domingo, 11 de julho de 2010

1497 - HISTÓRIA DOS LIVROS DIDÁTICOS

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CONVÊNIO COM A UNICENTRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CURSO DE MESTRADO EM LÍNGÜÍSTICA APLICADA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA
IDENTIDADE E LIVRO DIDÁTICO:
Movimentos identitários do professor de Língua Portuguesa
DENISE GABRIEL WITZEL
Maringá, PR
2002
II
DENISE GABRIEL WITZEL
IDENTIDADE E LIVRO DIDÁTICO:
Movimentos identitários do professor de Língua Portuguesa
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Lingüística Aplicada
(Mestrado), Área de Concentração: Ensino-
Aprendizagem de Língua Materna, da
Universidade Estadual de Maringá (PR), como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre.
Orientadora: Profª Drª Sonia Aparecida Lopes
Benites
Maringá, PR
2002
III
IV
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
ÁLVARO DE CAMPOS
V
Ao Julien e a nossas filhas Fernanda e
Carolina, pelo que significam na construção da minha
identidade pessoal e profissional, e pelo inestimável apoio
que me oferecem.
À Maria, minha mãe, estimuladora
incansável.
VI
MEUS AGRADECIMENTOS
À Professora Drª Sonia Aparecida Lopes Benites
pela orientação segura, eficiente e pela amizade, sem as quais este trabalho
não teria sido realizado.
À Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)
pela oportunidade do Mestrado em Lingüística Aplicada em convênio com a
Universidade Estadual de Maringá.
À Professora Drª Marlene Maria Ogliari
pela colaboração valiosa.
Aos amigos do Departamento de Letras da Unicentro – Câmpus de Guarapuava,
e
aos amigos do Programa de Mestrado em Lingüística Aplicada – turma especial
UNICENTRO
pelo incentivo constante e pela torcida.
À Professora Drª Maria Inês Pagliarini Cox e à Professora Drª Sílvia Inês Coneglian
Carrilho de Vasconcelos
pela leitura atenta e sugestões.
À Professora Dalila Oliva de Lima Oliveira
pela revisão da versão final da dissertação.
Aos professores de língua portuguesa da região de Guarapuava - PR
pela participação neste trabalho, permeada por muitos afetos e por muita
cumplicidade.
1
SUMÁRIO
Página
RESUMO ................................................................................................................... 3
RÉSUMÉ ................................................................................................................... 4
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 6
PRIMEIRA PARTE ................................................................................................. 10
1. LIVRO DIDÁTICO: a emergência do problema ............................................. 11
1.1. Breve histórico do livro didático ................................................................... 11
1.2. Programa Nacional do Livro Didático ........................................................... 16
1.3. Livro didático de língua portuguesa: características e implicações.............. 22
1.3.1 O velho e o novo livro didático de língua portuguesa ........................... 23
2 . UM PERCURSO PARA A HETEROGENEIDADE: balizas teóricas .......... 31
2.1. Análise do Discurso: algumas considerações................................................. 32
2.2. Quadro teórico de referência ......................................................................... 34
2.2.1. Relação entre discurso e texto ........................................................... 34
2.2.2. As condições de produção do discurso............................................... 37
2.2.3. Formações discursivas .......................... ............................................ 39
2.2.4. Subjetividade, alteridade e identidade................................................ 42
2.2.5. Heterogeneidade constitutiva ............................................................. 48
SEGUNDA PARTE .................................................................................................. 58
1. PASSO A PASSO: caminhos percorridos pela pesquisa................................. 59
1.1. A constituição do corpus ............................................................................... 60
2
2. RELAÇÃO ENTRE A IDENTIDADE DO PROFESSOR E O LIVRO
DIDÁTICO ..........................................................................................................
65
2.1. Pesquisando o imaginário do professor ......................................................... 69
2.1.1. Auto-imagem ........................................................................................ 76
2.1.1.1. Como é que cada um se tornou professor de português? ....... 76
2.1.1.2. O que mais aborrece e o que mais agrada ao professor na
profissão? .............................................................................
83
2.1.2. Imagem do professor sobre o ensino de língua portuguesa .................. 94
2.1.3. Imagem do professor sobre o livro didático ......................................... 102
2.2. Imagem do livro didático sobre o professor................................................... 112
2.2.1. As cartas de apresentação ..................................................................... 114
2.2.1.1. Livro 1 – Entre Palavras .......................................................... 117
2.2.1.2. Livro 2 – A Palavra é sua Língua Portuguesa.......................... 124
2.2.1.3. Livro 3 – Tecendo Textos ......................................................... 133
2.2.2. Orientações didático-pedagógicas e respostas dadas aos exercícios .... 141
2.3. Professor e livro didático na sala de aula ....................................................... 149
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 164
ANEXO ..................................................................................................................... 171
3
RESUMO
Nesta pesquisa qualitativo-interpretativista investigamos a construção da
identidade do professor de língua portuguesa a partir de um olhar através do livro didático.
Adotando uma perspectiva teórica que se insere na Análise do Discurso de linha francesa,
analisamos o discurso dos manuais didáticos a fim de verificar, na rede interdiscursiva que
envolve a ação docente, as imagens de professor que esses livros constroem. Dividimos,
pois, nossa dissertação em duas partes. A primeira levanta as condições de produção do
livro didático no cenário educacional brasileiro, contextualizando, assim, a emergência do
problema. Apresenta, também, os pressupostos teóricos que darão suporte para as análises
que constituem a segunda parte do trabalho. Nossa premissa básica se sustenta na idéia de
que a identidade do sujeito se constrói através da alteridade e de que o discurso do sujeito é
inevitavelmente atravessado pelo discurso do outro. Por isso, buscamos, em um primeiro
momento, atentar para as múltiplas vozes que coexistem no discurso do professor de
português, com vistas a compreender a auto-imagem desse docente, considerando,
prioritariamente, a concepção que ele tem de si mesmo, de seu trabalho e do livro didático.
Na seqüência, apresentamos e discutimos as concepções de professor que vazam no
discurso dos autores dos livros didáticos e, finalmente, examinamos uma aula de língua
portuguesa com o objetivo de verificar como se dá, na prática, o encontro do professor com
o livro no espaço da sala de aula, onde ambos adquirem razões de existência. Os resultados
de nossa investigação sugerem que nos discursos dos professores de língua portuguesa vêm
à tona vozes que nos permitem evidenciar múltiplas imagens, apontando para a constituição
heterogênea e, ao mesmo tempo, paradoxal do sujeito-professor. Os discursos inscritos nos
livros didáticos deixam entrever a imagem de um sujeito-professor pretensamente
homogêneo, mal formado, despreparado, executor acrítico de aulas preparadas pelos
autores desses manuais. O confronto entre o discurso do professor e a sua atuação
pedagógica mostra que a voz do autor do livro didático encobre a voz do professor. Daí
concluirmos que, inconscientemente ou não, o professor oculta-se atrás da legitimidade e da
autoridade dos manuais ou, em outras palavras, a valorização do livro como instrumento
essencial, como tecnologia educacional básica, desloca o professor para o “lugar do morto”
(NÓVOA, 1995).
Palavras-chave: identidade do professor; livro didático; ensino de língua materna
4
RÉSUMÉ
Notre recherche qualitative “interpretativista”, examine la construction identitaire
du professeur de langue portugaise, à travers une étude du manuel didactique. En nous
appuyant sur une perspective théorique qui s’inscrit dans l’Analyse du Discours, notre
propos ici est d’analyser le discours de tels manuels, afin de vérifier dans la trame
interdiscoursive qui entoure l’action du professeur, les images de celui-ci qui y sont
construites. Nous avons divisé cette dissertation en deux parties. La première relève les
conditions de production du manuel didactique dans le cadre de l’éducation brésilienne, en
mettant, ainsi, en contexte l’émergence du problème. Elle présente, aussi, des présupposés
théoriques qui supporteront les analyses dans la senconde partie. Étant donné que l’identité
du sujet est bâtie à travers l’altérité et que le discours du sujet est inévitablement marqué
par le discours de l’autre, nous cherchons saisir, dans un premier temps, les plusieurs voix
qui coexistent dans le discours du professeur de portugais, dans le but de comprendre
l’auto-image de cet enseignant en considerant, surtout, la conception qu’il a de soi-même,
de son travail et du manuel didactique. Par la suite, nous présentons et discutons les
conceptions de professeur qui échappent du discours des auteurs des guides pédagogiques
et, finalement, nous analysons une classe de langue portugaise afin de vérifier comment se
passe en réalité, la rencontre du professeur et du livre, dans l’espace de la salle de classe, où
les deux acquièrent leurs raisons d’exister. Les résultats de notre étude suggèrent que, des
discours des professeurs de langue portugaise, émergent des voix, permittant de saisir de
multiples images qui pointent vers la constituition hétérogène et, au même temps,
paradoxale du sujet-enseignant. Les discours inscrits dans les manuels didactiques nous
laissent apercevoir l’image d’un sujet-professeur soi-disant homogène, mal préparé,
exécuteur naïf des classes preparées par les guides pédagogiques. Si on compare le
discours du professeur à sa performance pédagogique, on remarque que la voix de l’auteur
du guide surmonte celle du professeur. Delà on peut conclure que, inconsciemment ou pas,
le professeur se cache derrière la légitimité et l’autorité des manuels didactiques, c’est à
dire, la valorisation du guide en tant qu’instrument essentiel et technologie d’éducation de
base, déplace le professeur qui demeure “no lugar do morto” (NÓVOA, 1995).
Mots clés: identité du professeur, guide pédagogique, enseignement de langue
maternelle
5
Siglas utilizadas no decorrer da dissertação
AD – Análise do Discurso
CNLD – Comissão Nacional do Livro Didático.
COLTED - Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático
ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
FAE – Fundação de Assistência ao Estudante
FENAME – Fundação Nacional do Material Escolar
FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
INL – Instituto Nacional do Livro
LD – Livro Didático
LDB – Lei de Diretrizes e Bases
MEC – Ministério da Educação e do Desporto
PCNLP – Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
PLIDEF – Programa do Livro Didático Ensino Fundamental
PNLD – Programa Nacional do Livro Didático
SEF – Secretaria de Ensino Fundamental
SD – Seqüência Discursiva
6
INTRODUÇÃO
No prefácio de seu livro, Nóvoa (1995)9 parte de uma imagem do bridge10 para
explicar alguns dilemas atuais da profissão docente. Nesse jogo, um dos parceiros ocupa o
“lugar do morto”, sendo obrigado a expor suas cartas em cima da mesa: nenhuma jogada
pode ser feita sem atender às suas cartas, mas este não pode interferir no desenrolar do
jogo. Seguindo esse mesmo raciocínio, é possível pensarmos alguns movimentos
identitários dos professores, a partir dos discursos que trazem subjacentes uma certa
desvalorização da imagem do docente. As idéias de Nóvoa, além de resumirem com
bastante propriedade as questões de subjetividade e de identidade docente que
desencadeiam a presente pesquisa, ajudam-nos a entender as concepções de professor que
perpassam os diferentes discursos. Nas palavras do autor, verificamos que:
É verdade que os professores estão presentes em todos os
discursos sobre a educação. Por uma ou por outra razão, fala-se
sempre deles. Mas muitas vezes está-lhes reservado o “lugar do
morto”. Tal como bridge, nenhuma jogada pode ser delineada
sem ter em atenção as cartas que estão em cima da mesa. Mas o
jogador que as possui não pode ter uma estratégia própria: ele é o
referente passivo de todos os outros (NÓVOA, 1995, p.10).
Uma análise mais atenta e crítica do livro didático permite esclarecer algumas de
suas formas constitutivas que, no nosso entender, reservam para o professor o “lugar do
morto”. E porque isso, certamente, interfere e contribui no delineamento da sua identidade,
é que aceitamos o desafio com relação ao tema, inserindo-nos nos debates que pretendem
contribuir para alternativas que, de um lado, possibilitem o resgate da imagem do docente
de língua materna e, de outro, como conseqüência, garantam uma melhor qualidade ao
ensino da língua portuguesa.
Vale dizer que muitos estudos já apontaram a urgente necessidade de devolver ao
professor a dignidade que há muito lhe foi roubada. Silva (1995), por exemplo, apresenta
9 Embora Nóvoa esteja se referindo aos professores de Portugal, acreditamos que suas idéias possam se
estender à situação da educação no Brasil.
10 Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (HOLANDA FERREIRA,1986), Bridge é um
jogo de cartas em que se distribui um baralho completo de 52 cartas, entre quatros jogadores, que, dois a dois,
como parceiros, depois de haver sido determinado se a jogada é com trunfo ou sem ele, tentarão fazer o
número de vazas a que se propuseram.
7
os resultados de uma pesquisa que demonstram as difíceis condições de vida do professor
de 1º grau e a deterioração de sua identidade. Também Nóvoa (1995) sublinha que o
professor, já há algum tempo, foi esvaziado de uma afirmação própria da dimensão pessoal
da sua profissão.
Voltados mais especificamente para a questão da identidade do professor de
língua portuguesa, os estudos de Coracini (2000), Lara (2000), Maciel (2001) e Benites
(2001) analisam o discurso desse professor e concluem que ele apresenta-se multifacetado,
heterogêneo, atravessado por uma pluralidade de vozes que indicam que sua subjetividade e
sua identidade se constroem em meio a um jogo conflituoso e paradoxal de imagens. Daí
nosso interesse em analisar e compreender os discursos que emergem do livro didático de
língua portuguesa, pois esses discursos figuram, inevitavelmente, nesse jogo imagético.
São muitos os pontos de vista pelos quais a questão do livro didático pode ser
analisada. Aspectos metodológicos, lingüísticos e ideológicos têm atraído a atenção de
incontáveis trabalhos desenvolvidos nas últimas décadas. Nossa atenção e nosso olhar,
entretanto, centram-se especificamente no usuário do livro didático, isto é, no sujeitoprofessor
de língua portuguesa e no uso inocente que ele faz do manual. Estamos partindo
do pressuposto de que o livro didático deixou de ser um meio para se transformar em um
fim em si mesmo, nos ambientes formais de ensino-aprendizagem, e que dessa mudança,
talvez, o professor não tenha consciência. Convém adiantar que essa transformação do livro
didático em um objeto indispensável para a efetivação do ensino-aprendizagem, não se
construiu isoladamente de determinadas posturas político-educacionais, pois ao longo da
história da educação no Brasil, o livro didático foi, aos poucos, ganhando espaço e força
nos contextos escolares, na mesma proporção em que o professor foi perdendo sua
dignidade, seu valor e seu salário.
Este trabalho buscou suas fontes em outros trabalhos que discutem
prioritariamente a relação professor-livro didático, dentre os quais destacamos o projeto
coordenado pela professora Maria José Coracini, intitulado Da torre de marfim à torre de
Babel: uma análise discursiva do ensino-aprendizagem da linguagem escrita (Língua
Materna – LM e Língua Estrangeira –LE) - , cujos resultados parciais encontram-se em
duas obras por ela organizadas (CORACINI, 1995 e 1999) e em vários artigos de
periódicos. Nosso estudo se articula, em parte, com esses outros, já que ele também coloca
8
em discussão a relação do professor de língua com o livro didático. Entretanto, reiteramos
que nosso foco de interesse recai no livro didático de língua portuguesa, e mais
especificamente no manual do professor, pois até onde é de nosso conhecimento, os
discursos inscritos nesses manuais e as imagens de professor que eles permitem entrever
ainda não foram suficientemente discutidos e analisados.
Claro está, portanto, que a pesquisa que propomos pretende, sobretudo,
compreender as significações dos enunciados dos livros didáticos (manual de professor)
enquanto vozes que guiam a ação docente e que interferem, conseqüentemente, no processo
de identificação do professor. Pretende, também, compreender alguns contornos da
identidade do professor de língua portuguesa confrontando o discurso desse professor com
a sua ação pedagógica. Isso porque julgamos que não há como falar de identidade do
professor sem observarmos o que de fato está acontecendo dentro da sala de aula.
Com efeito, entendemos que ao problematizar a questão da identidade do docente
de língua portuguesa, a partir de um olhar através do livro didático que é, sem dúvida, um
tema de permanente atualidade e interesse, buscaremos sentidos mais positivos para a nossa
ação pedagógica e profissional.
Fugindo de propostas ingênuas e irreais e aceitando o fato de que o livro didático
é um elemento constitutivo do processo educacional brasileiro, perseguiremos, ao longo da
pesquisa, possíveis respostas à seguinte pergunta: como os professores de língua
portuguesa têm sido representados pelos discursos que emergem dos livros didáticos? Com
outras palavras: em que medida essa representação seus movimentos identitários?
Nosso trabalho está organizado em duas partes, precedidas desta introdução.
Construímos o primeiro capítulo da primeira parte situando histórica e politicamente o
livro didático de língua portuguesa. No segundo capítulo, apresentamos as balizas teóricas
que sustentarão as análises. Sobre essas, adiantamos que, em função dos objetivos
propostos, ou seja, compreender e interpretar os processos de identificação do sujeitoprofessor,
através do livro didático, situaremos nossa pesquisa no interior da Análise do
Discurso de linha francesa e, de forma mais específica, nas contribuições dessa área no que
se refere à heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso.
Entendemos que uma reflexão desta natureza não pode prescindir da análise de
um contexto mais amplo da atuação docente, e, por isso, nosso trabalho terá que contar,
9
também, com as contribuições de mais uma grande área de discussão teórica: a sociologia
da educação, pois compreender a identidade do professor implica, necessariamente,
entender os fatores sociais que interferem na produção dessa imagem.
