sexta-feira, 23 de julho de 2010

1909 - HISTÓRIA DA FILOSOFIA

A HISTORIA DA FILOSOFIA It OU NAO FILOSOFICA ?
SIM E NAO
Pierre Aubenque*
Em urn debate como 0 que me solicitaram manter, hoje, com Jacques Brunschwig, sobre uma questao que, em principio, pede como resposta sim ou nao, e no qual esperam de nos, como nos velhos debates retoricos, que defendamos respectivamente uma ou outra das respostas possiveis, emuito importante -todo mundo 0 sabe, ao menos desde Gorgias ate os organizadores dos debates televisivos -saber quem fala em primeiro lugar. Se me permitem usar metaforas militares num debate consagrado a "estrategias", direi que 0 primeiro que fala avanca em terreno
descoberto e deixa ao adversario tempo para preparar sua contraofensiva.
Mas, por outro lado, ele tern a escolha das armas e do terreno e desfruta, se podemos dizer, da curiosidade ainda nao adormecida das testemunhas. 6 melhor meio para tirar proveito da situacao eser 0 primeiro
a defender 0 que Aristoteles chamava uma "tese", isto e urn "pensamento paradoxal" que, todavia, para ser defendida, deve, ou se apoiar numa autoridade (mas aqui nao nos apoiaremos em autoridades) ou, na falta desta, Ter ao menos "urn argumento para ela", I
Mas onde esta aqui a tese, 0 "paradoxo"? Se Jacques Brunschwig tivesse falado primeiro (mas acabo de saber que nao foi carater nao filos6fico da hist6ria da filosofia, ao menos da que
•(N11 Ensaiooriginalrnfntepublicadosob0 titulo de I;estdredelaH1ilosqJhieest-eUeoo ~?ilietNcn.in(crg. Bart:maCassin):NooGra:setLeuTsMaiemes(Cd. C11eminsdef\nseej, RJ.17-36,EdnmsduSew1.PaIis 1992.Apiliica;;aodestatraduc;flo foifeitacornagentilpe!111issaodeEditia-rsduSeuiL
I TqXJues,I,ll, 104 b 19-28, trad.J.Brunschwig
Principios V, 6 (1998): 171-187
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ele nada disso)? para defender, segundo uma formula que the atribuem",
0 entende praticar, ter-Ihe-ia seguramente objetado que essa estranha pretensao vai ao encontro da consciencia habitual dos historiadores
da filosofia, que geralmente consideram filosofica sua atividade, assim como da opiniao comum dos usuaries, segundo a qual, para compreender
urn texto filosofico diffcil, e necessario voce mesmo ser filosofo
ou, nao sendo 0 caso, recorrer aajuda desses mediadores que sao precisamente os historiadores da filosofia. Estes hoje nao sao mais doxografos, isto e, colecionadores de opinioes, mas "interpretes", isto e, tradutores no sentido proprio do termo: ora, para traduzir, e necessario nao somente urn conhecimento tecnico das Iinguas, mas tambem urn minimo
de intuicao comum, de Einfiihlung, de congenialidade, entre 0 autor traduzido e seu interprete. Poder-se-iam multiplicar os argumentos,
Mas sou eu que comeco. Portanto, apresentarei como paradoxal a tese que desejo defender: 0 carater filosofico da historia da filosofia. Efetivamente, se nos referimos aconcepcao de historia hoje corrente, segundo a qual a historia e uma ciencia, ou seja, e constituida par urn conjunto de proposicoes verificaveis ou, pelo menos, falsificaveis (mesmo
se admitirmos uma certa subjetividade na escolha das questoes postas
pelo historiador e no recorte de seu objeto), so podemos considerar exorbitante a excecao que poderia representar uma historia filosofica da filosofia. Nao ocorre a ninguem exigir, nem mesmo aceitar, que uma historia da geometria seja geometrica, isto e que seja conduzida more geometrico. Se a historia das ciencias em geral pode se constituir como
2 Pk:rreAubenquerep::rta-seaa:nferfuda¢eridaprJacquesBrurJ&hwignaScxiedade
FrancesadeFila3olla.em22 demaiode 1976.naqualestecleliberndam:ntseatstimde
defenderedemonstrarteses.preferindoadotar acnentaeaometcdolilg'imdelevantar
~asm:mde1inid.ooesdud00ada3.Tala:nferfudata~putiicada
noBul1elindelcl.Societeejion;rrisede~e~tenadir1gV:laprBarOOraCassin,intituladal\bsGnrsetleursnniemes.N.T. 3 Rdiro-measuacomumcacaofeitaem22de maio de 1976 naSodedade franeesade
fila3ofia.''Fazerhistrnadall1a3ofia~',Bul1etindeIaSoc:iete}ianQ:lisede~,n°
70,1976. reproduzidoaquiemapendice(pp. 67-96).especiahnenrep. 135(=79). 146 (::m).Taessetedo,
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disciplina cientifica, nao 0 foi porque e historia das ciencias, mas somente
porque e historia. Ela nao e nem mais nem menos cientifica que a historia das instituicoes ou a historia dos costumes. Certamente poderse-
ia objetar que, para fazer historia da matematica, e necessario ser-se ao menos urn pouco matematico, para que se saiba do que se fala e, mais particularmente, para que se saiba medir, para que se compreenda tal detalhe tecnico que escapa ao leigo e se de conta da realidade ou importancia de uma inovacao, de urn recuo e mesmo de uma revolucao.
