentação do Problema da Origem da Vida Exibido no Livro
Didático de Sídio Machado
Pela análise da história do problema da origem da vida abordada
no livro didático de Machado (2003, p. 20), observamos que, ao introduzir o
assunto, o autor faz uma apresentação muito ampla da história. Vejamos isso na
citação abaixo:
A origem da vida é um assunto debatido há séculos. [...] O esfriamento
parcial do planeta permitiu a formação da atmosfera primitiva. Nas
camadas mais interna dessa atmosfera, os elementos químicos
combinaram-se, formando gases simples [...]. Após o esfriamento da
crosta terrestre, a água acumulou-se na litosfera formando os oceanos
primitivos, e o planeta reuniu condições para o aparecimento da vida. [...]
Para compreendermos a origem dos seres vivos, precisamos estabelecer
uma relação entre essa complexa questão e a formação do Universo.
Segundo a teoria da evolução cósmica, conhecida como teoria do big
bang, o Universo surgiu há 15 bilhões de anos quando toda energia
concentrada em uma parte muito pequena do espaço foi liberada por uma
grande explosão. [...] Admite-se que o planeta permaneceu quase um
bilhão de anos sem vida porque não reunia condições para isso Há
evidências que dão validade à hipótese de que a matéria orgânica
apareceu na Terra em torno de 3,8 bilhões de anos. [...] O geólogo
preocupa-se com os aspectos físicos do planeta e tem como atribuição
estudar as características das rochas subterrâneas, submarina e da
superfície. [...] Ainda hoje, a maneira mais segura de saber quando
surgiram os primeiros organismos na Terra é procurar por restos de
bactérias primitivas, encravadas nas pedras. [...] Em 1978, o cientista Carl
Sagan (1934-1996) teve a idéia de compactar a história do Universo e da
Terra no período de um ano. Ele dizia: “o modo mais didático para
expressar a cronologia cósmica é imaginar o tempo de quinze bilhões de
anos do universo, desde o big bang, condensados no período de um ano.
Em vista disso, cada bilhão de anos correspondera a mais ou menos 24
dias desse ano cósmico, e 1 segundo daquele ano corresponderia a 475
98
revoluções reais da Terra ao redor do Sol...” [...] Na tentativa de explicar a
origem da vida, há 2200 anos Aristóteles (384 a.C.) elaborou a teoria da
geração espontânea ou abiogênese. Esse filósofo grego acreditava que
um princípio ativo seria capaz de transformar a matéria inanimada em
matéria viva. [...] No século XVII, a teoria da geração espontânea ainda
era defendida por alguns cientistas. [...] No século XVII, a teoria da
biogênese começou a ganhar adeptos gerando o debate entre os
cientistas acerca da origem da vida. [...] (MACHADO, 2003, p. 19).
Com esse amplo relato histórico, reproduzido no livro de Machado,
retornamos ao capítulo 1 desta pesquisa, para salientar que, conforme Mach
argumenta, há muitas vezes, no ensino de ciências, um acúmulo de informações e
que o “derrame de conteúdos só resulta numa teia de pensamentos frágeis demais
para fornecer uma base sólida, porém complicados o bastante para gerar
confusão” (apud MATTHEWS 1995, p.169), e que, de acordo com Mattews, é
preciso ensinar a história da ciência com pressupostos históricos e filosóficos
relacionados ao assunto em questão, pois isso pode ser mais satisfatório para a
compreensão do conteúdo.
Machado (2003, p. 21) diz que a idéia da biogênese foi reforçada
após o conhecimento da origem dos micróbios. No entanto, consideramos como
quebra-cabeça da abiogênese o que Machado (2003, p. 22) escreve no excerto
que segue:
No século XVII, a teoria da biogênese começou a ganhar adeptos gerando
o debate entre os cientistas acerca da origem da vida. A idéia central da
biogênese, a de que “um ser vivo só pode surgir de outro preexistente”, foi
reforçada em 1674 quando o holandês Antony van Leeuwenhoek (1632-
1723) descobriu os micróbios. Seis anos antes, em 1668, o médico italiano
Francesco Redi (1626-1697) já havia realizado experimentos que davam
maior sustentação científica à teoria da biogênese.
Como já comentamos anteriormente, a origem dos micróbios era
uma das “peças do quebra-cabeça” da abiogênese, pois o conhecimento da
existência desses seres minúsculos levou os cientistas a fazerem outras pesquisas
99
para tentar desvendar como esses seres surgem. Com relação à linearidade
constatada na apresentação histórica do problema da origem da vida no livro de
Machado, podemos citar a seguinte passagem:
Embora bem planejada e tecnicamente correta, a experiência de Redi não
conseguiu convencer os defensores da geração espontânea, que
argumentavam que o “ar era essencial à vida”, pois continha o princípio
ativo dela, e que o experimento estava incorreto porque um dos frascos
permaneceu tampado.