A segunda parte do nosso trabalho descreve, em um primeiro capítulo, os sujeitos
que participaram desta pesquisa, os instrumentos utilizados para a coleta de registros e os
procedimentos de análises. Na seqüência, construímos um único capítulo intitulado
“relação entre a identidade do professor e o livro didático”, no qual desenvolvemos três
tópicos que, no nosso entender, abarcam os objetivos da nossa dissertação.
10
PRIMEIRA PARTE
11
1. LIVRO DIDÁTICO: a emergência do problema
Não há como falarmos da relação entre identidade e livro didático sem antes
apresentarmos alguns contornos e implicações que envolvem a adoção do livro didático nas
escolas públicas brasileiras. Por isso, neste primeiro capítulo da primeira parte do nosso
trabalho faremos, inicialmente, uma retrospectiva histórica para contextualizar o livro
didático. Começaremos falando, ainda que sumariamente, do seu surgimento no cenário
educacional brasileiro, concentrando-nos nos aspectos legais e políticos que envolvem sua
adoção. Abordaremos também, de forma mais específica, a atual política de
regulamentação e adoção do livro didático no Brasil.
Em um outro momento, trataremos das características do livro didático de língua
portuguesa com o intuito de melhor elucidar algumas questões durante as análises, as quais
constituirão a segunda parte do nosso trabalho.
1.1. Breve histórico do livro didático
Discorrer sobre a história do livro didático implica, necessariamente, discorrer
sobre a política do livro didático do Brasil. Sem a pretensão de abordar o tema de forma
mais complexa, faremos uma retrospectiva sucinta a partir do momento em que se cria, no
Estado brasileiro, uma proposta de regulamentação para a produção e a distribuição de
livros didáticos nas escolas. Tal proposta surge na década de 30, época em que se buscou
desenvolver no Brasil “uma política educacional consciente, progressista, com pretensões
democráticas e aspirando a um embasamento científico” (FREITAG et al., 1993, p. 12).
Foi nessa época, pois, que se consagrou o termo ‘livro didático’ entendido até os
dias de hoje como sendo, basicamente, o livro adotado na escola, destinado ao ensino, cuja
proposta deve obedecer aos programas curriculares escolares. A definição desse termo se
deu pela primeira vez no Decreto-Lei nº 1.006 de 30 de dezembro de 1938 – Art 2, da
seguinte maneira:
Compêndios são os livros que expõem total ou parcialmente a
matéria das disciplinas constantes dos programas escolares (...)
12
livros de leitura de classe são os livros usados para leitura dos
alunos em aula; tais livros também são chamados de livro-texto,
compêndio escolar, livro escolar, livro de classe, manual, livro
didático. (OLIVEIRA, 1980, p.12 apud OLIVEIRA et al. 1984,
p.22)
Com o intento de regulamentar uma política nacional do livro didático, esse
mesmo decreto criou a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) marcando, assim, a
primeira iniciativa governamental nessa área de política educacional. Cabia a tal comissão,
dentre outras responsabilidades, examinar, avaliar e julgar os livros didáticos, concedendo
ou não autorização para o seu uso nas escolas.
É importante lembrar que a CNLD foi criada no período do Estado Novo, isto é,
em um momento político autoritário, bastante marcante e polêmico, que buscava garantir,
sobretudo, a Unidade/Identidade Nacional. Era tarefa daquela comissão controlar a adoção
dos livros, assegurando que eles atendessem aos propósitos de formação de um certo
espírito de nacionalidade, o que fez com que os critérios para as avaliações dos livros
valorizassem muito mais aspectos político-ideológicos do que pedagógicos. Oliveira et al.
(op.cit.) explica que, dos impedimentos estabelecidos pela CNLD para a utilização do livro
didático, onze estavam relacionados à questão político-ideológica e apenas cinco diziam
respeito à didática propriamente dita, ou seja, aspectos morais, cívicos e políticos se
sobrepunham aos aspectos didático-metodológicos.
A legitimidade dessa comissão foi bastante questionada e a sua implementação
esbarrou em uma série de questões que inviabilizaram o cumprimento de suas propostas.
Na verdade, o projeto não conseguiu êxito em função da inoperância e da ineficiência de
todo um processo que vislumbrou sucessivos impasses e frustrações decorrentes da
“centralização do poder, do risco da censura, das acusações de especulação comercial e de
manipulação política, relacionada com o livro didático” (FREITAG et al., 1993, p. 14).
Contudo, em 1945 o Decreto-lei 8.460 consolidou a legislação 1.006/38 e dispôs sobre a
organização e o funcionamento da CNLD. Isso significa que, apesar dos sérios problemas
detectados na sua operacionalização, a comissão foi ampliada e se manteve com plenos
poderes.
Nos anos subseqüentes, surgiram inúmeras vozes críticas que atacavam o precário
desempenho da CNLD, atribuindo esse fracasso a uma política altamente centralizadora.
13
Durante um longo tempo, o “problema do livro didático” permaneceu reclamando soluções,
sempre esbarrando na ineficácia da política governamental. Somado a isso, vale ainda
salientar, havia um outro agravante: o livro didático se transformou em um produto de
mercado muito lucrativo, o que fez surgir, no já complicado cenário educacional, uma
crescente especulação comercial.
A esse respeito, não poderíamos deixar de mencionar o “escândalo da COLTED”.
Durante os anos sessenta, já sob o regime militar, se estabeleceu, pelo acordo
MEC/USAID11 (entre o governo brasileiro e o americano), a criação da Comissão do Livro
Técnico e do Livro Didático (COLTED) mudando, em muitos sentidos, a orientação da
política do livro didático no Brasil. Freitag et al. (1993) esclarecem que esse convênio,
firmado em 06/01/67, tinha como objetivo tornar disponíveis cerca de 51 milhões de livros
para estudantes brasileiros no período de três anos, sendo essa distribuição gratuita. Além
disso, segundo os mesmos autores, a COLTED propunha um programa de desenvolvimento
que incluiria a instalação de bibliotecas e um curso de treinamento de instrutores e
professores em várias etapas sucessivas. Para a consolidação desse programa, a comissão
contava com uma farta disponibilidade financeira.
Entretanto, críticos da educação brasileira denunciaram que, por trás da ajuda da
USAID, havia um controle americano das escolas brasileiras e, obviamente, dos livros
didáticos que sofriam, por assim dizer, um controle rígido de conteúdo (FREITAG et al.,
op.cit.). Em síntese, podemos dizer que o trabalho desenvolvido pela COLTED apresentou
resultados desastrosos, culminando em uma Comissão de Inquérito encarregada de apurar
irregularidades advindas de falcatruas que envolviam o mercado livreiro, especialmente o
de livro didático. A COLTED foi extinta em 1971.
Com a extinção da COLTED, a responsabilidade de desenvolver o Programa
Nacional do Livro Didático ficou delegada ao Instituto Nacional do Livro (INL), criado
pelo Decreto-lei nº 93 de 21 de dezembro de 1937. A esse programa cabia “definir
11 MEC/USAID é o nome de um acordo que incluiu uma série de convênios realizados a partir de 1964,
durante o regime militar, entre o Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International
Development (USAID). Os acordos MEC/USAID tinham o objetivo de implantar o modelo norte americano
no sistema educacional brasileiro. A discordância com os acordos MEC/USAID se tornaria na época a
principal reivindicação do movimento estudantil, cujas organizações foram em seguida colocadas na
clandestinidade. Alguns setores acreditavam que o convênio com os Estados Unidos levaria à privatização do
ensino no Brasil. (DICIONÁRIO INTERATIVO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA, 2002).
14
diretrizes para formulação de programa editorial e planos de ação do MEC e autorizar a
celebração de contratos, convênios e ajustes com entidades públicas e particulares e com
autores, tradutores e editores, gráficos, distribuidores e livreiros” (OLIVEIRA et al., 1984,
p.57).
Em 1976, a política do livro didático sofre nova redefinição. O Decreto-lei nº
77.107 transferiu para a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME) a
responsabilidade do Programa do Livro Didático. Sobre as competências da FENAME a
partir de então, Freitag et al. (1993, p.15) explicam que ela deveria “definir as diretrizes
para a produção de material escolar e didático e assegurar sua distribuição em todo
território nacional; formular programa editorial; cooperar com instituições educacionais,
científicas e culturais, públicas e privadas, na execução de objetivos comuns”. Ainda
segundo Freitag et al. (op.cit.), é a partir dessa época que surge explicitamente a vinculação
da política governamental do livro didático com a criança carente.
Sempre com o intuito de tentar solucionar os entraves da política do Livro
Didático, no início da década de oitenta o governo, por meio de uma política centralizadora
e assistencialista, decidiu passar para a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE) a
incumbência de gerenciar, dentre outros, o PLIDEF (Programa do Livro Didático – ensino
fundamental). Tal medida resultou nos seguintes problemas apontados por Freitag et al.
(op.cit.): dificuldades de distribuição do livro dentro dos prazos previstos, lobbies das
empresas e editoras junto aos órgãos estatais responsáveis, autoritarismo implícito na
tomada de decisões pelos responsáveis no governo.
É necessário, a essa altura do texto, chamar a atenção para um aspecto muito
importante quanto aos propósitos desta pesquisa. A história do livro didático no Brasil, até
a década de oitenta resume-se, como vimos, em uma série de decretos-lei e iniciativas
governamentais que criaram, de tempos em tempos, novas comissões, novos acordos com
vistas a regulamentar uma política satisfatória tanto para a produção quanto para a
distribuição de livros. Entretanto, as decisões, na maioria das vezes, partiam de um único
órgão (CNLD, COLTED, INL, FENAME, FAE) composto por técnicos e assessores do
governo, pouco familiarizados com a problemática da educação e, raras vezes, qualificados
para gerenciar a complicada questão do livro didático (FREITAG et al., 1993), o que nos
permite dizer que as decisões em torno do livro didático foram, via de regra, ineficazes por
15
conta da inexperiência e, sobretudo, da incompetência daqueles que respondiam pelo
ensino no Brasil, além, é claro, de toda essa questão estar inserida em uma política
altamente centralizadora. Ora, nesse contexto, o professor, um dos principais usuários do
livro, não participava seja dos processos decisórios do sistema educacional, em geral, seja
das discussões sobre o livro didático, em particular.
Dessa forma, muitos dos problemas percebidos ao longo da história do livro
didático no Brasil advêm de uma política educacional autoritária, burocrática e
centralizadora que, por força da própria ideologia que a sustenta, exclui o professor de
todas e quaisquer decisões sobre a problemática do ensino e, conseqüentemente, do livro
didático. A esse respeito Oliveira (1984, p. 65) argumenta que “os custos de um processo
centralizador em matéria de educação fazem-se sentir na defasagem entre a decisão e sua
execução, já que a responsabilidade de seleção do material a ser usado fica a cargo de
outros que não os que diretamente o farão: os professores”, ecoando junto com Nóvoa
(1995) quando este sugere que os professores ocupam, não raro, o “lugar do morto”. Se eles
não são ouvidos, se não participam, todo o trabalho desenvolvido pelos órgãos educacionais
está fadado ao fracasso, até porque se os professores estão excluídos dessa “engrenagem”,
nas palavras de Oliveira (op.cit.), eles não se sentem absolutamente responsáveis pelo seu
funcionamento.
Contudo, cabe aqui uma outra observação: lidar com essa herança deixada por
uma política centralizadora é uma tarefa bem mais complexa do que apenas inserir os
professores no bojo das discussões sobre o assunto. Fugiria, porém, aos limites deste
trabalho pretender discutir os determinantes negativos que tornam bastante sofrível o
ensino no Brasil, mas é importante, de qualquer forma, lembrar que a garantia de uma
escola de melhor qualidade passa necessariamente por uma política que, ao mesmo tempo
em que descentraliza as decisões acerca do livro didático, garante uma efetiva e eficaz
participação dos professores. É bom frisar que não se trata de simplesmente deixar sob a
responsabilidade do professor (despreparado, desmotivado, absurdamente mal remunerado,
sobrecarregado de aulas, ...) a tarefa da escolha dos livros que pretende usar em suas salas
de aula; trata-se, antes, de assegurar qualidade em sua formação para que ele possa
estabelecer critérios qualitativos para essa escolha, por meio de conhecimento, preparo e
consciência profissional. Nos capítulos que compõem a segunda parte deste trabalho, será
16
aprofundada essa questão; procuraremos, em todos os casos, refletir sobre a identidade do
professor de língua portuguesa.
Voltando aos problemas levantados anteriormente sobre a política do livro
didático, é importante ainda destacar que a indústria livreira no Brasil proliferou, durante
esse período, de maneira excepcional. Por conta de toda a inoperância do sistema
educacional, o aumento impressionante de livros descartáveis produzidos no Brasil não se
fez acompanhar, infelizmente, pela qualidade, já que muitos livros de má (ou péssima)
qualidade foram enviados para as escolas, tornando evidente o descaso e a falta de rigor
com que foram elaborados e avaliados. Esse problema se torna especialmente grave quando
atentamos para o fato de que, para muitos alunos, o livro didático é o único livro com o
qual eles têm contato.
Diante disso, em que pesem as inegáveis boas intenções de algumas propostas até
então, chegou um momento em que se fez urgente uma tomada de posição do governo com
vistas a garantir uma política de regulamentação do livro didático que fosse mais
competente e eficaz. Em princípio, é esse o objetivo do atual Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD). Sendo este programa o que está em vigor hoje, ele é o responsável pelos
princípios e critérios segundo os quais foram escolhidos os livros que serão analisados mais
adiante, merecendo, portanto, que se faça sobre eles uma reflexão destacada.
1. 2. Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)
O Ministério da Educação e do Desporto (MEC) criou em 1997 o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD) que teria por objetivos:
a) contribuir para socialização e universalização do ensino,
bem como para a melhoria de sua qualidade, por meio da
seleção, aquisição e distribuição de livros didáticos para todos os
alunos matriculados nas escolas das redes públicas do ensino
fundamental de todo o País, cadastrados no Censo Escolar;
b) diminuir as desigualdades educacionais existentes,
buscando estabelecer padrão mínimo de qualidade pedagógica
para os livros didáticos utilizados nas diferentes regiões do País;
c) possibilitar a participação ativa e democrática do professor
no processo de seleção dos livros didáticos, fornecendo subsídios
para uma crítica consciente dos títulos a serem adotados no
Programa;e
17
d) promover a crescente melhoria física e pedagógica dos
livros, garantindo a sua utilização/reutilização por três anos
consecutivos. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2001)
Para sua implementação, o governo estabeleceu duas formas de ação: uma
centralizada, isto é, todas as ações relativas ao PNLD são desenvolvidas pelo Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); e outra descentralizada, cabendo às
Secretarias Estaduais de Educação tanto gerenciar os recursos repassados pelo FNDE,
como responsabilizar-se por todo o processo de execução do Programa. Vale dizer que o
Paraná, estado onde realizamos a presente pesquisa, optou pela ação centralizada.
Quanto ao seu funcionamento, o PNLD segue atualmente as seguintes etapas:
PNLD
Edital de convocação para
inscrição no processo de
avaliação e seleção de livros
didáticos a serem incluídos no
“Guia de Livros Didáticos” de
5ª a 8 ª séries do PNLD/2002
(publicação das regras e das
etapas)
Inscrição dos Livros Didáticos
Triagem dos Livros
(responsabilidade da
Comissão Especial de
Recepção e Triagem – CRT)
Avaliação Pedagógica
(responsabilidade da
Secretaria de Educação
Fundamental do MEC)
Guia do
Livro
Didático
Escolha dos Livros
pelas escolas
(professores,
diretores,...)
Distribuição
dos Livros
Didáticos
18
Segundo informativos do MEC, o alcance desse programa - 33 milhões de
estudantes – não tem precedentes na história da educação brasileira. Todos os alunos do
ensino fundamental de escolas públicas, cadastrados no Censo Escolar, são beneficiados
com a execução do PNLD. Para chegar até as mãos dos alunos, os livros passam pelos
trâmites apontados acima e são, finalmente, entregues diretamente da editora à escola, por
meio de uma parceria entre o FNDE e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos –
ECT.
Sobre as etapas por que passam os livros, vale a pena destacarmos a questão da
avaliação pedagógica. Para tratar disso, recorremos ao Edital de Convocação (Ministério da
Educação, 2002) e ao Projeto de Avaliação de Livros Didáticos (Ministério da Educação,
2001). As obras didáticas inscritas no PNLD e aprovadas no processo de triagem pela
Comissão Especial de Recepção e Triagem, são encaminhadas para a Secretaria de
Educação Fundamental (SEF) que, por sua vez, define os princípios e os critérios para a
avaliação pedagógica das obras. Para isso, a SEF estabelece as seguintes estratégias:
formam-se equipes de especialistas das áreas do conhecimento, com experiência docente;
cada equipe possui um coordenador e um assessor, que desenvolvem a análise e a avaliação
junto aos especialistas-pareceristas; os especialistas elaboram resenhas dos livros
aprovados, que passam a compor o Guia de Livros Didáticos. Esse último é enviado para as
escolas para subsidiar a escolha do livro didático pelos professores.
Na primeira edição do PNLD, em 1997, 80 títulos de um total de 466 livros
didáticos de 1ª a 4ª série, encaminhados para avaliação, foram excluídos e outros 281
entraram na categoria “não-recomendado”. Mesmo não sendo recomendados, as resenhas
desses livros foram publicadas no Guia com o intento de mostrar que muitos livros eram de
má qualidade. Ocorreu que milhares de professores optaram mais pelos títulos nãorecomendados
do que pelos bem avaliados. Por isso, na edição de 1999, o PNLD excluiu os
não-recomendados e criou uma classificação por um código de estrelas: *** Livros
recomendados com distinção; ** Livros recomendados; * Livros recomendados com
ressalvas.