o mesmo acontece com 0 historiador da arte. Admite-se, geralmente, que ele deve possuir uma especie de afinidade eletiva com 0 objeto do qual fala. E 0 argumento da Einfiihlung; que eu invocava, urn pouco prematuramente, momentos atras, e que nao valeria, portanto, somente para a filosofia. Mas e necessario acrescentar imediatamente que, na concepcao modema da ciencia -e nao pense somente na concepcao positivista, mas no consenso que parece mesmo caracterizar a cornunidade
cientifica, inclusive ados historiadores -, a conaturalidade do sujeito
e do objeto da historia, que parece ser urn requisito minimo de sua pratica, surge mais como obstaculo acientificidade da disciplina do que como sua condicao. A ciencia, e em particular a ciencia historica, nao sup6e identificacao, mas, ao contrario, distancia e recuo. Imagina-se muito bern como urn rnatematico, que vira historiador de matematica, poderia se impacientar com as lentid6es dessa historia e, seguro de seu saber atual, ser tentado a resumir os intermedios, apagar os zigue-zagues, simplificar os processos, alern de que, sem duvida, nao teria prazer em se dedicar a ela. Urn historiador da rrnisica que gostasse muito de rmisica
seria seguramente parcial em seus recortes, suas exclus6es (0 que e rmisica e 0 que nao 0 e ?), etc.
Digamos que 0 habitus do historiador nao eo mesmo, nao deve ser 0 mesmo que 0 do praticante da disciplina da qual ele descreve a historia, A neutralidade axiologica conceme em particular ao habitus do historiador, 0 que quer dizer uma indiferenca ao menos metodologica em relacao ao valor daquilo de que fala, que nao pode erigir como criterio de suas decis6es metodologicas, Quanto ao minimo de afinidade requerido
entre 0 historiador e seu objeto, poder-se-ia dizer com Aristoteles que,
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para que esse requisito seja preenchido, e necessario e suficiente que 0 historiador possua uma "cultura" correspondente ao dominio ao qual se dedica': 0 historiador da medicina deve possuir uma cultura medica; nao e necessario que seja medico e e talvez melhor que nao 0 seja.
Esses argumentos nao valem tambern para a historia da filosofia?
Parece-me que the sao dificilmente aplicaveis -de fato, mas tambern
de direito. Que the sejam dificilmente aplicaveis de fato nao constituiria
ainda urn argumento dirimente contra a subsuncao da filosofia sob 0 genera comum das historias disciplinares. Pois, a dificuldade de aplicar, por exernplo, a regra da objetividade, da indiferenca axiologica, se encontra em todos os dominios nos quais 0 historiador trabalha. Que seja diffcil fazer historia da filosofia sem se interessar pela filosofia e sem ter interesses filosoficos e de uma evidencia bastante trivial, mas que valeria tanto para a historia das religioes, quanto para a historia da arte, etc., e que nao e suficiente, portanto, para dotar a historia da filosofia
com urn estatuto especial. Mas me parece que, no caso da filosofia, a dificuldade de aplicar a regra habitual da objetividade historica e essencial,
e deve-se anatureza mesma da filosofia, da qual ela constitui, alias reciprocamente, urn dos reveladores, e nao dos menores.
Kant pode nos ajudar aqui a colocar 0 problema. Na Arquitetonica da Razao Pura (no fim da Crftica da Razao Pura), distingue
entre 0 conhecimento racional, que e cognitio ex principiis, e 0 conhecimento
historico, que e cognitio ex datis. E focaliza 0 caso particular
e recorrente, que e do que tratamos, em que os data que a historia transmite sao precisamente os principia e suas consequencias, cuja articulacao
constitui 0 conhecimento racional. 0 caso nao parece, aprimeira
vista, colocar muita dificuldade: se me contento com decorar e repetir a ordem das razoes que constituem urn "sistema de filosofia" como 0 de Wolff (60 exemplo de Kant), sem extrair, eu mesmo, a cada passo de minha propria razao (isto 6 da razao universal em mim) os diversos momentos do sistema que exponho, terei urn "conhecimento historico da filosofia de Wolff'. Objetivarnente, trata-se de fato de urn conheci4
Partiesdesanimaux, I, 1.
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mento racional (na hipotese em que Wolff procede racionalmente), mas, subjetivamente, tenho dela apenas urn conhecimento historico, Poderse-
ia considerar como urn progresso 0 fato de se assimilar a tal ponto a objetividade do conteudo, que se possa re-pensar por sua propria conta (isto e, por conta da razao em nos) a ordem das raz6es do sistema e assim restituir acognitio ex datis a racionalidade de seu conteiido, isto e de urn cognitio ex principiis. Mas, em se tratando de filosofia, essa coincidencia
e ilusoria; pois, repensando Wolff (ou Kant ou Aristoteles), nao posso deixar de "critica-Io" (e Kant quem fala) e constatar que "a partir de fontes universais da razao pode resultar a refutacao mesma do que se aprendeu". Ou seja, se os principia, primeiro recebidos como data, sao verdadeiramente re-pensados como principia, quando confrontados
com outros "principios", correm 0 risco de ver questionado seu estatuto mesmo de "dado".