Os experimentos de Pasteur
Muitos cientistas tentaram resolver o problema da “essencialidade do ar”,
mas o mérito foi do químico francês Louis Pasteur (1822-1895). Ele
colocou caldo de carne em balões e, por meio da fervura, matou os
micróbios transformando o caldo num líquido estéril (MACHADO, 2003, p.
22).
Notamos, na citação acima, que a impressão que se tem é que
muitos cientistas pesquisavam a origem da vida e que mesmo Redi, com sua
experiência bem planejada e correta, não conseguiu solucionar o problema.
Pasteur, porém, foi honrado pelo seu magnífico experimento, com o qual ele pôde
convencer a “todos” que os seres vivos não nasciam espontaneamente.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pela presente pesquisa, constatamos que o ensino das Ciências,
principalmente no Brasil, está defasado. As taxas de evasão e repetência de
alunos nas escolas evidenciam que urge reformular o ensino, para que esse
quadro crítico, em que a educação se encontra, seja revertido. Além disso, os
livros didáticos apresentam-se “desinteressantes”, longe da realidade dos alunos.
É preciso rever esse recurso disponível nas escolas, pensando-o de forma
articulada com a realidade do aluno, de modo que ele tenha real serventia,
ajudando o aluno a buscar respostas para suas indagações.
Entretanto, concluímos que uma das alternativas para a melhoria
da qualidade do ensino pode estar na estruturação da história da ciência que é
abordada no livro didático; sabendo-se que ele é considerado uma das ferramentas
mais úteis e acessíveis tanto aos professores quanto aos alunos.
Ao analisarmos os livros didáticos de Biologia usados no ensino
médio, verificamos que a história da ciência encontra-se presente nos textos desse
recurso pedagógico. Porém, o que está faltando na história da ciência apresentada
na maioria dos livros didáticos, é estruturá-la, de forma que torne os assuntos mais
compreensíveis, incorporando conflitos, o embate teórico das idéias, e interesses
econômicos, políticos e ideológicos (religião).
A compreensão da história e filosofia da ciência permite perceber
que a ciência não segue um critério linear progressivo, agregando novos
conhecimentos. Muitas vezes, olhar para a história, nos permite localizar
movimentos de sobreposição de idéias, em um mesmo contexto, e ver que aquelas
101
idéias consideradas errôneas, hoje, foram dominantes em um dado momento,
impedindo o desenvolvimento de outras que, atualmente, são mais aceitas.
O entrelaçamento da história, juntamente com a filosofia, pode
enriquecer (e muito) o assunto, tornando-o mais interessante, e, consequentemente,
possibilitando ao aluno entender melhor o que ele está estudando.
Entretanto, esse entrelaçamento deve dar-se, de forma que o aluno
compreenda os porquês do desenvolvimento científico e o considere como meio de
associar o seu cotidiano e suas relações com o meio ambiente em que vive.
Acreditamos que, para termos um ensino de melhor qualidade, não
basta enxergarmos os problemas que provocam a baixa qualidade; é preciso ir
muito além. Entre alguns recursos disponíveis para um ensino de boa qualidade,
está o livro didático, que professores e alunos utilizam, o qual, no entanto, requer
estruturação. A história da ciência, que está presente nessa ferramenta, pode ser
muito útil como recurso pedagógico, quando bem apresentada.
Foi pensando num ensino de boa qualidade, que desenvolvemos
esta pesquisa, acreditando ser a mesma do interesse de todos, principalmente dos
que estão envolvidos com a educação. Com relação a mim, devo dizer que este
trabalho contribuiu (e muito) para meu crescimento, tanto profissional quanto
pessoal.
Pretendo expandir e ampliar a experiência adquirida com essa
pesquisa, buscando aprofundar-me mais, mediante o doutoramento, no
conhecimento das diversas formas de apresentação da história nos livros didáticos.
Com isso, continuarei sendo mais uma “lutadora” convicta de que as pessoas só se
102
desenvolverão e se tornarão críticas a partir do momento em que tiverem como sua
base uma boa formação educacional. O curso de mestrado, em fase de conclusão,
foi mais uma porta que me foi aberta, pois, como já disse anteriormente, sou
persistente e com minha perseverança, experiência e dedicação serei mais uma
pesquisadora em história da ciência e também autora de livros didáticos. Nesse
meio tempo, irei aplicando meus conhecimentos sobre história e filosofia da
ciência, adquiridos ao longo desta pesquisa, nas minhas aulas de Biologia do
ensino médio, as quais eu amo de paixão.
“É no processo histórico e filosófico da ciência que o homem
reorganiza suas inquietudes para interagir com sua própria realidade” (grifo meu).
103
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COPYRIGHT AUTORM DO TEXTO.

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