Em reportagem publicada na revista Nova Escola12, Nabirra Gebrin de Souza,
coordenadora geral de Avaliação de Materiais Didáticos e Pedagógicos do Ministério,
12 NOVA ESCOLA, Março, 2001, 17, p.16-20.
19
explica algo bastante interessante sobre essa questão de livros “estrelados”. No PNLD 99,
que avaliou livros do 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª série), a maioria dos professores decidiu-se pelos
livros recomendados com distinção, ou seja, com três estrelas. Segundo a coordenadora,
surgiram problemas com profissionais que não conseguiam desenvolver as “sofisticadas”
atividades propostas pelos livros altamente estrelados. Na edição seguinte, segundo a
mesma reportagem, os professores “fugiram” dos livros recomendados com distinção,
porque acreditavam que, escolhendo livros menos estrelados, estariam optando por uma
obra teoricamente mais simples. Em função disso, livros didáticos com duas estrelas
venderam mais do que os que possuíam três estrelas, o que fez com que os autores
preferissem não ganhar as três estrelas de distinção.
Isso tudo deixa bastante evidente o descompasso que existe entre aqueles que
produzem o livro didático, aqueles que examinam, julgam e avaliam os livros na esfera
governamental e aqueles que, de fato, os utilizam nas salas de aulas, ou seja, os professores.
Embora as equipes avaliadoras sejam formadas, também, por professores que atuam nos
níveis Médio e Fundamental, a maior parte é de profissionais que estão distantes da
concretude do cotidiano escolar.
Criam-se, assim, duas situações que são, a rigor, conflitantes e preocupantes: de
um lado estão os agentes do MEC que legitimam o livro didático, determinando os títulos
que poderão ser utilizados nas aulas a partir de concepções de ensino generalizantes que
forçam uniformidade onde não existe, isto é, os critérios para avaliação dos livros não
partem de diagnósticos regionais mais precisos já que, em suas resenhas, os especialistas
não especificam para que tipo de professor ou de comunidade escolar o livro é indicado,
sendo o mesmo título recomendado para o ensino de norte a sul do país; do outro lado estão
os professores, não aqueles genéricos e abstratos aos quais o Guia dos livros didáticos se
destina, mas os reais e concretos que ficam, muitas vezes, alheios a todo o processo de
execução do PNLD.
É necessário insistir no fato de que o propósito do PNLD, ao avaliar os livros
didáticos, é promover a melhoria da qualidade dos livros partindo do pressuposto de que:
esta melhoria é fundamental ao processo ensino-aprendizagem,
apresentando-se como instrumento básico do trabalho
pedagógico desenvolvido pelo professor, dentro e fora da sala
de aula, quando não o único.
20
Como instrumento de aprendizagem, o livro didático deve
apresentar conteúdo e atividades que favoreçam a aquisição do
conhecimento, por meio da reflexão e da resolução de
exercícios propiciada pela observação, pela análise e por
generalizações, visando ao desenvolvimento da criatividade e
da crítica.
Atendendo a essas prerrogativas, o livro possibilita ao aluno
tornar-se sujeito de sua própria aprendizagem e ao professor
assumir a responsabilidade pela condução da mesma
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2001).
A partir de tais afirmações, podemos entrever que o livro didático é concebido
como algo que se impõe, necessariamente, no processo de ensino-aprendizagem e, portanto,
na relação professor-aluno. Não é difícil constatar que, assim concebido, o livro didático
assume configurações de autoridade, de detentor das verdades que deverão ser ensinadas,
além de ser o condutor, o norteador das atitudes do professor, já que a ele é destinada a
tarefa de orientar o professor sobre o como ensinar, o quando ensinar, o que ensinar, etc. A
esse respeito, Souza (1999, p.57) afirma que “a iniciativa do MEC para avaliar e classificar
livros didáticos não deve necessariamente ser vista como um “ato perverso” de controle,
mas não deixa de ser um gesto de censura, com implicações didático-pedagógicas”. Gesto
de censura porque, de acordo com a mesma autora, ao avaliar os livros determinando quais
são os recomendados, “estabelece-se uma forma ideológica (de aparente naturalidade) da
destituição da autoridade do professor, de sua condição de sujeito social capaz de produzir
sentidos, de interpretar”. Com outras palavras, o MEC pressupõe que o professor não é
capaz, por si só, de identificar erros nos manuais didáticos e corrigi-los; tampouco é capaz
de assumir uma postura crítica face ao livro didático que ele utiliza em suas aulas.
Observamos, mais uma vez, que os órgãos federais que respondem pela educação
no Brasil, vêem, de um lado, o professor como um ser que não tem voz e nem vez
(ocupando, portanto, o “lugar do morto”); e de outro, o livro didático, como um elemento
altamente valorizado, transformado em um instrumento essencial da atividade docente.
Pensar no livro didático como algo imprescindível, detentor de um saber definido, pronto,
acabado, correto, fonte última (e às vezes, única) de referência, traz graves problemas para
a educação como um todo. A nosso ver, o malefício maior dessa situação recai no efeito
silenciador que se instaura na figura do professor. A ele cabe apenas, enquanto ser
legitimado e institucionalmente autorizado a manejar o livro didático, reproduzir as
21
verdades sacramentadas (CORACINI, 1999) e autorizadas pelas equipes que avaliaram o
livro. Ou seja, o professor se reduz a um mero “porta-voz” dos discursos veiculados pelos
livros didáticos.
A esse respeito, é conveniente apresentarmos, resumidamente, um estudo de
Geraldi (1997) a respeito da relação entre produção de conhecimentos e ensino. Consta na
história da educação que o professor, antigamente, se caracterizava ou se identificava pelo
fato de ser ele mesmo um produtor de conhecimentos, produtor de um saber, de uma
reflexão, ou seja, até os inícios da modernidade, entre aquele que ensinava e aquele que
produzia conhecimento não havia uma separação radical: quem ensinava gramática, por
exemplo, era o próprio gramático. Na época do mercantilismo, “o mestre já não se constitui
pelo saber que produz, mas por saber um saber produzido que ele transmite” (op. cit., p.87),
ou em outras palavras, o mestre passa de produtor a transmissor de conhecimentos, sendolhe
necessário estar sempre a par das últimas descobertas da ciência para poder, então,
ensinar. Ocorre que, segundo Geraldi:
Isto sempre significa estar desatualizado, pois não convivendo
com a pesquisa e com os pesquisadores e tampouco sendo
responsável pela produção do que vai ensinar, o professor (e sua
escola) está sempre um passo aquém da atualidade. (op. cit., p.
88).
E, hoje, como se dá a relação do professor com o conhecimento que ele deve
ensinar? É fácil percebermos que essa relação mudou qualitativamente em muitos sentidos.
O que mais nos chama a atenção é que, por conta de novas configurações político-sociais, a
reflexão e a produção de conhecimentos passaram a ficar subordinadas a relações de
interesse e também a condições de infra-estrutura técnica. E uma dessas condições é o uso
de livro didático, escolhido e legitimado pelas equipes de especialistas do MEC-PNLD.
Geraldi (op.cit) argumenta que entre o conhecimento produzido e o ensino efetivo
nas escolas se coloca o material didático; posto à disposição do trabalho de transmissão. Ao
professor cabe, apenas, a escolha do livro didático que consta no Guia. Daí concordarmos
com esse autor quando ele compara o professor com a figura de um “capataz de fábrica”.
Nas palavras de Geraldi, constatamos que as condições de trabalho do professor resumemse,
atualmente, ao seguinte:
22
Sua função é controlar o tempo de contato do aprendiz com o
material previamente selecionado; definir o tempo de exercício e
sua quantidade; comparar as respostas do aluno com as respostas
dadas no “manual do professor”, marcar o dia da “verificação da
aprendizagem”, entregando aos alunos a prova adrede preparada.
(op. cit., p. 94).
Eis aí um ponto importante sobre a identidade do professor de língua portuguesa
que deverá ser considerado e aprofundado no desenvolvimento das análises neste estudo.
Passaremos a verificar, na seqüência, as características do livro didático de língua
portuguesa, bem como os princípios e os critérios de avaliação aos quais ele se submeteu.
1.3. Livro Didático de língua portuguesa: características e implicações
Vimos que, ao longo da história do livro didático, ele foi, intencionalmente ou não,
ganhando estatuto de imprescindível na política educacional e nos processos de ensinoaprendizagem.
Pudemos constatar, também, que disso resulta uma situação problema: a
presença do manual didático, muitas vezes, direciona o trabalho docente, acabando por
calar-lhe a voz, uma vez que ele se impõe como fonte de conhecimento e de verdade.
Ao nos concentrarmos especificamente na questão do livro didático de língua
portuguesa, verificamos que o cenário não é diferente. Segundo a voz corrente, o professor
dessa disciplina deixa-se conduzir pelos manuais didáticos, reproduzindo mecanicamente as
propostas. Nestes, tudo já está pronto: textos selecionados, exercícios de interpretação
elaborados, pontos de gramática gradativamente inseridos no conjunto da coleção didática,
além, é claro, de propostas de redação. No livro do professor, encontramos roteiros
detalhadamente apresentados, contendo as respostas corretas, material suplementar e até
mesmo sugestões de provas; tudo feito para “ajudar” o trabalho do docente e evitar
possíveis falhas na condução do ensino da língua. Importa aqui perguntarmos: será que isso
ocorre por simples comodismo? O que é que está por trás dessa situação que a torna tão
perniciosa tanto para o ensino quanto para a imagem do docente?
É refletindo sobre isso que julgamos relevante resgatar algumas características do
livro didático de língua portuguesa, observáveis nas últimas décadas, até chegarmos às
23
configurações que os manuais apresentam hoje para, depois, verificarmos os livros
didáticos enquanto vozes que guiam a ação docente e que interferem, portanto, no processo
de identificação do sujeito-professor.
Para tanto, partimos do princípio de que existem diferentes modos de se entender a
linguagem, e que cada um desses modos constitui uma teoria que embasa as propostas dos
livros didáticos. Em outros termos, há a considerar que as fontes de referência das
propostas dos livros didáticos de língua portuguesa são os estudos lingüísticos realizados
dentro das várias teorias e correntes lingüísticas, incluindo aqui tanto os chamados estudos
tradicionais, quanto aqueles feitos pelas diferentes teorias e correntes da Lingüística. Por
isso, precisamos entender tanto a metodologia quanto os conteúdos de ensino presentes nos
manuais à luz das concepções de linguagens que norteiam o ensino da língua portuguesa
como um todo.
1.3.1. O velho e o novo livro didático de língua portuguesa.
Antes dos anos quarenta, no Brasil, inexistiam manuais ou gramáticas pedagógicas
tais como as que conhecemos atualmente. De acordo com Soares (1998, p.55) apud
Marcuschi (2001, p.2), a denominação da disciplina Português ou Língua Portuguesa só
passou a existir nas últimas décadas do século XIX.
Mais próximo dos nossos dias, já na década de sessenta, segundo Fregonesi
(1997), era comum existirem dois tipos de materiais didáticos destinados ao ensino da
língua portuguesa, sendo um uma antologia, que trazia coletânea de textos sem indicações
metodológicas ou exercícios, e o outro, uma gramática, especialmente elaborada para os
alunos.
Historiando o ensino de língua portuguesa, Fregonesi (op.cit.) também explica por
quais caminhos passaram as determinações legais que estabeleciam os conteúdos
programáticos dessa disciplina e que, portanto, deveriam ser considerados na produção dos
livros didáticos destinados ao ensino da língua portuguesa. Inicialmente, o autor lembra que
foi pela Portaria Ministerial nº 170 de 17/07/42 que se estabeleceu o Programa Oficial de
Língua Portuguesa, cuja diretriz era bastante rígida. Com a reforma do ensino em 1951, a
24
programação oficial passou a ser elaborada por professores do Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro, e essa programação deveria ser adotada em todo território nacional, conforme a
Portaria ministerial de 2/10/1951. O interessante aqui é que começava a tomar corpo uma
questão bastante atual: com base na programação “sugerida” pelos renomados professores
do referido colégio, surgiram as sugestões metodológicas que iam “desde a indicação de
textos de leitura e de exercícios de linguagem oral e redação até a maneira como o
professor deveria se ocupar de questões gramaticais e de vocabulário” (FREGONESI, op.
cit.). Além disso, listas de conteúdo programático determinavam o que deveria ser
desenvolvido em cada série.
Nessa época, vale dizer, a concepção de linguagem e, portanto, de ensino da língua
portuguesa que iluminava a prática pedagógica dos professores, era a tradicional, isto é,
ensinar língua significava, basicamente, ensinar a teoria gramatical. Os manuais didáticos,
baseados como já dissemos nos Programas Oficiais visavam, sobretudo, ao ensino da
gramática normativa. Lamentavelmente, ranços dessa época são, ainda hoje, facilmente
observados em muitos contextos escolares.
O caráter rígido dos programas para o ensino da língua portuguesa só desapareceu
com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – lei nº 4.024 de 20/12/61. A
partir de então, o governo criou as “Instruções” intituladas Amplitude e Desenvolvimento
do Programa de Português, que apresentavam recomendações quanto ao desenvolvimento
de atividades relacionadas com a expressão Escrita e a Gramática Expositiva.
Mas foi, certamente, com a entrada em vigor da Lei 5.692 de 1971, que
aconteceram mudanças mais intensas na educação brasileira, e por extensão, no ensino da
língua portuguesa. Essa lei chegou a alterar o próprio nome da disciplina que deixou de ser
língua portuguesa, tornando-se comunicação e expressão. Quanto aos conteúdos a serem
desenvolvidos na disciplina, o governo federal estabeleceu que cada unidade da Federação
deveria elaborar suas propostas de ensino para o desenvolvimento das atividades didáticopedagógicas.
Deter-nos-emos um pouco nesse período para que algumas observações
possam ser feitas.
Sob a vigência da LDB 5.692/71, os livros didáticos conquistaram seu auge. Isso
porque a concepção de ensino/aprendizagem que iluminava as propostas educacionais nessa
época era regida basicamente pela psicologia behaviorista e pelo funcionalismo norte25
americano. Acreditava-se, segundo essas teorias, que a aprendizagem acontecia por meio de
insistentes e numerosas repetições, pois se partia do pressuposto de que o sujeito
conseguiria internalizar conhecimentos (no sentido de colocar para dentro, já que o saber
estaria fora do indivíduo) se ele fosse submetido a exercícios de treinamento. Similarmente,
o ensino da língua portuguesa estava fortemente influenciado pelos modelos estruturalistas
de descrição dos fatos de linguagem e pelo desenvolvimento da ciência da comunicação e,
por isso, as práticas pedagógicas priorizavam o trabalho com estruturas isoladas porque se
acreditava que, assim, o aluno estaria desenvolvendo a expressão tanto oral quanto escrita.
Ora, nenhum material seria melhor do que o livro didático para se desenvolver essa prática,
pois os manuais traziam inúmeros exercícios ditos estruturais com o objetivo de fazer os
alunos reproduzirem à exaustão os modelos. A expressão de ordem nos exercícios era
justamente “siga o modelo”. Ao professor cabia apenas controlar a aprendizagem, sem
muito esforço, posto que todos os exercícios já vinham resolvidos no manual do professor.
Está, portanto, esboçado o quadro perfeito para a proliferação do livro didático.
Não nos esqueçamos, porém, de somar a tudo isso as iniciativas governamentais que deram
total respaldo para a impressionante proliferação dos manuais didáticos, garantindo a
produção maciça de livros, com vistas a uma demanda certa e a um mercado altamente
rendoso.
Sobre a força que o livro didático foi conquistando nos contextos escolares nesse
período, Silva (1998, p. 44) argumenta que isso aconteceu em função de dois cenários que
estavam sendo construídos, ao toque da ditadura: “1º) a introdução e a sedimentação da
pedagogia tecnicista (...); 2º) a opressão ao trabalho dos professores”. A ideologia
tecnicista, segundo esse autor, preconizava que os “bons didáticos” seriam capazes de
assumir a responsabilidade docente que os professores cumpriam cada vez menos. É por
essa razão que, ainda hoje, muitos professores buscam nos livros didáticos métodos ou
estratégias de ensino milagrosas, capazes de, por si mesmos, conduzirem o ensino e
gerarem aprendizagens. Quanto à opressão ao trabalho dos professores, ela está, de certa
forma, associada ao processo de perda da dignidade profissional, principalmente daqueles
que trabalham nos ensinos fundamental e médio. Essa foi a maneira encontrada pelas
ditaduras, segundo Silva (op.cit., p.45), “de impedir a reflexão política nas escolas e, ao
mesmo tempo, de calar a voz dos professores”.
26
Além disso, é preciso considerar um outro fenômeno que contribuiu para o
aumento da produção de livros didáticos. Na década de sessenta, inicia-se um movimento
de democratização do ensino, isto é, a escola passa a ser cada vez mais acessível à
população. Com tal democratização, cresceu enormemente o número de alunos nas escolas
brasileiras. Em contrapartida, surgiu a necessidade de se aumentar também o número de
professores. A grande proliferação dos cursos de Letras por todo o País, por exemplo, está
associada a essa necessidade de preparar apressadamente professores de língua portuguesa
para o mercado de trabalho. Entretanto, muitos cursos ofereciam ao futuro docente uma
formação bastante precária, deixando-o carente de competência teórica e prática para lidar
com o ensino da língua.