Kant observa, em seguida, que essa situacao de nao-coincidencia
entre 0 conhecimento historico de urn dado racional e a retomada racional desse dado, nao se encontra no caso desse outro conhecimento racional, que e 0 conhecimento matematico. Pois, se aqui 0 aluno "compreende"
(0 que e sem duvida 0 minimo que se pode exigir) 0 dado que aprendeu, so pode re-produzi-lo, re-construi-lo ao identico, de modo que nao e somente objetivamente, mas subjetivamente, que 0 conhecimento
matematico, mesmo primeiro "dado" como livresco, vale tambern
e imediatamente como conhecimento racional. A causa disso e, diz Kant, que aqui 0 conhecimento nao procede de nenhuma outra fonte senao dos "principios essenciais e autenticos da razao", que sao de acrescimo
aplicados a"intuicao pura e por isso infalivel" e que, desse modo, "excluem-se ilusao e erro'": Diferentemente da maternatica, a filosofia -Kant nao 0 diz aqui, mas pode-se supo-lo -nao parte de uma intuicao infalfvel, e sendo urn conhecimento por conceitos e nao por construcao de conceitos como a matematica, deve, sob urn insuperavel risco de erro, a cada momenta legitimar de novo seus conceitos e os princfpios que estes empregam. A consequencia retirada por Kant e que, dentre as ci5
Kriiikder1EinerlVerT111J!ft A837-B865.
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encias racionais, so se pode aprender a maternatica e jamais a filosofia (a menos que 0 seja historicamente): "No que conceme arazao, pode-se aprender, quando muito, somente a filosofar". Kant diz aqui que nao se pode "aprender" a filosofia; ele acrescentara mais adiante que nao se pode aprender afilosofia, pois: "Onde esta a filosofia para que se possa aprende-Ia e quem a tern em seu poder ?"
Uma das conclusoes a que leva, geralmente, esse texto celebre (cujo infcio aparentemente nao se Ie jamais), e que a filosofia nao e tradicao, transmissao escolar de urn dado, mas exercicio solitario e autonomo do pensamento, cujo ensino so pode fomecer, a rigor, exemplos
historicos sempre recusaveis, exemplos que a razao pura poderia de direito dispensar. Em relacao a nosso proposito, esse texto parece reduzir a historia da filosofia aporcao congruente, a de urn auxiliar pedagogico menor e facultativo; mas essa porcao e tao congruente que se toma inexistente, sendo a historia da filosofia, a rigor, uma contradictio ex adjecto; pois, de duas coisas uma: ou 0 historiador respeita a facticidade das "filosofias" que estuda, mas entao, reduzidas acategoria de dado factual, essas "filosofias" (das quais Kant se pergunta se de resto existem) nao sao mais a filosofia, que e e permanece 0 ato de filosofar; ou entao 0 historiador da filosofia respeita a pretensao a "filosofar"
das doutrinas que estuda: entra em suas razoes, constitui-se inevitavelmente
seu juiz e censor, tomando-se assim urn filosofo inteiramente
aparte que, com sua propria razao, assurnindo toda responsabilidade,
aceita como verdadeiro, ou refuta como falso, 0 que gostaria somente
de transrnitir. Ou seja, urn datum que acontece ser ao mesmo tempo urn principium, so pode ser recebido como simples datum amedida
que se esquece que e principium; ele e reconhecido e compreendido
primeiro como principio, cessa de ser urn puro dado historico para tomar-se uma incitacao a pensar por si mesmo, e eventualmente contra ele. Pode-se derrubar 0 argumento de Kant, segundo 0 qual nao ha historia
do filosofar, mas unicamente uma historia das filosofias: a historia da filosofia nao pode deixar de reconhecer ofilosofar atras das filosofias;
ela propria se toma entao urn ato filosofico.
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Mas, pode ser que essa justificacao do carater filos6fico da hist6riadafilosofiarepercuta
comogeraldemais,paraamaioriadoshistoriadores
profissionais da filosofia que somos, e que nao reconhecamos ai a realidade de nosso trabalho cotidiano nem dos problemas concretos que coloca. Gostaria de tentar mostrar que a ambivalencia de urn datum que se da por urn principium e de urn principium que nos eprimeiro transmitido como datum, mas que medimos inevitavelmente com a medida
de nossos pr6prios "princfpios", espreita e provoca 0 historiador da filosofia na sua pratica mais cotidiana.
Comeco pelo exemplo mais grosseiro. Quanto anossa relacao hist6rica com nosso objeto de estudo, emuito diffcil nao partir de uma ideia preconcebida, isto e, nao datada e dada historicamente, mas adrnitida
como urn principio mais ou menos evidente. Na epoca, que nao etao remota, em que se queria fazer uma hist6ria nao metaffsica da filosofia digamos,
para ser breve, positivista -, utilizava-se sem a menor critica, para falar da filosofia grega, metaforas como as de nascimento, de desenvolvimento
ou de aurora, que traiam uma pressuposicao filos6fica evidente:
a de urn progresso continuo da humanidade para a maturidade ou as luzes. Hoje, urn amplo setor da hist6ria da filosofia grega, assim como
o tipo de interesse que suscita no publico, sao dominados pela ideia inversa
segundo a qual somente os comecos sao grandes e que, por conseguinte,
ap6s a fulguracao pre-socratica, s6 puderam vir esquecimento e declinio, Dir-me-ao que os historiadores serios de hoje nao compartilham tais preconceitos.
Mas perguntarei: 1) Com certeza? 2) Necessariamente?
Emitirei primeiro diividas sobre a realidade dessa ausencia de preconceitos. Nao falo daqueles que mostram claramente 0 jogo e que nao dissimulam que seu interesse pelos gregos eprimeiro ditado pela esperanca de que eles revelem os remedies ou os antidotes para os males
do mundo modemo ou pelo cuidado de captar neles, em sua eclosao auroral (num sentido desta vez positivo), as possibilidades ainda nao encerradas do "ainda nao". A dissimulacao emais habitual no outro campo, por uma razao, por sinal, totalmente honrosa, que ea conviccao de que 0 progresso eindissociavel da cientificidade e que nao eportanto apenas uma questao ideol6gica estarmos persuadidos que sabemos dis178
so hoje mais que os gregos. Essa tese seria para se discutir filosoficamente
em seu conteiido; 0 que e certo e que os gregos sabiam diferentemente
de nos. Nao creio, alem disso, que a pressuposicao do progresso seja hermeticamente mais fecunda que a pressuposicao inversa do declinio: se esta suscita admiracoes as vezes ingenuas pelos "comecos", aquela conduz a tratar os gregos com uma condescendencia que arrisca desconhecer 0 genic proprio de suas solucoes, ate mesmo sua literalidade. Qual historiador analitico da filosofia nao esta, no fundo dele mesmo, persuadido que 0 problema do ser foi resolvido, ou comecou a ser resolvido,
no dia e somente no dia em que Bertrand Russell distinguiu entre as tres funcoes do verba "ser": existencial, identificadora e copulativa? Desde entao, as discussoes sobre a parte central do Sofista de Platao foram focalizadas -rnilhares de paginas foram escritas a respeito disso sobre
a questao de saber se Platao descobriu ou niio a funcao copulativa do ser. Mas essa questao, ligada a uma leitura retrospectiva e, como 0 disse, condescendente, sera uma questao pertinente, que perrnite dar ao texto 0 maximo de sentido ou, em todo caso, e a unica questao e nao mascara outras problernaticas possiveis?
Mas nao estou aqui jogando pedra em ninguem. A questao mais unilateral e mais exterior ao espirito do texto e sempre iitil, susceptivel de abrir uma dimensao ou uma possibilidade. Creio, sobretudo, que esse tipo de questionamento propriamente "anacronico", porque se apoia em "princfpios" que nao sao os do autor, mas the sao retroativamente impostos,
e inevitavel. Pleiteio simplesmente que 0 anacronismo seja consciente.
Urn anacronismo confesso e metade perdoado. Controlado, pode tomar-se fecundo: citarei daqui a pouco alguns exemplos.
Infelizmente, muitos historiadores da filosofia que praticam, como todos os outros, 0 anacronismo, recusam-se a reconhece-lo. Quando urn historiador analitico reconstitui uma argumentacao de Platao ou Aristoteles, melhorando-a, formalizando-a por exemplo, esta claro que essa intervencao se deve a conviccao tacita que a logica modema vale rnais que a Iogica tateante e ainda nao tematizada que anirnava 0 discurso prearistotelico,
ou mesmo a logica que Aristoteles ainda nao podia aplicar a seus proprios escritos, posta que estava em vias de elabora-la (Aristoteles
nao procede por silogismos). Certamente, responder-me-so sem diivida que nossa logica, a logica eetema e que nao eculpa nossa, mas deles, se os gregos nao a haviam ainda descoberto inteiramente, ou se apenas a abordaram,
enquanto eram inconscientemente regidos por ela. Mas ejulga-los assim
do nosso ponto de vista, e nao do deles. Poder-se-ia discutir sobre este ponto: ecometer urn anacronismo, reprovar Heraclito por ignorar 0 principio
de contradicao, como ja 0 faz Aristoteles? Pessoalmente penso que sim, acrescentando que esse anacronismo permitiu utilmente a Aristoteles "desconstruir" a filosofia de Heraclito, mesmo ficando cego para outros aspectos dessa filosofia,julgados hoje mais interessantes. Seguramente concordariio
melhor cornigo, porque se trata aqui de fisica (onde as verdades parecem menos "eternas" que na logica), que eanacronica uma proposicao do tipo: "as erros de Aristoteles, na sua teoria do movimento, se explicam em funcao de sua ignorancia do principio de inercia".