Na verdade, essa perda crescente da qualidade na formação do professor atendia
aos interesses político-ideológicos do regime militar, isto é, esse regime espelhou na
educação brasileira o caráter antidemocrático de sua proposta de governo; instituiu a Lei
4.024, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1971, cuja característica mais
marcante era tentar dar à formação educacional um cunho profissionalizante e, na esteira
dessa concepção, planejava-se fazer com que a educação contribuísse, de forma decisiva,
para o aumento da produção brasileira. Era proibido o debate, era proibido questionar:
nesse contexto de amordaçamento, formam-se enormes quantidades de professores de
língua carentes de criticidade e de competência teórico-prática. Qual seria a saída? O livro
didático. Sem ser capaz de refletir crítica e teoricamente sobre a linguagem, sem ter, não
raro, domínio do uso da língua em termos de sua estrutura, funcionamento e manifestações
culturais, além de não ter consciência das variedades lingüísticas inerentes à linguagem, o
professor de língua portuguesa recorre ao livro didático que se torna, assim, conforme
Coracini (1995, p.19), “representante fiel da ciência já que é o único suporte teórico do
conhecimento do professor e das aulas por ele ministradas”.
Surgem, assim, as obras didáticas tal qual nós as conhecemos hoje, isto é, títulos
organizados por coleções de volumes, destinados a um segmento de ensino e elaborados em
relação a um programa curricular de acordo com uma progressão de conteúdos definida em
termos de séries ou, como se diz atualmente, de ciclos.
Vejamos, agora, como se apresentam os atuais livros didáticos de língua
portuguesa que foram encaminhados ao MEC/PNLD/2002 para serem avaliados e,
27
portanto, autorizados para escolha dos professores, mediante resenhas publicadas no Guia
do livro didático.
Os avanços conquistados pela área das ciências lingüísticas deslocaram os
objetivos do ensino da língua portuguesa. A partir dos anos oitenta, a produção intelectual
da lingüística passa a exercer grande impacto sobre as propostas de ensino, pois muitas
explicações sobre o fenômeno da linguagem revelaram-se pertinentes e necessárias para a
prática de ensino de língua materna. Com o surgimento de novos modelos de análise de
linguagem, rejeita-se o dogmatismo do ensino da gramática tradicional, em particular do
ensino da nomenclatura gramatical. Reconhecendo-se como redutora a idéia segundo a qual
a linguagem seria apenas “instrumento de comunicação”, assume-se uma visão mais
dinâmica e interativa da língua e se considera que todo estudo da língua deve levar em
consideração: a) sua inserção em contextos sociais relevantes; b) suas diversas formas de
representação e manifestação.
O reflexo direto dessas mudanças pode ser constatado nos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP). Para citar apenas um exemplo,
consta nesse documento oficial que “toda educação comprometida com o exercício da
cidadania precisa criar condições para que o aluno possa desenvolver sua competência
discursiva” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1998, P. 23). Mais à frente, encontramos:
(...) não é possível tomar como unidades básicas do processo
de ensino as que decorrem de uma análise de estratos –
letras/fonemas, sílabas, palavras, sintagmas, frases – que
descontextualizados, são normalmente tomados como
exemplos de estudo gramatical e pouco têm a ver com a
competência discursiva. Dentro desse marco, a unidade básica
do ensino só pode ser o texto.
Ainda que os PCNs sejam alvo de algumas críticas, não podemos negar que a
presença das teorias lingüísticas contemporâneas nesse documento representa um grande
avanço. O sucesso ou o fracasso dessas propostas depende, a nosso ver, de como elas serão
conduzidas e efetivadas no universo onde elas assumem especial significação – na sala de
aula.
Dentre os princípios e critérios para avaliação dos livros didáticos de língua
portuguesa, determinados pela comissão que faz a seleção dos livros que constarão nos
28
Guias, ressalta-se como referência básica para as análises o atendimento aos PCNLP. Com
efeito, um livro didático de língua portuguesa deveria apresentar, basicamente, um
tratamento da língua voltado para a concepção interacionista de linguagem.
Marcuschi (2001) ressalta alguns aspectos positivos dos PCNLP com relação ao
ensino e que, a rigor, deveriam ser considerados pelos autores de livros didáticos de língua
portuguesa para que seus livros pudessem ser escolhidos. São estes aspectos: a) adoção do
texto como unidade básica de ensino; b) produção lingüística tomada como produção de
discursos contextualizados; c) noção de que os textos distribuem-se num contínuo de
gêneros estáveis, com características próprias e são socialmente organizados tanto na fala
como na escrita; d) atenção para a língua em uso, sem se fixar no estudo da gramática como
um conjunto de regras, mas frisando a relevância da reflexão sobre a língua; e) atenção
especial para a produção e compreensão do texto escrito e oral; f) explicitação da noção de
linguagem adotada, com ênfase no aspecto social e histórico; g) clareza quanto à variedade
de usos da língua e variação lingüística.
Assim, podemos perceber facilmente no Guia do livro didático que, consoante ao
proposto nos PCNLP, os livros submetidos à avaliação deveriam priorizar em suas
propostas as práticas de uso da linguagem, isto é, as atividades de leitura e compreensão de
textos, de produção de textos escritos e de produção e compreensão de textos orais, em
situações reais de uso. Os PCNLP orientam que as práticas de reflexão sobre a língua e a
linguagem e a descrição gramatical devem se exercer sobre os textos e discursos, à
proporção que se fizerem necessárias e significativas para a (re)construção dos sentidos dos
textos.
Especificando um pouco mais, é preciso dizer que esse controle de qualidade
pretende garantir, conforme ressalta Rangel (2002), que o livro didático disponível para as
escolas públicas contribua efetivamente para a consecução dos objetivos do ensino de
língua portuguesa no ensino fundamental. Perseguindo esse objetivo, a comissão técnica
que avaliou os livros didáticos de língua portuguesa no PNLP/2002, considerou três
diretrizes fundamentais, relativas à:
a) correção e articulação dos conceitos e informações básicas: o livro didático de
língua portuguesa deve pautar-se pela clareza e correção quer dos conceitos,
29
quer das informações que transpõe. Os livros devem estar isentos de erros e/ou de
formulações que induzem a erros;
a) coerência e pertinência didático-metodológicas. Basicamente, o livro
didático deve mobilizar e desenvolver o maior número possível das
capacidades e competências envolvidas em leitura, produção de textos,
práticas orais e reflexão sobre a linguagem; deve, também, explicitar sua
proposta metodológica, respeitando os preceitos básicos que lhe dão
identidade e permitem não só identificá-la, mas compreender seu alcance; por
fim, considerando as opções teórico-metodológicas assumidas, deve realizálas,
ao longo dos livros da coleção, de maneira coerente, nas diversas
atividades de leitura, produção de texto, práticas orais e reflexão sobre a
língua e a linguagem.
b) contribuição à construção da cidadania. O livro didático não deve
veicular, nos textos ou nas ilustrações, preconceitos que levem a
discriminações de qualquer tipo, incluindo-se aí preconceitos contra as
variedades lingüísticas não-dominantes.
Atender a tais requisitos implica apresentar um livro didático, conforme ressalta
Rangel (2002), apto a enfrentar os novos objetos didáticos do ensino da língua portuguesa,
quais sejam: o discurso, a língua oral, a variação lingüística, a textualidade, as diferentes
gramáticas de uma mesma língua, etc. É nessa direção que os autores de livros didáticos
precisam avançar, pois claro está que se eles não apresentaram suas obras em consonância
com esses requisitos, tiveram seus livros excluídos do Guia e, conseqüentemente, das
escolas públicas brasileiras. Vale observar que inúmeros livros foram de fato excluídos
(EX), conforme podemos constatar no gráfico abaixo; os que constam no Guia, são
classificados como obra recomendada – REC, e obra recomendada com ressalvas – RR. Da
avaliação dos livros de língua portuguesa encaminhados para avaliação no PNLD-2002 ,
resultaram os seguintes dados, extraídos dos informativos do Ministério da Educação
(2002):
30
Gráfico 1: Avaliação dos livros didáticos – PNLD-2002
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
40%
45%
EX
RR
REC
As considerações que apresentamos até aqui caracterizam o livro didático no
cenário da educação em geral, e no ensino da língua portuguesa em particular. Interessa-nos
de ora em diante, saber como, diante dessa estrutura legitimada, com implicações bastante
questionáveis, se dá a constituição de uma identidade profissional tomando como premissa
básica o fato de que o livro didático é um eixo em torno do qual os professores exercem as
práticas de sala de aula.
31
2. UM PERCURSO PARA A HETEROGENEIDADE: balizas
teóricas
Para que possamos lançar um olhar sobre os dizeres dos livros didáticos e
compreender aí elementos que interferem no processo de identificação do sujeito professor,
adotaremos, neste estudo, a Análise do Discurso como baliza teórica para as análises e
reflexões que focalizaremos adiante. Prioritariamente, valer-nos-emos da noção de
heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, postulada por Authier-Revuz
(1982).
De início, é importante dizer que a Análise do Discurso (AD), edificada por
Pêcheux na França, a partir da década de sessenta, nasceu do questionamento sobre a
epistemologia da Lingüística imanente, dedicada, como sabemos, ao estudo da língua
enquanto abstração.
A linguagem, para a AD, só interessa à medida que ela faz sentido para “sujeitos
inscritos em estratégias de interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas”
(MAINGUENEAU, 1993, p.11). A AD, conforme aponta Orlandi (2000, p.16), trabalha
com a “língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a
produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto
membros de uma determinada forma de sociedade”. Essa autora afirma que “é o discurso
que torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a
transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso
está na base da produção da existência humana” (op.cit., p.15). A linguagem, nessa
perspectiva, é considerada uma ação constitutiva e transformadora que o homem estabelece
com a realidade natural e social.
É porque concordamos com Orlandi (op.cit.) quando ela salienta que com a AD
podemos conhecer melhor aquilo que faz do homem um ser especial com sua capacidade de
significar e significar-se por meio da linguagem, que optamos pela perspectiva teóricometodológica
da AD para a realização desta pesquisa.
Passaremos, pois, a expor sobre essa disciplina, que tem demonstrado sua
fertilidade em inúmeros trabalhos científicos. O que nos importa, aqui, é apresentar
32
algumas noções básicas que compõem o arcabouço teórico da AD para, então, construirmos
um quadro teórico de referência a partir do qual buscaremos compreender a questão da
identidade do professor de língua portuguesa, considerando a rede interdiscursiva que
envolve o docente.
2.1. Análise do discurso: algumas considerações.
O surgimento da Análise do Discurso foi fortemente marcado pelo trinômio
Saussure-Freud-Marx, pois a conjuntura política e intelectual francesa dos anos 60, sob a
égide do estruturalismo, propiciou uma articulação entre três domínios disciplinares (que
são ao mesmo tempo uma ruptura com o século XIX) derivados dos estudos desses autores,
quais sejam: a Lingüística, a Psicanálise e o Marxismo. Dessa forma, podemos afirmar,
junto com Orlandi (2000), que a AD situa-se:
a) na Lingüística: com a problematização do corte saussureano. A AD
entende que a língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente
autônoma. Sua diferença com relação à Lingüística se dá pelo fato de
que a AD reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da
linguagem.
b) no Materialismo Histórico, considerando a releitura que Althusser fez
da obra de Marx. Foi com base na teoria da interpelação do sujeito
segundo a qual só há ideologia pelo sujeito e para os sujeitos, que
Pêcheux trouxe para a AD a noção de assujeitamento. Para Pêcheux,
não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. O
indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a
língua faz sentido.
c) na Psicanálise: a partir da releitura lacaniana de Freud. Neste campo,
emerge a idéia do sujeito na sua relação com o simbólico, pensando o
inconsciente como estruturado por uma linguagem.
Notamos, assim, que a AD provoca um deslocamento no modo de se conceber
tanto a linguagem quanto o sujeito, isto é, a epistemologia que interessa à Análise do
Discurso, segundo Orlandi (1996, p.36) “não se alinha no paradigma da epistemologia
33
positivista, mas no da histórica, e, em relação a esta, no da descontinuidade, suprimindo,
com efeito, a separação entre objeto/sujeito, exterioridade/interioridade, concreto/abstrato,
origem/filiação, evolução/produção etc”.
Ao fazermos Análise do Discurso, estamos buscando compreender a língua
fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico. A AD não trabalha com a língua fechada
nela mesma, vista como um sistema abstrato, mas com o discurso, tomado como um objeto
sócio-histórico em que o lingüístico intervém como pressuposto.
Para entendermos melhor essa questão, recorremos à noção de funcionamento
explicada por Orlandi (1987). Para ela:
Do ponto de vista da análise do discurso, o que importa é
destacar o modo de funcionamento da linguagem, sem
esquecer que esse funcionamento não é integralmente
lingüístico, uma vez que dele fazem parte as condições de
produção, que representam o mecanismo de situar os
protagonistas (p.117).
É nesse sentido que a AD apresenta uma nova maneira de interpretar as
materialidades escritas e orais, pois o que interessa observar nas pistas lingüísticas é o
modo como elas funcionam discursivamente. Assim, para se ter alguma significação dos
processos discursivos, é necessário considerar juntamente com a superfície lingüística, os
interlocutores e o contexto histórico-social.
Tendo em conta, portanto, que não há uma separação estanque entre o lugar em
que acontece a linguagem (o lingüístico) e a exterioridade necessária para que se possa
apreender o seu funcionamento, a AD investiga os processos que constituem os fatos de
linguagem e não somente os produtos já prontos desse processo. Para interpretar um texto,
por exemplo, busca-se compreender os processos de sua produção.
Dito de outra forma, a AD procura mostrar como a relação que liga os sentidos de
um texto à sua exterioridade é constituída pelo contexto histórico e social, pela ideologia,
pela situação, pelo falante e o ouvinte, e pelo objeto do discurso, de tal forma que o que se
diz tem relação com quem diz, com o que não se diz, com o lugar social daquele que diz,
para quem se diz, em relação ao que os outros dizem etc.
Vimos, então, que com a AD temos a possibilidade de trabalhar com os processos
que constituem os fatos de linguagem e não somente com os produtos já prontos desse
34
processo. Isso porque a forma material do discurso não é, como já foi dito, somente
lingüística, mas também histórico-social. Acrescentemos que a forma sujeito do discurso,
por sua vez, é ideológica, assujeitada, não psicológica, não empírica (GREGOLIN, 2001).
2.2. Quadro teórico de referência
Passaremos, agora, a examinar alguns conceitos e noções que irão compor o nosso
quadro teórico de referência e que estarão, portanto, sustentando as análises de nosso
corpus. Inicialmente trataremos da relação existente entre discurso e texto; depois
falaremos sobre as condições de produção do discurso e as formações discursivas; só,
então, concentraremos nossa atenção nas noções de subjetividade, alteridade e identidade.
Finalmente, trataremos da heterogeneidade constitutiva do sujeito.
2.2.1. Relação entre discurso e texto.
Em nossa posição teórica, a unidade da análise de discurso é o texto. Portanto, é
necessário nos determos um instante nessa questão para que alguns esclarecimentos possam
ser feitos.
Sobre a noção específica de discurso, recorremos a Pêcheux (1997) que ensinou,
apoiando-se no conhecido esquema da teoria da comunicação, que é preciso entendê-la
diferentemente da noção de mensagem.
Como se sabe, a função comunicacional jakobsoniana sugere um esquema no qual
há: a) um emissor ou destinador, que emite uma mensagem; b) um receptor ou destinatário,
que recebe a mensagem; c) uma mensagem, que é o objeto da comunicação; d) um canal de
comunicação, que é a via de circulação das mensagens; e) um código, que é o conjunto de
signos e regras de combinações destes signos; f) um referente, que é constituído pelo
contexto, pela situação e pelos objetos reais aos quais a mensagem remete.
A mensagem, nesses termos, é entendida como transmissão de informação e os
locutores ali representados são tomados como sujeitos empíricos. A esse respeito, Pêcheux
(op.cit., p.82) escreve que o discurso não é necessariamente uma transmissão de informação
35
entre os interlocutores, mas um “efeito de sentidos” entre eles. É por essa razão, vale dizer,
que os sentidos, em AD, nunca se dão em definitivo.
Orlandi (1987, p.158), ao tratar da relação entre texto e discurso, postula que
ambos se equivalem, “só que em níveis conceptuais diferentes”. Prossegue explicando que
o discurso é tomado como conceito teórico e metodológico, ao passo que o texto é tomado
como conceito analítico correspondente. Disso, concluímos que há uma relação necessária
entre eles.
Na AD, o texto é o vestígio mais importante da materialidade histórica da
linguagem. Conforme Orlandi (1996), o texto é uma unidade complexa de significação e
para compreender como ele funciona é preciso considerar as condições de sua realização. O
texto, portanto, “não é uma unidade de análise formal, mas pragmática, pois o texto é o
lugar, o centro comum que se faz no processo de interação entre falante e ouvinte, autor e
leitor”. (ORLANDI, 1987, p.180).
Não importa qual seja a sua extensão, já que um texto pode ser construído por
uma palavra, uma frase ou uma seqüência de um grande número de frases; também não
importa se ele é oral ou escrito. O que define o texto é o fato de que ele é uma unidade de
significação em relação à situação social. Com efeito, podemos afirmar que o texto é a
manifestação lingüística do discurso, ou seja, o texto analisado a partir de suas condições de
produção é um discurso.
A esse respeito, Pêcheux (1997, p.79) se manifesta dizendo que:
É impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como
uma seqüência lingüística fechada sobre si mesma, mas (...) é
necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir
de um estado definido das condições de produção.
Orlandi (1996) e Pêcheux (1995) entendem o texto como um objeto lingüísticohistórico
no sentido de que a materialidade do discurso só produz sentido(s) porque está
enraizada na História. E é justamente porque a AD entende o texto nessa relação com a
História que ela não se interessa apenas pela sua organização lingüística, não se preocupa
com os seus encaixamentos: o que lhe interessa é a articulação entre o lingüístico e a
História.