Mas, 0 que ocorre, de fato, no debate cotidiano entre historiadores
da filosofia? Mesmo urn historiador disposto a admitir 0 caraterfilosofico
de sua atividade, considera irresistivelmente que, quando critica como anacronica, arbitraria, subjetiva a interpretacao de outro historiador,
nao faz essa critica em nome de sua propria filosofia (0 que tomaria sua critica igualmente anacronica, subjetiva e arbitraria, no sentido de "proveniente de seu livre arbftrio"), mas em nome de uma Verdade intemporal, que deveria evidentemente obter a concordancia de todos. Mas, a intemporalidade nao ea mascara muito frequente da ideologia? Assim, num artigo recente destinado a mostrar que, na sua interpretacao da alegoria platonica da cavema, Heidegger comete "erros", que ademais,
"nao sao nem interessantes nem fecundos'>, J. Bames censura Heidegger, entre outras coisas, par ter escrito que, na alegoria da caverna,
realiza-se uma "mudanca na essencia da verdade" (citado p. 186). Mais exatamente, supoe ele, maneiroso, que Heidegger nao pode querer dizer isso (do mesmo modo que Aristoteles dizia a proposito de Heraclito
6J.fu.ns,'H:D-g:J1C"im-. g l',~Iffi:l,p.lffiQLnJcmthan
~e:re1l'donao:rire:Da,p:isc:ahJ.Vcl.~rm
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7 Metaphysique, I', 3, 1005 b 25 55.
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que "0 que se diz nao enecessariamente 0 que se pensa'" ), pois, defende
J. Barnes, "uma tal constatacao seria absurda: as essencias nQO mudam"
(p. 176, grifo meu). Argumento espantoso, na verdade, pois de onde J. Barnes tirou que as essencias nao mudam, se nao foi do proprio Platao, enquanto Heidegger se situa, de modo evidente, fora do platonismo para critica-lo? Que J. Barnes seja platonico e considere como "absurda" uma frase que contradiz urn dos axiomas do platonismo, edireito seu (embora devessedizerque afrase efalsa, nao queeabsurda).MasqueHeidegger nao seja platonico e considere que uma essencia (alem disso, Wesen, nao ea mesma coisa que a ousia platonica) pode mudar, isso deveria tambem ser seu direito, a menos que se considere que 0 platonismo esimplesmente
a filosotia. Everdade que se trata aqui de interpretar Platao, e nao outro qualquer.Masenecessarioserplatonicopara interpretarPlatao?Pode-se duvidar que isso seja possivel; pois, para ser platonico, epreciso primeiro ler Platao e nao 0 inverso. E 0 proprio J. Barnes nao pensa de modo nenhum -e tern razao -nesse genero de interpretacao circular e imanente, que tenta compreender Platao ex Platone. Sao "os sabios preguicosos", diz ele urn pouco mais adiante, que apreciam "0 refrao de Trendelenburg" 'Interpretar Aristoteles ex Aristotele'" (p. 184). J. Barnes nao eurn sabio preguicoso e, portanto, nao pode ter querido opor a Heidegger, interpretando
Platao de seu proprio ponto de vista exterior, unicamente a autoridade
de Platao. Na verdade J. Barnes tambem interpreta Platao com seu proprio ponto de vista, que e0 de urn platonico logico pos-fregeano e posrusseliano.
Por isso, J. Barnes escreve, urn pouco mais adiante (p.193), que a relacao entre os quatro empregos do verba "ser" (aos tres empregos russelianos acrescenta 0 "einai veritativo") "nao ejamais tematizada por Platao, embora, no Sofista, pareca se aproximar um pouco dessa problematica'{pp, 193-194, grifo meu). E0 que eu chamava acima de condescendencia.
No tim de seu artigo, J. Barnes corrige Heidegger, tentando expor,
a proposito da doutrina platonica da verdade, "0 que Heidegger deveria ter dito" (p.190). Ele deveria, explica Barnes, ter distinguido entre 0 "emprego objetivo" e 0 "emprego proposicional" do adjetivo "verdadeiro". No segundo caso, "pode-se interpretar 0 termo 'verdadeiro'
do ponto de vista da sintaxe, como funcao proposicional", No pri181
meiro, 0 do emprego "objetivo", "0 termo 'verdadeiro' significa mais ou menos 'real'" (p.191). Paro aqui para perguntar: que significa "objetivo"? Que significa "funcao proposicional"? Que significa "real"? Sem diivida, concordarao comigo facilmente que essas expressoes sao intraduzfveis em grego antigo. Portanto, nao sao conceitos platonicos; nao podem entrar entao no enunciado de principia do qual a filosofia platonica tiraria consequencias. Certamente everdade que Platao, mais que os pre-socraticos, "aproximou-se" desses conceitos modernos. Mas eexatamente a tese que defende Heidegger no ensaio incriminado: a mutacao na essencia da verdade eprecisamente a emergencia de urn conceito de verdade proposicional (que so encontrara sua definicao canonica com Aristoteles) e 0 esquecimento correlativo -sob a forma de uma subordinacao, de uma tutoria -do que Heidegger tern por uma experiencia
mais original da verdade, que ea verdade ontologica, J. Barnes foi muito feliz ao se expressar, no sentido de Heidegger, nomeando essa verdade ontologica "objetiva", isto e, ja madura para a captacao por urn sujeito, e para sua submissao ao criterio da retidao e da adequacao: a verdade objetiva e, em boa terminologia, a verdade tal que urn sujeito se represente que ela e. Ora, quem quer que seja que aborde os gregos, procurando neles (quer seja com 0 temor ou a esperanca de encontra-los ali) objetos, sujeitos (no sentido da subjetividade moderna), funcoes proposicionais (no sentido de Frege) e realidade (no sentido, mesmo se a esquecemos, da realitas de Suarez), comete anacronismos, intervem no texto que interpreta com principios, pressuposicoes, que sao os de sua propria filosofia; violenta, portanto, 0 texto interpretado, na medida em que nao 0 repete, nao pode repeti-lo, mas, como dizia Kant, "critica0".