36
Contudo, Orlandi (1987), (1996) e (2000) prefere falar em historicidade do texto,
argumentando que não se trata de entender a História ali refletida, mas a historicidade do
texto em sua materialidade. Tal historicidade, esclarece a autora, diz respeito tanto ao
acontecimento do texto como discurso quanto ao trabalho dos sentidos que nele existem.
Compreender isso, ou seja, buscar entender como um texto funciona, como ele produz
sentido, enquanto objeto lingüístico-histórico, é a tarefa da AD.
É importante também acrescentar o seguinte: se o texto for visto em sua
apresentação empírica, ele é de fato um objeto com começo, meio e fim, cuja unidade só é
compreendida se for considerada a totalidade textual. Porém, se for tomado como discurso,
o texto se relaciona, como já foi assinalado, com a exterioridade, e, assim, reinstala-se
imediatamente a sua incompletude.
Dizemos que o texto possui caráter não acabado porque há uma enormidade de
sentidos possíveis que deriva da relação do texto com outros textos. Eis aí a noção de
intertextualidade, isto é, todo texto é heterogêneo no sentido de que há uma relação
inevitável e necessária de seu interior com o seu exterior. E desse exterior participam,
obviamente, outros textos com os quais dialoga.
Sublinhemos mais uma vez que ao lado da intertextualidade, fator necessário para
o estabelecimento do sentido de um texto, há as condições de produção. Tudo isso nos leva
a afirmar que o texto se situa em uma realidade histórica, é fruto de práticas sociais e
interage com outros textos.
Resta-nos observar que o discurso é considerado uma dispersão de textos e o
texto, por sua vez, é uma dispersão do sujeito. É uma dispersão no sentido de que o sujeito
ocupa diferentes posições dentro de um mesmo texto. Para elucidar isso, Orlandi (2000, p.
70) toma como exemplo o discurso universitário. Ele se constitui de uma dispersão de
textos: os de professores, de alunos, de funcionários, de administradores, textos
burocráticos, científicos, pedagógicos, etc.
Em síntese, é via texto que chegamos ao discurso; para apreendê-lo é necessário
tomá-lo como um processo e investigar as condições de sua produção, a partir do
pressuposto de que ele é determinado pelo tecido histórico-social que o constitui.
Fica claro assim que ao nos propormos analisar o texto, não analisaremos o texto
em si, mas o discurso que vem através dele. É um olhar discursivo que nos permitirá
37
compreender como os textos produzidos pelos autores de LD funcionam; como eles
produzem sentidos que podem, a rigor, interferir na constituição da identidade do
profissional de Letras.
2.2.2. As condições de produção do discurso.
A expressão condições de produção foi trazida para a AD por Pêcheux para
designar, em sentido estrito, as circunstâncias da enunciação, isto é, o contexto imediato em
que ocorre o discurso; já em sentido amplo, os contextos histórico-sociais e ideológicos são
também considerados elementos da situação discursiva.
Para mostrar como as condições de produção funcionam, Pêcheux (1997) postula
que, em um processo discursivo, os locutores ocupam lugares determinados na estrutura de
uma formação social. Nesse processo, acontece uma série de formações imaginárias que
designam o lugar que os interlocutores atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles
fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Isso significa que existe, nessa projeção de
imagens, uma verdadeira relação de força entre os lugares sociais representados no
discurso, o que nos leva a perceber que o lugar a partir do qual o sujeito fala é constitutivo
do seu discurso.
Por isso, a depender do lugar do sujeito, há um ou outro significado possível para
aquilo que ele diz. Por exemplo: se o sujeito fala do lugar do patrão, suas palavras
significam de um modo; se ele fala do lugar de empregado, a significação de suas palavras
é certamente outra.
É importante aqui atentarmos que, na perspectiva da AD, não se trata de sujeitos
físicos, nem de lugares empíricos como tal: o que conta, na verdade, são suas imagens que
resultam de projeções. São essas imagens que fazem com que as situações empíricas (os
lugares dos sujeitos sociologicamente descritos) passem a ser tomadas como posições dos
sujeitos no discurso, o que significa que há uma distinção entre lugar e posição. Sobre isso,
Orlandi (2000, p. 40) escreve:
Em toda língua há regras de projeção que permitem ao sujeito
passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O
que significa no discurso são essas posições. E elas significam
38
em relação ao contexto sócio histórico e à memória (o saber
discursivo, o já dito).
Em qualquer processo discursivo, portanto, as condições de produção implicam o
mecanismo imaginário que produz imagens que os interlocutores constroem um do outro,
de si próprios e do referente.
Para especificar um pouco mais a noção de formações imaginárias, voltamos a
Orlandi (2000). Segundo essa autora, as condições de produção do discurso não estão
atreladas somente às relações de força, tal como já discutimos acima, mas também às
relações de sentido e aos mecanismos de antecipação. E são todos esses fatores que vão,
então, compor as formações imaginárias.
Quanto às relações de sentido, lembremo-nos de que todo discurso se relaciona
com outros discursos e que os sentidos procedem dessas relações. O discurso, assim
entendido, é “um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo” (op.cit., p.39) e
é por isso que ele, segundo Pêcheux, não tem início nem ponto final, pois todo discurso se
apóia em um discurso prévio, que o sustenta, e se remete para outros futuros.
Sobre os mecanismos de antecipação, Pêcheux já afirmava que todo processo
discursivo supõe, por parte daquele que fala, “uma antecipação das representações do
receptor, sobre a qual se funda a estratégia do discurso” (op.cit, p.84). De fato, todo sujeito
é capaz de colocar-se no lugar de seu interlocutor e, assim, antecipar-se quanto ao sentido
que suas palavras podem produzir. “Esse mecanismo regula a argumentação de tal forma
que o sujeito dirá de um modo ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu
ouvinte” (ORLANDI, 2000, p.39).
Para os propósitos desta pesquisa, é importante acentuar que se as condições de
produção de todo processo discursivo implicam antecipações, além das relações de força e
de sentidos, sob o modo do funcionamento das formações imaginárias, elas, as condições
de produção, estão fortemente presentes nos processos de identificação dos sujeitos
trabalhados nos discursos, uma vez que “as identidades resultam desses processos de
identificação, em que o imaginário tem sua eficácia” (ORLANDI, op.cit., p.41). Logo,
poderemos nos apoiar na idéia de que são as imagens que constituem as diferentes posições
do sujeito para, então, buscarmos entender como se constrói a identidade do professor de
39
língua portuguesa, considerando, por exemplo, a imagem que ele tem de si e de sua
profissão, e a imagem que os autores de livros didáticos têm do professor.
Teremos, mais à frente, a oportunidade de desenvolver melhor o conceito de
identidade. Antes, porém, julgamos necessário dizer que as propostas da AD incorporaram
reflexões e noções advindas de outros fundadores. De Foucault, por exemplo, vem a noção
de formação discursiva; de Bakthin vêm os conceitos de dialogismo e heterogeneidade.
Passemos então, agora, a verificar em que consistem tais noções.
2.2.3. Formações Discursivas
Partindo do princípio de que o discurso é o lugar de contato entre a língua e a
ideologia, uma vez que, segundo Pêcheux, a materialidade ideológica se concretiza no
discurso, é importante observarmos que os efeitos de sentido de um discurso dependem da
posição ideológica a partir da qual o discurso é produzido. Isso porque “as palavras mudam
de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. Elas “tiram” seu sentido dessas
posições, isto é, em relação às formações ideológicas nas quais essas posições se
inscrevem” (ORLANDI, 2000, p. 42). Portanto, um dos conceitos fundamentais para que
possamos analisar e interpretar o discurso é o de formação ideológica.
Falamos de formação ideológica para:
Caracterizar um elemento (determinado aspecto da luta nos
aparelhos) susceptível de intervir como uma força confrontada
com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma
formação social em um momento dado; cada formação
ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e
de representações que não são nem "individuais" nem
"universais" mas se relacionam mais ou menos diretamente a
posições de classe em conflito umas em relação às outras.
(HAROCHE et al.,1971, p. 102, apud Pêcheux, 1997, p. 166).
Assim sendo, as formações ideológicas resultam da organização da
sociedade em classes que, por sua vez, se constituem a partir das relações sociais que se
reproduzem continuamente. São os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), tal como os
entende Althusser, que garantem essa reprodução. Importa acrescentar que as relações de
classe se caracterizam pelo afrontamento, pelas chamadas lutas de classes; e o elemento que
40
sobrevém como força de confronto face a outras forças, na instância ideológica, num
determinado momento histórico, é que constitui tais formações ideológicas. Ao produzir
um discurso, o sujeito o faz inserido em uma formação ideológica específica e esta
determina fortemente o sentido do seu dizer.
Estamos entendendo até aqui que os sentidos, para a AD, são sempre
determinados ideologicamente13, já que os discursos são governados por formações
ideológicas. Isso nos conduz a perceber que, junto com a noção de formação ideológica,
vem a de formação discursiva, pois “a formação ideológica tem necessariamente como um
de seus componentes uma ou várias formações discursivas interligadas” (BRANDÃO,
1994, p. 38).
Foucault, em Arqueologia do Saber, foi quem primeiro fixou a expressão
formação discursiva, dizendo tratar-se de
um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época
dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou
lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa
(1997, p. 14).
Uma formação ideológica pode compreender várias formações discursivas
interligadas, entendendo-se por esta última, então, um conjunto de enunciados marcados
pelas mesmas regularidades, pelas mesmas regras de formação. Pêcheux (1997, p. 166)
argumenta que as formações discursivas, inscritas em determinadas formações ideológicas,
“determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto
é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico (...)”. Nesse sentido,
ao se considerar que existem formações discursivas de um discurso, pressupõe-se que o
funcionamento do discurso se dê a partir de uma certa regularidade, o que torna possível
compreender o processo de produção dos sentidos e a sua relação com a ideologia.
13 Ideologia, na perspectiva da AD, “não é vista como um conjunto de representações, como visão de mundo
ou como ocultação da realidade (...) Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação
necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido” (ORLANDI, 2000, p.48). A AD
parte do pressuposto de que não há realidade sem ideologia. Ela não é ocultação, mas função da relação
necessária entre linguagem e mundo. A linguagem é o lugar de materialização da ideologia.
41
Se for assim, ou seja, se a formação discursiva impõe ao sujeito o que ele pode e
deve dizer, então os sentidos de um discurso se constituem porque aquilo que o sujeito diz
se inscreve em uma dada formação discursiva e não em outra para ter um sentido e não
outro, conforme Orlandi (2000). Além disso, devemos atentar para o fato de que as palavras
mudam de sentido segundo as posições assumidas pelos sujeitos, de acordo com o que já
referimos anteriormente, e é por isso que a mesma palavra pode significar diferentemente
conforme ocorra em uma ou em outra formação discursiva.
É necessário ainda acrescentar que os discursos que são produzidos no interior das
formações discursivas, estão constantemente dialogando com outros discursos produzidos
em outras formações discursivas, fazendo surgir daí o interdiscurso, isto é, a memória do
dizer.
A interdiscursividade, essa relação de um discurso com outros discursos, é, para
Maingueneau (1993, p.111), de suma importância, pois
o interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração
incessante no qual uma formação discursiva é levada (...) a
incorporar elementos pré-construídos, produzidas fora dela, com
eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando,
igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para
organizar sua repetição, mas também provocando,
eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a
denegação de determinados elementos.
Também Pêcheux (1997) chama a atenção para o fato de que um dado discurso
envia a outro, frente ao qual é uma resposta direta ou indireta, ou do qual ele ‘orquestra’ os
termos principais, ou cujos argumentos destrói. É por isso que se pode afirmar que o
processo discursivo não tem um início, uma vez que todo discurso se estabelece sobre um
discurso prévio.
Maingueneau, conforme sugere Brandão (1994), considera que a
interdiscursividade possui lugar privilegiado nos estudos do discurso, pois ao considerar o
interdiscurso como objeto, busca-se apreender não uma formação discursiva, mas a
interação entre formações discursivas diferentes. Portanto, uma vez admitida a idéia de que
a interdiscursividade é constitutiva de todo e qualquer discurso, admite-se igualmente que
um discurso sempre nasce de um trabalho sobre outros discursos.
42
Ou seja, uma formação discursiva representa o lugar de articulação entre o
discurso e a língua, sendo constitutivamente 'invadida' por pré-construídos que são
justamente os elementos produzidos em outro(s) discurso(s), anterior ao discurso em
estudo, independentemente dele. É, pois, como ensinou Foucault (1997): uma formação
discursiva relaciona um sistema de dispersão.
Vimos até aqui que a construção do significado na AD depende, de um lado, das
situações concretas de uso da linguagem e das representações sociais que se fazem dessas
situações no interior do próprio discurso; de outro, depende de um entrecruzamento de
discursos, uma vez que não existe um discurso sedimentado e único; todo discurso nasce de
um outro discurso e reenvia a outro (ORLANDI, 1987). Eis aí a noção de polifonia, uma
das características mais marcante dos discursos, fundada no princípio do dialogismo de
Bakthin. Segundo essa concepção, todo discurso se tece polifonicamente porque ele é
sempre atravessado por outros discursos e seus enunciados sempre carregam a memória
desses outros discursos14.
2.2.4. Subjetividade, alteridade e identidade.
A identidade tem sido definida através da alteridade, da relação com o outro, o
que envolve a realidade subjetiva, dialeticamente moldada na interação. Ou seja, em uma
interlocução, o "eu" e o "outro" participam constitutivamente tanto do processo discursivo
quanto da construção da identidade do sujeito.
Isso nos leva a considerar que, para entendermos como se dá a constituição da
identidade do sujeito, é preciso refletir com mais propriedade sobre as relações existentes
entre subjetividade-alteridade-identidade. Importa inicialmente dizer que os termos
identidade e subjetividade têm sido, não raro, utilizados de forma intercambiável. Contudo,
Woodward (2000) esclarece que há uma considerável sobreposição entre os dois, pois
subjetividade, segundo essa autora, sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. O
termo envolve os pensamentos e as emoções conscientes e inconscientes que constituem
nossas concepções sobre “quem nós somos”. Já a identidade é construída porque o sujeito
vive sua subjetividade no interior de contextos histórico-sociais. Voltamos, aqui, à idéia
14 O conceito de polifonia será melhor discutido na seção 2.2.5 que trata da heterogeneidade.
43
segundo a qual nós, sujeitos, somos interpelados15 em diferentes posições, e as posições
que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades.
Lembremo-nos, pois, que a identidade do sujeito não está nele, já que ela se constrói a
partir da relação com o outro.
Uma das discussões centrais nas teorias do discurso se concentra na tensão
existente entre subjetividade e alteridade. Na verdade, não são poucos os estudos que
pretendem (re)conceituar a noção de sujeito e, por conseguinte, de subjetividade.
A esse respeito, Brandão (1998) apresenta um percurso histórico mostrando, de
início, a origem do conceito de subjetividade; na seqüência, discute as formas como tal
conceito tem sido preconizado pela Análise do Discurso. Baseando-nos nos estudos dessa
autora, vejamos de que forma a questão da subjetividade foi e tem sido considerada.
Quanto à origem do conceito, Brandão (op. cit.) evoca Chauí para explicar que:
Os filósofos sempre exigiram um ponto fixo como condição
inicial do pensamento, ponto fixo capaz de dar conta da
existência das coisas, dos homens e da totalidade do
conhecimento de ambos. Para o filósofo grego este ponto é o Ser,
princípio da existência e da inteligibilidade do real. O
conhecimento aparece como um desvelamento do Ser na sua
inteligibilidade, de sorte que o ato de conhecer é um re-conhecer
(ou lembrar, como diz Platão) o sentido já inscrito nas próprias
coisas por essa força produtora originária que é o Ser.
Observamos, assim, que o Ser possuía, no pensamento filosófico, uma existência
autônoma, já que era concebido como algo exterior ao homem. Conhecer, nessa
perspectiva, era um ato de reconhecimento.
O que vai caracterizar o surgimento de uma reflexão mais pertinente sobre a
concepção de subjetividade é o deslocamento que se deu da idéia do ponto fixo do Ser
(situado fora do indivíduo) para a Consciência, isto é, para o seu interior. Eis aí o modo
como a filosofia humanista concebia o sujeito; a idéia do “penso, logo existo” de Descartes
assume especial importância, pois o ponto de partida e o referencial privilegiado da
filosofia humanista são a noção de homem interior, portanto, de subjetividade. O sujeito
dito cartesiano era visto, portanto, como um ser centrado, unificado, dotado das
15 O termo “interpelação” advém dos trabalhos de Althusser. Explica-se, assim, a forma pela qual os sujeitos –
ao se reconhecerem como tais: “sim, esse sou eu” – são recrutados para ocupar certas posições-de-sujeito.
44
capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo interior,
que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que
permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou idêntico a ele – ao longo da
existência do indivíduo.
Os desdobramentos dessa concepção de sujeito positivista, cartesiano, muito
marcaram os estudos sobre a linguagem. Segundo Brandão (op.cit.), a noção de
representação daí derivada, isto é, a “operação por meio da qual o sujeito se apropria do
objeto, de algo que lhe é heterogêneo e, convertendo-o em idéia, torna-o homogêneo à
consciência”, influenciou as reflexões lingüísticas sobre subjetividade. A linguagem, nessa
perspectiva, era concebida como uma espécie de ponte entre o pensamento e as coisas
apreendidas. E a língua tinha como função representar o real, isto é, um enunciado só
poderia ser considerado verdadeiro se ele correspondesse a um estado de coisas existentes.
Opondo-se a essa noção de representação, emergem na lingüística estudos
voltados para a função demonstrativa da linguagem. Brandão (op.cit.) recorre ao enunciado
Ontem ela esteve aqui para explicar que não há como se estabelecer uma relação entre
linguagem e representação da realidade em um enunciado como esse. Para conferir um
possível sentido para esse enunciado, é necessário, antes, considerá-lo a partir de um
contexto situacional, pois somente assim saberemos a quem se refere o pronome “ela”, o
lugar do “aqui” e o tempo de “ontem”.
A partir de então uma nova tendência nos estudos da linguagem passa a considerar
a interação verbal e a realidade social como elementos fundamentais da língua. Com efeito,
o sujeito assume uma posição privilegiada e a linguagem passa a ser vista como o lugar da
constituição da subjetividade. Isto é, há um deslocamento da concepção de sujeito que,
antes, constituía o mundo, classificando-o, nomeando-o, sendo, portanto, detentor de
certezas e marcado pela preocupação da transparência e da identidade, para um sujeito que,
agora, ao produzir a linguagem, se constitui por ela, “se entretece na trama da linguagem”
(BRANDÃO, op.cit., p. 38).
Foi, certamente, Benveniste (s/d) quem primeiro fez emergir a questão da
subjetividade nos estudos lingüísticos. Esse autor, em seu famoso artigo "Da subjetividade
na linguagem" postula que todo enunciado, fruto de uma enunciação, é produzido por um
"eu", para um "tu", num determinado momento e em algum lugar. Ao analisar o fenômeno
45
da dêixis, esse autor postula que a instalação de pessoas, espaços e tempos (signos
referencialmente vazios) se dá na enunciação e, por isso, não é mais possível analisar o
enunciado sem se remeter ao sujeito da enunciação. Benveniste ensina, também, que a
propriedade que possibilita a comunicação é a subjetividade, pois é “na linguagem e pela
linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem funda realmente
na sua realidade, que é a do ser, o conceito de ego”. A partir disso, esse autor apresenta
claramente o fundamento da "subjetividade": a capacidade do locutor se pôr como sujeito.
Em suma, Benveniste reconhece o estatuto lingüístico da "pessoa", categoria que faz com
que a linguagem se torne discurso.
Ao estudar o comportamento dos pronomes “eu” e “tu”, Benveniste assevera que
“eu” é a pessoa subjetiva e “tu” é a pessoa não subjetiva; e o “ele” é a não pessoa. Isso
porque o “eu” “não pode ser definido senão em termos de locução, não em termos de
objeto, como é definido um signo nominal” (op.cit., p. 53). Assim, prossegue o autor, “a
linguagem só é possível porque cada locutor se coloca como sujeito, remetendo para si
mesmo, como eu, no seu discurso”. Contudo, para Benveniste, o “eu” tem sempre
transcendência em relação a tu.
A consideração do “eu” como transcendente ao “tu” foi vista por muitos estudos,
no âmbito das teorias do discurso, como um aspecto redutor da teoria de Benveniste
(HAROCHE, 1992). Enfatizam essas teorias que, embora o autor considere o “tu” na
relação intersubjetiva, esse “tu” permanece apenas figura complementar ao “eu”. Portanto,
Benveniste “não expande a noção de subjetividade para fora do eu (pessoa subjetiva), não
atribuindo ao “tu” (pessoa não-subjetiva) um estatuto constitutivo dessa subjetividade”,
conforme Brandão (1998, p.39).
Em uma perspectiva discursiva, é importante considerar que o outro não participa
da comunicação como mero receptor de mensagens; ele desempenha um papel fundamental
na constituição do sentido, e na constituição do sujeito, já que qualquer ato de comunicação
é, antes, realizado pela intersubjetividade.
Voltando-nos mais especificamente para a questão da identidade do sujeito,
importa destacar que o conceito de identidade pressupõe o de diferença, pois identidade é o
que, em princípio, nos diferencia dos outros. “Nós somos diferenças (...) nossas identidades
são as diferenças das máscaras”, já ensinava Foucault (1972, p. 131 apud LOPES, 1998, p.
46
303). Observemos que quando dizemos "somos professores", só o fazemos porque existem
outros seres, outros grupos que não são professores, isto é, eles são diferentes de nós.
As identidades são construídas, portanto, por meio da diferença e não fora dela, o
que implica aceitar que é apenas através da relação com o outro, com o seu exterior
constitutivo, que se pode entender a(s) identidade(s). Com outras palavras, os sujeitos
constroem sua identidade na relação intersubjetiva, pois a identidade se ganha na afirmação
da alteridade.
Convém recorrermos a Orlandi (1998) para melhor explicitar o conceito de
identidade à luz do quadro teórico da Análise do Discurso. Essa autora afirma que:
a) a identidade é um movimento da história;
b) ao significar, o sujeito se significa;
c) identidade não se aprende, isto é, não resulta de processos de aprendizagem,
mas refere, isso sim, a posições que se constituem em processos de memória
afetados pelo inconsciente e pela ideologia.
Trata-se de um movimento da história no sentido de que ela, a identidade, está
sujeita a uma historicização e, por isso, está constantemente em processo de mudança e
transformação. Segundo a mesma autora, a identidade:
(..) não é homogênea e ela se transforma. Não há identidades
fixas e categóricas. Esta é uma ilusão – a da identidade imóvel –
que, se de um lado é parte do imaginário que nos garante uma
unidade necessária nos processos identitários, por outro lado, é
ponto de ancoragem de preconceitos e de processos de exclusão.
(ORLANDI, 1998, p. 204)
Se a identidade do sujeito é algo assim movente, multiplamente construída ao
longo dos discursos, práticas e posições, a compreensão desses processos depende da
articulação de dois elementos essenciais para a perspectiva discursiva e, por extensão, para
as reflexões sobre identidade, quais sejam: unidade e dispersão. É disso que Orlandi está
tratando no excerto acima quando ela afirma que a ilusão de uma identidade imóvel faz
parte do imaginário, o que nos garante uma unidade necessária nos processos identitários,
isto é, “é preciso que haja uma unidade do sujeito, para que, no movimento de sua
identidade, ele se desloque nas distintas posições” (ORLANDI, op.cit.). Como exemplo, a
autora destaca que ora somos professores, ora somos pais, mães em casa, etc. Isso significa
47
que todos nós, sujeitos, vivemos no interior de um grande número de diferentes
instituições, que são, segundo Bourdieu (1984 apud WOODWARD, 2000, p. 30) os
“campos sociais”, tais como as famílias, os grupos de colegas, as instituições educacionais,
os grupos de trabalho ou partidos políticos.
Participamos desses contextos, ou melhor, desses “campos sociais”, assumindo
posições diferentes, embora possamos nos ver como sendo a mesma pessoa. Woodward
(op.cit., p.30) esclarece isso argumentando que, nas mais diferentes situações, sentimo-nos
literalmente “como sendo a mesma pessoa, mas nós somos diferentemente posicionados
pelas diferentes expectativas e restrições sociais envolvidas em cada uma dessas diferentes
situações, representando-nos, diante dos outros, de forma diferente em cada um desses
contextos”.
Assumimos, pois, diversas posições-sujeito e, portanto, identidades diversas que
no confronto com as diferenças, garante uma certa singularidade. É importante ressaltar
que, longe de ser algo tranqüilo, o confronto entre identidade e diferença se sustenta em
uma relação de poder que define, por exemplo, quem é incluído e quem é excluído.
Orientado-nos pela segunda afirmação de Orlandi, a de que “ao significar, o
sujeito se significa”, podemos reiterar junto com essa autora que os sentidos não são algo
que se dá de forma independente do sujeito. Ou seja, “sujeito e sentido se configuram ao
mesmo tempo e é nisto que consistem os processos de identificação” (ORLANDI, op.cit.,
p.205).
Ao dizer que a identidade não se aprende (terceira afirmação apontada acima), a
autora em questão está se valendo de uma noção fundamental: a de que inconsciente e
ideologia estão materialmente ligados. Por conta disso, ela apresenta uma série de
argumentações colocando em evidência o fato de que o sujeito não tem acesso à origem dos
sentidos daquilo que diz e a impressão que ele tem de estar na origem do seu dizer, como se
fosse sempre já construído, deriva de um mecanismo ideológico. Argumenta, então, que: a)
“os sentidos e os sujeitos resultam de filiações em redes (na relação de distintas formações
discursivas) em cujo jogo somos pego, pelo (desde o) interior”; b) “ao produzirmos
sentidos, nos produzimos como sujeitos”; c) “filiamo-nos a redes de sentidos, nos
identificamos com processos de significação e nos constituímos como posições de sujeitos
48
relativas a formações discursivas, em face das quais os sentidos fazem sentidos”(op.cit.,
p.205).
Focalizando rapidamente a questão da identidade do sujeito sob uma outra
perspectiva, julgamos relevante considerar que não é possível separar o “eu” profissional
do “eu” pessoal, especialmente no caso da profissão docente, pois, segundo Nóvoa (1995),
a maneira como cada um ensina está diretamente dependente daquilo que é como pessoa.
Há, portanto, um tipo de fusão entre o eu e a profissão.
Nessa perspectiva de raciocínio, não devemos entender a identidade do professor
como um dado adquirido, tampouco como uma propriedade ou um produto, uma vez que “a
identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser
e de estar na profissão” e é por isso que é mais adequado falar em “processo identitário,
realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz
professor” (NÓVOA, op.cit, p.34).
Portanto, entender os processos de identificação do professor de língua
portuguesa, no âmbito deste estudo, implica: a) tomar a identidade do sujeito como algo
movente, sempre em transformação, que se constrói historicamente; b) considerar que o
professor ocupa as posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para ele; c)
conceber que, no professor, não é possível separar as dimensões pessoais e profissionais.
Sobretudo, devemos estar atentos para o fato de que a identidade do sujeito é
constantemente formada e transformada na relação com o outro, no espaço discursivo da
intersubjetividade.
Assim sendo, passaremos agora a examinar mais especificamente essa questão da
alteridade a partir dos trabalhos inaugurados por Jaqueline Authier-Revuz sobre a
heterogeneidade constitutiva do sujeito.
2.2.5. Heterogeneidade constitutiva.
Todos os estudos de que temos conhecimento, que tratam dos conceitos de
heterogeneidade, alteridade e dialogismo, cada um a sua maneira, postulam que esses
termos referem-se à qualidade de todo discurso estar tecido pelo discurso do outro, de toda
palavra estar sempre e inevitavelmente perpassada pela palavra do outro.
49
No âmbito específico da Análise do Discurso, Pêcheux (1997) relata a evolução
desse conceito do decorrer das três fases da AD.
Segundo o autor, na primeira fase (AD-1), imagina-se que um processo de produção
discursiva - máquina autodeterminada - determina os sujeitos como produtores de seus
discursos, o que equivale dizer que o sujeito é um 'servo' assujeitado, suporte do discurso. É
assujeitado porque há um mecanismo inconsciente que faz com que ele se submeta às
condições de produção. Acredita-se, também, que exista um corpus fechado de seqüências
discursivas, selecionadas num espaço discursivo supostamente dominado pelas condições
de produção estáveis e homogêneas, e a análise desse corpus implica detectar e construir
'sítios' de identidades parafrásticas interseqüenciais, que formam o lugar de inscrição das
proposições de base características do processo discursivo. Nessa perspectiva, entende-se
que é possível reunir em um corpus um conjunto de enunciados que compõe um discurso
idêntico a si mesmo e diferente dos outros, no sentido de que o que está contido em um
discurso está excluído de outro.
Em um segundo momento da AD (AD-2), reconhece-se, a partir dos trabalhos de
Foucault, que não existe uma máquina discursiva fechada em si mesma, e que o objeto da
AD são as relações entre máquinas discursivas estruturais. Mostra-se, nessa fase, a
inexistência da unidade dos discursos. A noção de formação discursiva passa a representar
o lugar da articulação entre o discurso e a língua, superando, pois, a noção de "máquina
estrutural fechada". Quanto ao sujeito do discurso, mantém-se a idéia de um sujeito como
puro efeito de assujeitamento à maquinaria da formação discursiva com a qual se identifica.
Ainda nessa fase, a noção de interdiscurso é introduzida para designar o exterior específico
de uma FD que irrompe em seu interior e a constitui em lugar de evidência discursiva.
Na fase mais recente da AD (AD-3), a idéia de 'máquina discursiva' é totalmente
abolida. O desenvolvimento de pesquisas sobre encadeamentos intradiscursivos -
'interfrásticos'- permite à AD-3 abordar o estudo da construção dos objetos discursivos, dos
acontecimentos, também dos 'pontos de vista' e lugares enunciativos no fio do
intradiscurso.
Nessa última fase, a AD passa a trabalhar sob o signo da heterogeneidade, pois
“alguns desenvolvimentos teóricos que abordam a questão da heterogeneidade enunciativa
conduzem, ao mesmo tempo, a tematizar (...) as formas lingüístico-discursivas do discurso50
outro”.(PÊCHEUX, 1997, p.316). A esse respeito, são relevantes, sobretudo, os trabalhos
inaugurados pela lingüista francesa Jacqueline Authier-Revuz (1982).
Essa autora baseia-se nas noções de dialogismo de Bakhtin e na abordagem
psicanalítica do sujeito, para desenvolver o conceito de heterogeneidade constitutiva do
sujeito e de seu discurso, questionando, pois, uma concepção homogeneizadora da
discursividade que elege o sujeito como origem, fonte autônoma de seu dizer.
Sem dúvida, um dos maiores ensinamentos de Bakthin consiste na idéia de que a
linguagem é uma prática social fundamentalmente marcada pelo dialogismo. Ao considerálo
o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso, o teórico
russo postulou que o dialogismo possui uma dupla orientação, conforme enfatiza Authier-
Revuz (1982). Há um dialogismo que se refere ao diálogo do discurso com o discurso do
outro da interlocução (o destinatário); e há um dialogismo do discurso com os outros
discursos. Segundo a autora:
C’est um double dialogisme – non par addition, mais en
interdépendence – qui est posé dans la parole: l’orientation,
dialogique, de tout discours parmi “les autres discours” est-elle
même dialogiquement orientée, determinée par “cet autre
discours” spécifique du récepteur, tel qu’il est imaginé par le
locuteur, comme condition de compréhension du premier (op.cit,
p.118-119).
Esse duplo dialogismo manifesta-se, portanto, na interação verbal que se
estabelece entre o locutor e interlocutor, e na intertextualidade existente no interior do
discurso, isto é, na interdiscursividade. Com relação à interação verbal, Bakhtin (1988, p.
113) afirma que:
(...) toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo
fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para
alguém. (...) Toda palavra serve de expressão a um em relação ao
outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em
última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie
de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim
numa extremidade, na outra se apóia sobre o meu interlocutor.
Nesses termos, Bakhtin enuncia que a língua tem a propriedade de ser dialógica, e
que ela existe, portanto, no espaço interacional entre o eu e o tu. Só que não se trata de uma
51
interação face a face. O que há é uma dialogização interna do discurso, pois, segundo
Authier-Revuz (1990, p. 26), as palavras são sempre “as palavras dos outros (...) nenhuma
palavra é neutra, mas inevitavelmente carregada, ocupada, habitada, atravessada pelos
discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada”. Com efeito, podemos
afirmar que a nossa palavra não é de fato nossa, pois ela sempre traz em si a perspectiva da
outra voz.
Precisamos assinalar que ao dizer, o locutor estabelece um diálogo com o discurso
do interlocutor, na medida em que o concebe não como um mero decodificador, mas como
um elemento ativo, atribuindo-lhe, emprestando-lhe a imagem de um contradiscurso.
Assim, o sentido do discurso depende das representações (do jogo de imagens) entre os
interlocutores que se constroem no interior do próprio discurso, já que, para Bakhtin, o ser
humano é inconcebível fora dessas interrelações:
Não tomo consciência de mim mesmo senão através dos outros, é
deles que eu recebo as palavras, as formas, a tonalidade que
formam a primeira imagem de mim mesmo.
Só me torno consciente de mim mesmo, revelando-me para outro,
através do outro e com a ajuda do outro. (Apud BRANDÃO, p. 51)
É importante também sublinhar que estamos tratando de um sujeito
essencialmente histórico, portanto ideologicamente constituído, cuja fala é um recorte das
representações de um tempo histórico e de um espaço social. Ao afirmarmos que o discurso
do sujeito se constrói em relação ao discurso do outro, devemos entender que esse outro
não é apenas o interlocutor para quem o locutor planeja, ajusta a sua fala, mas nele estão
envolvidos outros discursos historicamente já constituídos e que emergem na sua fala
(BRANDÃO, 1994), ou seja, é a noção de interdiscurso que deve ser considerada, pois, “o
discurso é um produto de interdiscursos” (AUTHIER-REVUZ,1990, p. 26).
Isso significa que existe um diálogo entre os muitos discursos da cultura, que se
instala no interior de cada discurso e o define. Com esse aspecto do dialogismo bakthiniano
reconhecemos que todo discurso se tece polifonicamente por fios dialógicos de vozes
cruzadas, concorrentes, contraditórias que polemizam entre si, se completam ou respondem
umas às outras. Esses outros discursos são, então, o exterior constitutivo, o já-dito a partir
do qual se tece, inevitavelmente, a trama mesma do discurso (AUTHIER-REVUZ, 1990).
52
Polifonia, termo que etimologicamente significa multiplicidade de vozes ou de
sons, surgiu inicialmente no vocabulário musical para designar simultaneidade de várias
melodias que se desenvolvem de maneira independente, mas dentro de uma mesma
tonalidade16. Metaforicamente, o termo foi introduzido nas ciências da linguagem para
descrever os fenômenos de superposição de vozes, de fontes enunciativas em um mesmo
enunciado.