Mas entao, com que direito censurar Heidegger por exercer sobre os textos uma outra "violencia" do tipo, dessa vez, arcaizante? Ve-se ao menos que 0 debate aqui efilosofico. 0 valor de uma interpretacao nao se mede pelo fato de ser literalmente fiel ou nao a urn objeto -0 texto que
se esconde, mas pelo fato, como 0 exige justamente J. Barnes, de
ser ou nao "interessante" e "fecunda".
Aqui, dir-me-ao que subjetivizo demais a historia da filosofia, a entrego aarbitrariedade das interpretacoes e desconheco, outra vez, 0
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trabalho efetivo do historiador da filosofia, cuja tarefa etarnbem e primeiro
(Jacques Brunschwig deu admiraveis exemplos disso) estabelecer
textos, traduzi-los, par em relacao sua forma com 0 sistema Iinguistico no qual sao redigidos e seu contetido com a historia social, politica, economica de seu tempo. Eis af urn trabalho necessario e apaixonante, que resulta, como todo trabalho historico, em proposicoes verificaveis ou falsificaveis, eventualmente corrigiveis, cuja soma e coordenacao proporcionam urn progresso evidente no nosso conhecimento das filosofias,
das antigas, em particular.
Mas, continuo a pensar que, em se tratando do objeto filos6fico (emprego aqui sem escnipulo particular 0 vocabulario da modernidade),
o discurso metate6rico ao qual recorre inevitavelmente 0 historiador da filosofia excede, num momento ou noutro, os limites da verificabilidade empirica. 0 exemplo mais elementar e por af 0 mais paradoxal e0 do estabelecimento mesmo do texto. Ha aqui regras precisas; par exemplo: enecessario preferir a lectio difficilior. Mas 0 que edifficilior sem exceder,
entretanto, os limites da inteligibilidade? E 0 que einteligibilidade?
J.
Bollack mostrou que, no seculo XIX, foram rejeitados textos julgados ininteligiveis, em nome de uma concepcao de inteligibilidade ideologicamente
orientada. Mas, a recusa de toda conjectura, a ideia de que todo texto transmitido tern uma coerencia (que freqiientemente nao emais a do principio de contradicao) nao refletem uma decisao ideol6gica inversa,
a que aposta -talvez sem razao -na obscuridade?
Torno urn outro exemplo que me interessa particularmente: "0 livro Kappa da Metafisica de Aristoteles einautentico". Essa frase deveria
pertencer aHistoria, apoiada aqui na filologia, e deveria ser verificavel ou falsificavel. Eu a tenho pessoalmente como verdadeira, e creio ter dado boas razoes para isso. Mas ainda nao convenci 100% ninguem dessa verdade. Nao falo dos que me dizem: "eu sou fil6sofo e nao me interesso pelas questoes de erudicao". Mas aqueles mesmos que, atentos a meus argumentos, me dizem: "Sim ,provavelmente voce tern razao", continuam, 0 mais das vezes, a citar, imperturbavelmente, 0 livro
Kappa, como se fosse de Aristoteles, E, de fato, compreendo estes iiltimos, mesmo se os desaprovo. Pensam -ha suficientemente Indicios
183
nesse sentido -que 0 texto nao e da mao de Aristoteles, Mas, que texto e da pessoa de Aristoteles? Pode nao ser de Aristoteles e todavia veicular
ideias e argumentos autenticamente aristotelicos (como eo caso, num outro dominio, da Grande Moral). Ao contrario, pen so que 0 conteudo do livro Kappa nao e aristotelico nem em sua letra nem em seu espirito. Convir-se-a entao -e eu mesmo convenho, embora nao seja meu interesse
aqui -que 0 debate sobre a autenticidade so e inteiramente resohivel a partir de argumentos filosoficos, e que 0 proprio conceito de "autenticidade"
esta carregado aqui de conotacoes filosoficas,
No sumario de minha intervencao, alern da proposicao precedente,
havia proposto a sagacidade do auditorio, de maneira a perrnitir uma elucidacao de seu estatuto, urna serie de proposicoes que sao todas,
de urn modo ou de outro, da competencia da historia da filosofia:
-Socrates diz, segundo Platao, que Protagoras disse que se pode ensinar a virtude.
-Aristoteles defendeu urna doutrina da analogia do ser.
-Afirmando que todo movel supoe urn motor em ato, Aristoteles transgride 0 princfpio de inercia. -Aristoteles e urn gigante do pensamento (Marx). -Aristoteles foi 0 porta-voz da ideologia da classe escravagista na Grecia (Grande Enciclopedia Sovietica, edicao de 1950).
-Nietzsche e 0 mais desenfreado dos platonicos (Heidegger).
Admitir-se-a facilmente que muitas dessas proposicoes, se nao todas, nao tern sentido, e por conseguinte, so podem alimentar pretensao
a verificabilidade em relacao a urn contexto que pede interpretacao. Tais proposicoes pretensamente historicas sao, deste ponto de vista, homogeneas as proposicoes filosoficas as quais se referem, do tipo: "0 ser nao e urn genero", ou : "0 ato precede a potencia", que pedem primeiro
a compreensao e nao se prestam a procedimentos de verificacao, senao ao termo de uma mediacao, talvez infinita, e que e, em todo caso, de natureza filosofica.
184
Se as proposicoes da historia da filosofia, enquanto tais, escapam,
em grande parte, averificabilidade, pode-se perguntar em que reside
0 criterio de sua validade.
Ha algumas decadas, a escola estruturalista frances a (Gueroult, Goldschmidt), que seguramente marcara epoca na historia da historia da filosofia, havia propos to tal criterio, que era a conforrnidade com a "organizacao
demonstrativa" do discurso filosofico, tal como desejada pelo autor; ou seja, tratava-se de compreender 0 autor como ele mesmo queria
que 0 compreendessem. Assim pedia Gueroult que, para compreender
Descartes, primeiro nos informassernos sobre "0 metodo prescrito por Descartes para compreender sua filosofia". E Goldschmidt fixava desta forma seu programa: "esforcar-se para compreender as teses de uma doutrina aluz do proprio metodo", por exemplo, as teses de Platao aluz de seu lugar na estrutura dialetica de cada dialogo, tal como se pode estabelece-lo aluz do excurso metodologico da Carta VII, especie de exposicao de intencoes do metoda platonico. Esse metodo de exegese, se teve 0 merito de lembrar aos interpretes a obrigacao de contemplar a obra filosofica como urn todo, em que 0 modo de encadeamento das partes -a ordem das razoes -e ele mesmo significativo, esbarrou, em se tratando, alem disso, de certas filosofias mais que de outras, em dificuldades
de aplicacao freqtientemente insuperaveis. A estrutura oficial da obra constitui sempre sua estrutura efetiva? 0 autor procede sempre como anuncia que 0 fara? E, onde 0 amincio do metodo eo mais autenticamente
apreensivel? Nos textos publicados, como os Dialogos platonicos, ou nos textos marginais, em que 0 autor toma certa distancia em relacao a sua obra? Gueroult recusa considerar as Cartas de Descartes,
porque a ordem das razoes nao se deixa reconhecer ali. Mas Goldschmidt ere poder apoiar-se num texto da Carta VII de Platao (texto
cuja autenticidade foi alias contestada) para ai descobrir a chave do metoda empregado nos Dialogos, Em nome de que pressuposicao outra e nao filosofica recusar alem disso os testemunhos, que concemem ao "nao-escrito" do platonismo? 0 debate sobre a existencia e 0 conteudo das "doutrinas nao escritas" de Platao (a expressao e de Aristoteles) deveria girar em tome de uma questao de fato: Platao professou em seu
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ensino oral doutrinas diferentes -na forma e tambem no conteiido -das que se podem dissociar de seus Dialogos? Eo que afirmam numerosos testemunhos que possuimos, mas esses testemunhos sao dignos de fe? A paixao com a qual hoje edebatida essa questao, de ambos os lados do Canal da Mancha e do Atlantico (urn autor anglo-saxao qualifica de repugnante -em urn sentido, creio, infelizmente bastante pr6ximo do sentido continental -a tese que atribui a Platao doutrinas nao escritas), mostra que 0 debate filol6gico-hist6rico ecarregado de implicacoes filos6ficas
sobre 0 valor respectivo do oral e do escrito e sobre a maneira pela qual deve se apresentar urn discurso filos6fico digno desse nome.
Mas, ouvirei de novo a pergunta: 0 testemunho do autor, caso 0 possuamos, nao e0 mais decisivo ou mesmo 0 iinico decisivo? Sim, como 0 escreveu Jacques Brunschwig (p.93 ss.), "a hist6ria da filosofia eessencialmente uma busca do sentido perdido", nao etentador considerar
que 0 autor permanece de direito 0 detentor Iegitimo desse sentido perdido e que, por isso, a iinica ambicao do historiador deve ser, tentar coincidir, a partir dos textos conservados, com a suposta intencao do sentido e -acrescentarei, tratando-se de uma intencao -do sentido univoco? Parece-me que as noites de muitos historiadores da filosofia, dos quais nao faco parte, sao freqiientadas pelo que chamarei 0 fantasrna
do telefone, 0 desejo e ao mesmo tempo 0 temor de que 0 autor venha resolver meu problema hermeneutico, "se eu pudesse the telefonar"
(J.B., p. 82). 0 exemplo de alguns grandes pensadores contemporaneos.
de quem nao era dificil demais obter 0 mimero de telefone, deixa
cetico sobre esse ponto. Quando se pedia a Heidegger para resolver urn ponto na interpretacao de sua obra, ele respondia, em resume: "Virem-
se!", ou, no melhor dos casos: "Comparem com 0 que digo a esse respeito naquela outra passagem de minha obra". E Bergson nao hesitava
em escrever a urn de seus interpretes, sem que fosse necessario ver ai ironia ou lisonja: "0 senhor me compreendeu melhor que eu mesmo".