Não raro, os termos dialogismo e polifonia são empregados de maneira
intercambiável, isto é, são tomados como sinônimos. Porém, segundo Barros (1996), é
possível visualizar uma distinção entre eles. Dialogismo refere-se ao fato de que todo
discurso é fundamentalmente dialógico, isto é, não existe enunciado desprovido de uma
dimensão dialógica uma vez que esta é constitutiva da linguagem e de todo discurso. Já a
palavra polifonia caracteriza um certo tipo de texto (discurso) “em que o dialogismo se
deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos
monofônicos que escondem os diálogos que os constituem” (op.cit. p. 36).
Vimos, então, que os trabalhos de Authier-Revuz incorporaram o princípio do
dialogismo de Bakthin e desenvolveram investigações sobre os efeitos de polifonia que,
segundo a autora, manifestam-se sob duas formas de heterogeneidade: a constitutiva e a
mostrada, das quais trataremos mais à frente.
Antes, porém, é necessário dizermos algumas palavras acerca de uma outra
contribuição fundamental para o desenvolvimento da noção de heterogeneidade, tal como já
foi adiantado: do sujeito da Psicanálise. São especialmente as considerações em torno do
inconsciente desenvolvidas, primeiro por Freud e depois por Lacan, que fazem com que a
Análise do Discurso apresente uma teoria não-subjetivista da enunciação, ou seja, na AD
não se concebe o sujeito como sendo o centro do discurso, também não se aceita a idéia de
liberdade discursiva individual desprovida de inconsciente.
Isso significa considerar o sujeito diferentemente daquele sujeito cartesiano
(penso, logo sou) que era visto como um ser centrado, unificado, dotado das capacidades de
razão, de consciência e de ação. Se, como diz Authier-Revuz (1982), sob nossas palavras
“outras palavras são ditas”, ou seja, se nossas palavras são habitadas, atravessadas pelo
16 Segundo o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (HOLANDA FERREIRA, 1986).
53
discurso do outro, então a palavra do outro é a condição de constituição de todo e de
qualquer discurso, o que nos leva, junto com essa autora, à conclusão de que “le sujet n’est
pas une entité homogène, extérieure au langage, qui lui servirait à “traduire” en mots un
sens dont il serait la source consciente”(op.cit, p.136).
Por ser dividido entre o consciente e o inconsciente, o sujeito não é um ponto, uma
entidade homogênea, mas o resultado de uma estrutura complexa. Authier-Revuz afirma
que tal cisão não significa uma dualidade em que bastaria somar as duas partes para se ter o
todo do sujeito. A relação entre consciente e inconsciente “prend l’allure géographique
d’un parcours sans endroit, ni envers d’où le sujet s’énonce sans savoir ce qu’il dit en une
parole qui en dit long sur ce savoir” (ROUDINESCO, 1977 apud AUTHIER-REVUZ,
1982, p.138). Ou seja, o sujeito assim entendido não controla o seu dizer o tempo todo, já
que ele não é só consciente e muitas vezes quem fala é o inconsciente que rompe as cadeias
da censura, resvalando, por exemplo, sentidos indesejados, incontrolados.
Diz-se também que o sujeito é descentrado porque, com a teoria freudiana do
inconsciente, o sujeito perde a sua centralidade, não sendo mais o senhor de sua morada.
Valendo-se dessa teoria, Authier-Revuz (1982) sustenta a tese de que a homogeneidade do
discurso é uma ilusão porque o sujeito acredita que está produzindo algo que ele pode
controlar, sentindo-se o centro do discurso, responsável pelo sentido daquilo que é dito,
mas ao ser atravessado pelo inconsciente e por outros discursos, instala-se a “ilusão do eu”.
Freud argumenta que “não há centro para o sujeito fora da ilusão e do fantasmagórico”
(op.cit, p.138). Essa ilusão é necessária e normal para o sujeito uma vez que ela é inerente à
sua constituição. Segundo Freud, isso é uma “função do desconhecimento do eu” e é graças
a essa ilusão que é possível reconstruir, no imaginário do sujeito descentrado, dividido, a
imagem de sujeito autônomo que se vê como fonte única de seu discurso, apagando-se, no
desconhecimento, o descentramento real.
Uma última consideração a ser aventada com relação ao sujeito psicanalítico é a de
que o inconsciente é o discurso do outro e a linguagem é a condição do inconsciente. Nesse
sentido, o sujeito é entendido como um efeito de linguagem. Citando Clement (1975),
Authier-Revuz explica que o outro, isto é, o inconsciente, é o lugar de onde emana todo
discurso: lugar da família, da lei, do pai, na teoria freudiana, lugar da história e das posições
sociais, lugar para onde é remetida toda a subjetividade. Nessa linha de raciocínio, o outro
54
aqui não é o mesmo outro de que fala Bakhtin; este corresponde ao outro na interação
verbal e ao outro que emerge da trama interdiscursiva. Aquele outro da concepção
psicanalítica se localiza no próprio inconsciente do falante que é, então, habitado por vozes
da família, da religião, da escola, enfim, de toda sua experiência enquanto indivíduo
historicamente constituído.
Já dissemos que Authier-Revuz (1982), ao entender o discurso como algo
heterogêneo, assevera que há dois planos distintos, mas complementares, de
heterogeneidade discursiva: a mostrada e a constitutiva. Nas palavras de Maingueneau
(1993, p.75), esses termos são assim definidos:
A primeira (a heterogeneidade mostrada) incide sobre as
manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade
de fontes de enunciação, enquanto a segunda aborda uma
heterogeneidade que não é marcada em superfície, mas que a AD
pode definir, formulando hipóteses, através do interdiscurso, a
propósito da constituição de uma formação discursiva.
Vemos, então, que a heterogeneidade constitutiva refere-se à noção de que “tout
discours s’avère constitutivement traversé par les autres discours et le discours de l’Autre”
(AUTHIER-REVUZ, 1982, p.141), ou seja, fundamentalmente e constitutivamente, no
sujeito e no seu discurso, está o outro que não é um objeto exterior - do qual se fala - mas a
condição constitutiva – o porquê se fala – do discurso.
Tal raciocínio reitera a idéia de que o sujeito não é a fonte primeira do que diz,
mas, por conta da “ilusão do eu”, ele não percebe essa heterogeneidade e acredita, assim,
produzir um discurso homogêneo. Tal ilusão é ainda reforçada pelo fenômeno da
heterogeneidade mostrada. Vejamos por quê.
Enquanto a heterogeneidade constitutiva não é localizável, não é representável, já
que ela está presente de forma diluída no fio do discurso, podendo ser apreendida somente
no nível do interdiscurso, a mostrada é a evidência do outro na teia discursiva, alterando
uma aparente unicidade. Naquela, o discurso não evidencia a alteridade na sua
manifestação; nesta, a alteridade exibe-se ao longo do processo discursivo podendo ser
observada na própria superfície discursiva através de marcas lingüísticas. Authier-Revuz
(op.cit.) considera que ao explicitar na teia discursiva a voz do outro, o sujeito falante
imagina que só naquele momento a fala não lhe pertence, ou seja, o discurso seria
55
heterogêneo somente na sua forma mostrada. É por isso que a autora afirma que “le
locuteur lorsque’il marque explicitement, par des formes de la distance, des points
d’hétérogénéité dans son discours, y delimite, y circonscrit l’autre, et ce faisant affirme que
l’autre n’est pas partout” (AUTHIER-REVUZ, 1982, p.144). Delimitando os espaços das
heterogeneidades, o sujeito reivindica a autonomia de seu discurso: “le sujet s’évertue, en
désignant l’autre, localisé, à conforter le statut de l’un (op.cit., p.145). Nesse sentido,
percebemos que a heterogeneidade mostrada é um modo de denegação, no discurso, da
heterogeneidade constitutiva.
Ao tratar dos dois fenômenos de heterogeneidade, a autora se interessa mais
especificamente pelas formas de heterogeneidade mostrada, afirmando que ela pode se
concretizar de duas formas. Uma se dá pela autonímia simples, isto é, a heterogeneidade
que constitui um fragmento mencionado, entre os elementos lingüísticos de que faz uso, é
acompanhada de uma ruptura sintática (AUTHIER-REVUZ, 1990). Tal procedimento
ocorre, por exemplo, mediante a utilização de termos metalingüísticos com os quais o
locutor delimita em seu texto o que é “seu” e o que é do outro. A outra forma se dá pela
chamada conotação autonímica, ou seja, sem que haja na cadeia discursiva qualquer ruptura
sintática, o fragmento mencionado é ao mesmo tempo um fragmento do qual se faz uso.
Assim, a heterogeneidade mostrada pode ser marcada ou não-marcada, pois nem
todas as formas acusam claramente a presença do outro no discurso. Com as formas não
marcadas de conotação autonímica (como, por exemplo, o discurso indireto livre, a ironia, a
antífrase, a imitação, a reminiscência) se joga com o outro discurso não mais no
explicitamente mostrado ou dito, mas no espaço do implícito, do semidesvelado, do
sugerido. Nesse caso, não se percebe a fronteira entre o dizer do outro e do locutor, pois as
vozes se mesclam nos limites de uma única construção lingüística, aparentemente única, de
qualquer indivíduo. É nesse sentido que Authier-Revuz (1982) afirma que a ambivalência
das marcas da heterogeneidade mostrada não marcada representa a incerteza que
caracteriza a referência ao outro.
Já as formas marcadas da heterogeneidade mostrada (ou as formas marcadas do
discurso outro) utilizam:
· o discurso relatado (discurso direto e discurso indireto): no discurso indireto,
afirma Authier-Revuz (op.cit.), o locutor se coloca como tradutor, isto é, utiliza suas
56
próprias palavras mas remete o sentido daquilo que é dito ao outro; no discurso direto, são
as palavras do outro que são explicitadas na teia discursiva e o locutor se coloca como
“porta-voz” .
· as aspas: Maingueneau (1993) explica que o uso de aspas nos enunciados
marcam justamente o espaço, no texto escrito, em que a heterogeneidade é nitidamente
mostrada. “As aspas designam a linha de demarcação que uma formação discursiva
estabelece entre ela e seu exterior” (op.cit., p. 90), ou seja, as palavras ou enunciados entre
aspas são atribuídos ao outro e, por isso, o locutor se distancia e se exime da
responsabilidade sobre aquilo que é dito. Contudo, o uso de expressões aspeadas não é algo
neutro, pois a interpretação do trecho em que foram utilizadas as aspas, depende dos
sentidos apreendidos no texto como um todo. Além disso, ao citar, o locutor é obrigado,
mesmo que disso não esteja consciente, a realizar uma certa representação de seu leitor e,
simultaneamente, oferecer a esse último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da
atitude que assume através das aspas com relação ao que o outro disse. É nesse sentido que
Authier-Revuz afirma que nas palavras entre aspas ocorrem, simultaneamente, o uso e a
menção.
Ao tratar das aspas de distanciamento, Authier-Revuz, de acordo com
Maingueneau (1993), apresenta várias funções para as aspas: (i) aspas de diferenciação
(cujo propósito é mostrar que nos distinguimos daquele(s) que usa(m) a palavra, que somos
“irredutíveis” às palavras empregadas); (ii) aspas de condescendência (considera-se que o
interlocutor também falaria assim); (iii) aspas pedagógicas (na vulgarização científica); (iv)
aspas de proteção (para indicar que a palavra utilizada é apenas aproximativa); (v) aspas de
ênfase, etc.
· o metadiscurso do locutor: trata-se da construção pelo locutor de diferentes
níveis discursivos no interior de seu próprio discurso. Com tal procedimento, o locutor
busca o distanciamento de um discurso específico e estabelece um lugar de fala próprio.
Segundo Maingueneau (1993), ao lançar mão do metadiscurso, o locutor pode estar
querendo (i) construir uma imagem de si próprio (“para parecer erudito”, “para falar como
os políticos”); (ii) marcar uma inadequação dos termos (“de alguma forma”,
“metaforicamente”, “de alguma forma); (iii) autocorrigir-se (“ou melhor”, “deveria ter
dito”); (iv) confirmar (“é exatamente o que estou dizendo”); (v) solicitar permissão para
57
empregar certos termos (“se você me permitir a expressão”); (vi) fazer uma preterição (“eu
ia dizer” , “não direi”); (vii) corrigir antecipadamente um possível erro de interpretação
(“no sentido X da palavra”, “em todos os sentidos da palavra”)
Em se tratando da construção da identidade do professor de língua portuguesa,
todas essas observações aventadas até aqui nos levam à hipótese desta Dissertação, a de que
a voz do livro didático interfere no delineamento da identidade do sujeito-professor, já que
esse sujeito, como qualquer outro, é heterogeneamente constituído. E é tal interferência que
passaremos a analisar.
58
SEGUNDA PARTE
59
1. PASSO A PASSO: caminhos percorridos pela pesquisa
Antes das reflexões analíticas propriamente ditas, julgamos necessário apresentar
as questões norteadoras que nos possibilitarão analisar os discursos que interferem nos
processos de identificação do sujeito-professor, bem como tecer alguns comentários a
respeito do material que constitui o nosso corpus de análise.
Convém assinalar que em nossa perspectiva teórica não pode haver descrição sem
interpretação, ou seja, ao analisar o discurso, o próprio analista é envolvido no gesto de
interpretação. Assim, a nossa relação com o objeto de análise não é de forma alguma
neutra, ainda que nos seja possível lançar mão de um dispositivo analítico que, segundo
Orlandi (2000), relativiza nossa posição em face da interpretação. A construção de tal
dispositivo, explica a autora, é uma “escuta discursiva” que se dá por meio de uma
mediação teórica permanente, e é ela que faz com que o analista consiga compreender e
explicitar o modo de funcionamento do discurso, considerando a manifestação do
inconsciente e da ideologia na produção dos sentidos e na constituição dos sujeitos. Ou
seja, a partir de um dispositivo analítico, é-nos possível ouvir para lá das evidências
empíricas,
colocando o dito com relação ao não-dito, o que o sujeito diz em
um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo
como o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito
diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os
sentidos de suas palavras. (op.cit., p.59)
Claro está, portanto, que é essa a tarefa que abraçamos.
Quanto às questões que conduzem o nosso trabalho analítico, elas foram
elaboradas partindo do pressuposto básico de que o livro didático é um elemento
fortemente presente nas aulas de língua portuguesa, haja vista o que foi discutido no
primeiro capítulo deste trabalho. Além disso, procuramos não perder de vista o fato de que
os sujeitos desta pesquisa, ao produzirem seus discursos, envolveram-se e envolveram
outros no discurso, em determinadas circunstâncias histórico-sociais. Ou seja, em nossa
perspectiva, a noção de heterogeneidade constitutiva (AUTHIER-REVUZ, 1982; 1990) é
60
um dos elementos cruciais para a compreensão da identidade do sujeito-professor. Isso
porque descrever e interpretar (ORLANDI, 1996) os relatos dos professores e dos livros
didáticos significa entender o processo de confrontação entre o “eu” pessoal e o “eu”
profissional desse professor, a partir da observação do funcionamento discursivo desses
relatos. E isso só é possível, vale enfatizar, mediante uma leitura interdiscursiva.
Para tanto, questionamos:
1) Qual é a posição-sujeito ocupada pelos professores no espaço
discursivo da sala de aula?
2) Como tais professores têm sido representados pelos livros didáticos e
em que medida essa representação afeta a sua identidade?
3) De que forma o caráter prescritivo dos livros didáticos interfere na
construção da identidade do profissional de língua portuguesa?
Ao perseguirmos as possíveis respostas desses questionamentos, consideraremos o
fato de que a interpretação é múltipla e deslizante; de que não existem verdades absolutas,
ou seja, ninguém é detentor da verdade, mas sempre um porta-voz de uma interpretação
possível (CORACINI, 1999). Para comprovarmos isso, basta atentarmos para o fato de que
os paradigmas estão constantemente mudando e as “iluminações novas” que surgem são
conseqüências de definições novas de objeto de estudos (GERALDI, 1997). Embora
assumindo isso, para efeito de análise, procuraremos apresentar nossas reflexões em
conformidade com os “novos”estudos desenvolvidos no âmbito da Lingüística Aplicada, ou
seja, nosso olhar e nossa atenção voltam-se prioritariamente para os discursos produzidos
pelos professores e pelos livros didáticos, dialogando com os trabalhos recentemente
publicados que visam, sobretudo, contribuir para que o professor de língua portuguesa
reinvente, ressignifique sua relação com o livro didático. A urgência de se provocar um
debate que incite os professores às transformações, ao deslocamento é a razão pela qual
corremos o risco de defender as idéias que ora estão em voga.
1.1. A Constituição do corpus
As seqüências discursivas (SD) que compõem nosso corpus de análise foram
retiradas de quatro fontes, a saber: i) questionário aplicado a trinta e sete professores de
61
língua portuguesa; ii) entrevistas semi-estruturadas realizadas com três professores de
língua portuguesa, gravadas em áudio; iii) observação de quinze horas-aula de língua
portuguesa, gravadas em áudio; iv) três livros didáticos de língua portuguesa (manual do
professor).
O primeiro passo da pesquisa foi, então, entrar em contato com o maior número
possível de professores de língua portuguesa. Após os esclarecimentos necessários quanto
aos objetivos da pesquisa e o aceite dos professores em participar dela, procedemos à
aplicação de um questionário cujas perguntas visavam a uma primeira aproximação com a
questão da identidade do professor. Buscávamos, a partir dessa operacionalização, obter
registros que permitissem um estudo do imaginário dos professores (ORLANDI, 2000),
atravessado certamente pela voz do outro. Por meio dos textos produzidos, perseguimos tais
vozes para assim investigarmos as representações ideológicas desse grupo de professores,
localizando nas marcas discursivas traços de sua história e de sua prática docente.