Acredita-se verdadeiramente que, se se pudesse interrogar Platao sobresuaobra,segundourndesejoformulado urndiaporYvonLafrance'
8Rroa:lSiaodesuadefesadetese,emNanterre.em28deootutmde 1982.a sotreesse pcntoY. Lafrance,Mefrx1oe&egeseemhistr'nula.filax:!/b. Mmtrml1983.
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e que domina toda a metodologia deste ultimo, ele tomaria claramente partido entre as diferentes interpretacoes do Parmenides e do Sofista? Nao estou nem mesmo certo de que ele responderia univocamente a questao: "Ha oito ou nove hip6teses na segunda parte do Parmenides?" Minha suspeita sobre esse ponto eque Platao quis enumerar oito hipoteses,
mas que teria achado retrospectivamente interessante 0 contra-senso
neoplatonico que, fazendo da terceira parte da segunda hip6tese uma "terceira hip6tese" autonoma, permite reestruturar as hip6teses segundo urn esquema impar e tirar dessa estrutura latente (embora nao desejada ou nao percebida pelo autor) consequencias filos6ficas consideraveis, sobre 0 papel do tempo em particular. Contrariamente ao que pressupoe, creio, a maneira "analitica" de fazer hist6ria da filosofia, nao ha enigma em filosofia, quebra-cabeca cuja solucao, ainda desconhecida, estaria inscrita em alguma parte, num universo das essencias ou na intencao do autor escondida para sempre. 0 inacabamento de fato de toda obra filos6fica,
sempre abreviada pela morte, traduz urn inacabavel mais profundo,
0 do pr6prio questionamento. Esse inacabamento suscita a interpretacao:
0 interprete prolonga a obra numa direcao possivel (ha evidentemente
extrapolacoes impossiveis), sem que possa garantir que essa direcaoea iinica que a obra anunciava ou pedia.
A possibilidade real que a obra nao impoe, mas autoriza, e que se situa manifestamente sempre entre duas zonas de impossibilidade, determina 0 que chamarei "plausibilidade" de interpretacao. A plausibilidade poderia servir como criterio minimo -criterio fraco, convenho
-parajulgar a validade das interpretacoes, Chamo plausivel uma interpretacao que, sem ser imposta por nenhuma assercao explfcita do autor, tambem nao econtradita por nenhuma. Essa interpretacao sera ainda mais plausivel, amedida que puder, aparentemente, ser confirmada
depois, por varias assercoes marginais do proprio autor, quero dizer, por aquelas que pertencem, nao aexposicao mesma da doutrina, mas a reflexao metadoutrinal (observacoes casuais, cartas, testemunhos, etc.), e que sao as mais propicias a revelar 0 nao-dito do discurso oficial. Tais regras nao sao bastante estritas para conduzir aunicidade. Ha interpretacoes
impossiveis, mas ha, em se tratando de uma obra grande, isto e,
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rica em potencialidades, varias interpretacoes plausiveis. Entre essas interpretacoes, entregues, em ultima instancia, a decisao filosofica do interprete e a reflexao ulterior do leitor, esforcar-se-a por escolher a que garanta ao texto, ao mesmo tempo, 0 maximo de inteligibilidade ( a que integra mais partes da obra) e 0 maximo de produtividade (a que mais faz pensar).
Nao ha aqui criterio decisivo da escolha, mas ha uma sancao retrospectiva da historia. Na sucessao historica das interpretacoes, consequencia
de seus conflitos legitimamente interminaveis, distingue-se espontaneamente (e com razao) entre interpretacoes profundas ou triviais,
produtivas ou estereis, interessantes ou entediantes, importantes ou futeis, entre as que marcam data e as que, logo que propostas, sao esquecidas
(conceder-me-ao, creio, que, na lista precedente, os qualificativos positivos se aplicam, por exemplo, sem muita dificuldade, as interpreta<;
oes neoplatonicas do platonismo). Essas distincoes encobrem, evidentemente,
a distincao entre 0 verdadeiro e 0 falso. Elas a substituem -na ausencia de algo melhor, se quisermos, mas com a liberdade e a responsabilidade
que isso implica -num dominio, 0 da filosofia, em que nao se tern jamais a ver com assercoes inteiramente verificaveis, mas com interpretacoes,
sejam elas de primeiro grau, como e0 caso da parte do filosofo ( que interpreta 0 mundo, a ciencia a arte etc.), ou de segundo grau, como 0 sao as interpretacoes do historiador da filosofia. Minha conclusaoeque, entre as interpretacoes de primeiro grau do filosofo e as meta-interpretacoes do historiador da filosofia, ha homogeneidade e continuidade e que, portanto, falar de uma historia filosofica da filosofia,
nao edefender urn paradoxo, mas enunciar uma necessidade de essenoia:
historia, porque nao ha filosofia sem uma Wirkungsgeschichte, sem prolongamentos; filosofica, porque esses prolongamentos, esse "pensar
mais a frente", sao a propria filosofia.
Traduciio de Elizabeth Maia da Nobrega.
Revisiio tecnica de Gabriel Alves de Oliveira.

COPIRIGHT MANUEL ALVES DE OLIVEIRA

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