O questionário aplicado (ANEXO I) divide-se em duas partes. Com o objetivo de
levantar alguns aspectos pessoais constitutivos da condição de produção do discurso dos
professores, elaboramos a primeira parte do questionário indagando sobre a idade, sexo,
estado civil, nível de renda, nível de escolaridade. A segunda parte busca investigar
aspectos relativos à profissão docente e ao uso do livro didático. A esse respeito,
questionamos basicamente o seguinte:
a) os motivos que levaram o professor de língua portuguesa a escolher essa
profissão;
b) o que mais aborrece e o que mais agrada ao professor no âmbito da profissão;
c) a avaliação que ele faz de seu trabalho docente;
d) sua opinião sobre o uso de livro didático.
Outra etapa da pesquisa se deu através de entrevistas semi-estruturadas com três
professoras de língua portuguesa. Tais professoras foram escolhidas porque, além de elas
terem concordado em fornecer informações que poderiam nos ajudar a compreender os
movimentos identitários dos professores de língua portuguesa, elas também atendiam aos
critérios por nós estabelecidos (trabalhavam na rede pública de ensino, utilizavam livro
didático em suas aulas e não haviam respondido ao questionário). Optamos por mais esse
instrumento porque precisávamos instigar os professores a relatarem suas trajetórias,
62
levantar algumas características da sua identidade a partir de suas opiniões, sentimentos,
interesses, expectativas, porque dessa forma julgamos que seria possível aprofundar uma
série de elementos levantados no questionário que, no nosso entender, precisavam ser mais
explanados.
As perguntas que nortearam as entrevistas não diferiam daquelas apresentadas no
questionário. Contudo, por se tratar de uma interação entre pesquisadora e entrevistado, as
entrevistas permitiram uma abordagem mais flexível e livre, ao mesmo tempo em que
forneceram registros que apresentaram com mais propriedade alguns fatores determinantes
da identidade do professor. Pudemos, por exemplo, coletar informações relativas a uma
aula inteiramente inspirada no livro didático, embora não tenha sido extraída dele.
Convém assinalar que tanto os textos escritos (respostas dos questionários) quanto
os textos orais (entrevistas) serão tomados, aqui, em sua prática discursiva, o que significa
assumir que a materialidade específica do fato textual servirá de ponto de partida para que
possamos olhar para lá das evidências empíricas, percorrer não só o que foi efetivamente
dito, mas, principalmente, o não-dito, o implícito. Com efeito, só será possível apreender o
funcionamento discursivo desses depoimentos se considerarmos o lingüístico juntamente
com sua exterioridade, tal como foi explicitado nos pressupostos teóricos deste estudo.
Ressaltamos, ainda, que, se a materialidade do discurso conta, certamente um texto escrito
e um texto oral significam de modo particular a suas propriedades materiais, conforme
aponta Orlandi (2000). Nesse sentido, as entrevistas que realizamos ganham relevo
especial, pois, mais que no texto escrito, elas permitem considerar sentidos detectáveis nas
diferentes formas de dizer.
Paralelamente à aplicação do questionário e à realização das entrevistas,
assistimos a cinco horas de aulas de língua portuguesa em três diferentes escolas estaduais
da região centro-oeste do estado do Paraná, perfazendo, portanto, o total de 15 horas de
observação direta. Elegemos as 5ª séries como foco de observação e acompanhamos os
trabalhos das professoras sempre nas mesmas séries. Fizemos isso porque necessitávamos
“sentir” mais de perto o professor e o livro didático, isto é, precisávamos olhar tanto o
professor quanto o livro didático no espaço onde ambos estão imersos, pois o delineamento
da identidade do docente não poderia, no nosso entender, prescindir de uma reflexão que
confrontasse o discurso do professor e a sua ação pedagógica.
63
Apesar de sabermos que há, durante as aulas, uma multiplicidade de fatores que
agem e interferem na significação do trabalho docente e, portanto, na construção da
identidade do professor, nosso foco de observação concentrava-se, apenas, no modo de
utilização do livro didático, no sentido de verificar sua(s) influência(s) na estrutura da aula
e na direção da ação docente, ou seja, para os objetivos aqui propostos, interessava-nos
saber como os professores desenvolvem, na prática, as propostas dos livros didáticos, uma
vez que tais livros atuam, como já dissemos, pelo prestígio de legitimidade e pelo discurso
“de competência”, sendo tomado, assim, como o lugar do saber definido, pronto, acabado,
correto e dessa forma, fonte última (e talvez única) de referência (SOUZA, 1999).
As escolas que colaboraram com esta pesquisa foram escolhidas em função de
uma facilidade de acesso. Os únicos critérios por nós estabelecidos foram que as escolas
deveriam ser da rede pública e deveriam ofertar o ensino fundamental de 5ª a 8ª série.
Quanto aos professores que participaram desta investigação, eles foram escolhidos
porque se interessaram pela pesquisa e quiseram participar, permitindo, dessa forma, a
observação e a gravação em áudio de suas aulas.
Uma última etapa da coleta de registros diz respeito à seleção de três livros
didáticos. Tal escolha se deu levando-se em consideração os títulos adotados nas escolas
que participaram deste trabalho. Logo, chamaremos a atenção para os dizeres inscritos nos
seguintes livros:
a) Livro1 – Entre Palavras17;
b) Livro 2 – A Palavra é Sua Língua Portuguesa18.
c) Livro 3 – Tecendo Textos: ensino de língua portuguesa através de
projetos19;
Poder-se-ia indagar que três livros representam uma amostragem reduzida para a
análise a que nos propomos. Contudo, entendemos que ela é representativa tendo em conta
que são livros estrelados, e adotados em várias escolas de nossa região. Outrossim, estamos
convencidos de que os elementos presentes nesses livros didáticos, que interferem na
constituição da identidade do professor, são da mesma natureza que os que se encontram
nos demais manuais adotados nas escolas.
17 FERREIRA, M. Entre Palavras. São Paulo: FTD, 1998.
18 LUFT, C.P. A palavra é sua língua portuguesa. São Paulo: Scipione, 1996.
19 SILVA, A.S et al. Tecendo Textos: ensino de língua portuguesa através de projetos. São Paulo: IBRP, 1999.
64
Nosso olhar sobre tais livros volta-se, prioritariamente, para o papel de autoridade
que eles assumem nos contextos escolares, tomados geralmente como paradigma norteador
da transmissão de conhecimento no ensino da língua portuguesa. Dessa forma,
investigaremos se as prerrogativas definidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1998) para aprovação do livro20,
estão presentes na obra, especialmente aquelas que afirmam que o livro deve possibilitar ao
aluno tornar-se sujeito de sua própria aprendizagem e ao professor assumir a
responsabilidade pela condução da mesma (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2001).
Ao nos movimentarmos em diferentes direções, lançando mão de diferentes
instrumentos de pesquisa, visávamos possibilitar um contato bastante preciso com a
questão da identidade do professor de língua portuguesa. Assim, fomos em busca de
registros a partir do quais intentamos desconstruir a discursividade para, então,
explicitarmos alguns contornos da identidade do professor de língua portuguesa.
Evidentemente, dada à enormidade de registros de que dispúnhamos para a
realização desta pesquisa nos restringiremos, durante as análises, às manifestações
discursivas que atendem ao foco de interesse de nosso recorte temático. Com outras
palavras, procuraremos fazer um recorte analítico de forma representativa para o recorte
temático que nos interessa.
Cabe-nos ainda esclarecer que os textos produzidos pelos professores, tanto os
escritos (respostas às perguntas do questionário) quanto os orais (registros das aulas e das
entrevistas) serão aqui transcritos, respeitando-se a forma com que foram produzidos. Por
isso, caso haja desvios com relação à norma culta da língua, eles serão mantidos durante as
transcrições.
Nossas análises seguirão a seguinte progressão: inicialmente comentaremos
aspectos dos discursos dos professores que nos permitem entrever as imagens que eles
possuem de si mesmos, do ensino de língua portuguesa e do livro didático; trataremos,
posteriormente, das concepções de professor que emergem dos discursos contidos nos
livros didáticos; depois, analisaremos uma aula de língua portuguesa inteiramente baseada
no livro didático, a partir da qual confrontaremos o discurso e a prática do sujeito-professor.
20 Os princípios e critérios do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para a escolha de livros didáticos
constam na primeira parte deste trabalho, especificamente nos itens 1.2 e 1.3.
65
2. RELAÇÃO ENTRE A IDENTIDADE DO PROFESSOR E O LIVRO
DIDÁTICO
Com base nas premissas teóricas assumidas e esboçadas na primeira parte,
objetivamos, agora, analisar os discursos produzidos pelos professores de língua portuguesa
e pelos autores de livros didáticos, verificando em que medida a voz desses últimos tem
contribuído para a construção de uma identidade profissional.
Contudo, não poderíamos deflagrar um estudo sobre os dizeres inscritos nos livros
didáticos sem antes levarmos em consideração suas condições de produção (PECHEUX,
1997), já que essas são constitutivas da instância verbal de onde se depreende(m) o(s)
sentido(s). Assim, importa considerar, de um lado, o livro didático imerso no contexto
político-educacional brasileiro e, de outro, os professores que são, sem dúvida, seus
principais usuários. Quanto aos aspectos relacionados à política pública de legitimação do
uso dos manuais didáticos nas salas de aulas, acreditamos já ter suficientemente discutido
isso na primeira parte do trabalho. Doravante, concentraremos nossa atenção nos
professores de língua portuguesa, buscando entender as posições-sujeito que eles ocupam
em relação ao contexto sócio histórico e à memória (o saber discursivo, o já dito).
Partindo do pressuposto de que a identidade do professor se constrói
historicamente, e que ele ocupa as posições-de-sujeito que as práticas discursivas
constroem para ele, investigamos inicialmente alguns aspectos gerais do docente e de sua
profissão com vistas a compreender, a partir de uma dada formação discursiva, como um
conjunto de relações significativas individualizadas constitui uma unidade discursiva, isto
é, visamos descrever a regularidade do discurso, apreendendo os sentidos que dali derivam
para, então, levantarmos as concepções que o professor de língua portuguesa tem de si e de
seu trabalho docente.
Mas, afinal, quem são os professores de que trata esta investigação?
Nosso universo de análise conta com um grupo de professores que atua nas escolas
da rede estadual de ensino, localizadas na região centro-oeste do Paraná. Nos gráficos
abaixo, apresentamos alguns dados objetivos que caracterizam, em parte, o perfil do grupo
que participou da presente pesquisa.
66
Gráfico 2: Faixa etária
18%
48%
27%
7%
de 20 a 30
de 31 a 40
de 41 a 50
de 50 a 60
Gráfico 3: Sexo
10%
90%
Masculino
Feminino
Gráfico 4: Estado Civil
7%
64%
29%
Solteiro(a)
Casado(a)
Separado(a)
Gráfico 5: Nível de renda (em salário mínimo)
6%
21%
50%
15%
8%
Até 3
3 a 5
5 a 8
8 a 12
Mais de 12
67
Gráfico 6: Nível de escolaridade
3%
26%
71%
Curso superior incompleto
Curso superior completo
Curso de especialização
Gráfico 7: Tempo de profissão
7%
27%
45%
21%
1 a 5 anos
6 a 10 anos
11 a 15 anos
16 a 20 anos
Um rápido olhar sobre esses gráficos nos permite explorar alguns elementos que
constituem as condições de produção, a partir das quais nos será possível analisar os
discursos produzidos pelos professores de língua portuguesa da região onde a pesquisa se
realizou.
São, na grande maioria, professores que atuam na área há pelo menos 10 anos,
possuindo, portanto, bastante experiência com relação à profissão. Devemos considerar isso
no momento de observar seus depoimentos, pois, ao falarem de sua prática pedagógica, eles
o fazem com um conhecimento bastante pertinente sobre a questão. Além disso, 71%
desses professores são especialistas, o que indica que possuem, a rigor, boa formação para
atuarem no ensino de língua portuguesa.
Merece destaque, também, o fato de que 90% desses professores são mulheres.
Isso demonstra um aspecto bastante importante da profissionalidade21, pois o ensino da
21 O termo profissionalidade, segundo Sacristán (1995, p.65), engloba aquilo que é específico da ação
docente, isto é, o “conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a
especificidade de ser professor”.
68
língua portuguesa tem sido realizado, cada dia mais, por mulheres professoras, a exemplo
do que acontece com a educação infantil e com o ensino de 1ª a 4ª série. Consideramos que
esse fato tenha a ver com uma questão que envolve, dentre outras, a queda do prestígio
social relativo à profissão do docente.
Se tomarmos a noção de memória discursiva, isto é, o retorno a algo que já é
passado, que ficou na história e que por isso produz esquecimento, mas que se atualiza no
interdiscurso, podemos dizer que é aí, no interdiscurso, que se situa a imagem social do
professor de língua portuguesa. Os dados acima podem ser interpretados à luz da seguinte
reflexão de Sacristán (1995) sobre os contextos de determinação da prática docente. Esse
autor aponta vários elementos que interferem no prestígio da profissão docente, tais como:
a) a origem social do grupo, que provém das classes média e baixa; b) o tamanho do grupo
profissional que, por ser numeroso, dificulta a melhoria substancial do salário; c) a
proporção de mulheres, manifestação de uma seleção indireta, na medida em que as
mulheres são um grupo socialmente discriminado.
Sendo os sentidos do discurso uma atualização da memória discursiva, é-nos
permitido inferir que o prestígio social da profissão docente, nos termos apresentados por
Sacristán (op.cit.), faz parte da historicidade do discurso sobre a profissão docente.
Entendemos, desse modo, que é essa historicidade que nos autoriza localizar no
interdiscurso a imagem social dos professores de português (grupo proveniente da classe
média, constituído predominantemente por mulheres, sem prestígio social).
Contudo, é importante dizer que paradoxalmente a essa imagem vinculada a um
processo de proletarização da profissão, decorrente de um processo histórico em que as
mudanças sociais transformaram profunda e negativamente o trabalho do professor e, em
conseqüência, a sua imagem social, emerge uma outra que resulta de uma certa expectativa
em relação ao papel do professor de língua portuguesa tomado, nessa outra perspectiva,
como agente importante e determinante na formação do sujeito-cidadão. Essas duas
imagens serão mais bem explanadas de ora em diante.
69
2. 1. Pesquisando o imaginário do professor
Sabemos que, em um processo discursivo, os locutores ocupam lugares
determinados na estrutura da formação social e que, nesse processo, ocorre uma série de
formações imaginárias que designam o lugar que os interlocutores atribuem cada um a si e
ao outro, além da imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro
(PÊCHEUX, 1997). Nesse sentido, não podemos ignorar que os professores, sujeitos desta
pesquisa, ao produzirem os seus discursos, projetaram imagens considerando, inclusive, o
lugar ocupado por nós. Ao falarem de sua profissão docente, por exemplo, eles levaram em
consideração o fato de que trabalhamos com formação de professores na Universidade, o
que certamente influenciou os encadeamentos discursivos de seus dizeres, tal como
transparece no seguinte trecho de uma das entrevistas. Quando perguntamos a opinião do
professor entrevistado sobre o livro didático, ele hesitou alguns instantes e disse:
Sd1: Olha... eu poderia dar respostas prontas .... Respostas que eu acho... que
você gostaria de ouvir. Mas eu vou falar bem como é a minha realidade.
Nessa seqüência discursiva, percebemos que o locutor se vê como um sujeito que
controla o seu dizer, pois, embora reconheça que a alteridade pode interferir naquilo que
pretende dizer, ele assevera que não se deixará influenciar. Entretanto, com base nos
ensinamentos de Authier-Revuz (1982), sabemos que é impossível para o sujeito esquivarse
da alteridade, e se no sujeito há essa sensação de que está produzindo algo que ele pode
controlar, isso advém de um mecanismo ilusório que, de forma inconsciente, tenta abafar a
heterogeneidade constitutiva.
Diante disso, é necessário considerar que, ao fazerem um balanço de suas
experiências, os professores não se limitam apenas a relatar fatos e opiniões, mas enquanto
sujeitos interpelados pelas condições sócio-históricas, escolhem uma, e não outra
determinada perspectiva discursiva porque estão envolvidos no jogo de imagens do qual faz
parte, também, a nossa imagem.
Vemos, então que, para compreender os sentidos dos discursos produzidos pelos
professores, é necessário recorrer às suas condições de produção, aqui entendidas como os
sujeitos e a situação. Quanto aos sujeitos professores, é importante sublinhar que nossas
70
histórias já se entrelaçaram em diversas ocasiões. Primeiramente, nas escolas onde
atuamos; depois, nas inúmeras reuniões promovidas pelo Núcleo Regional de Educação,
lugar onde trabalhamos durante cinco anos; por fim, nossas histórias ainda hoje se
encontram nos cursos de formação e nos cursos de capacitação promovidos pelo Governo
do Estado. Inevitavelmente, essas trajetórias articulam-se nos discursos produzidos, uma
vez que o discurso é um objeto sócio-histórico em que o lingüístico intervém como
pressuposto (ORLANDI, 1987).
Tendo, pois, em conta o esquema de formações imaginárias fornecido por
Pêcheux (1997), importa levantarmos, nesse passo, as seguintes questões: Como os
professores se vêem? Como pensam ser vistos por nós? Como nos vêem ? Como vêem o
referente? Como pensam que nós vemos o referente? Em que contexto sócio-histórico e
ideológico se dá a coleta de registros e as aulas observadas?
Vale salientar que em decorrência das oportunidades profissionais (cursos,
reuniões pedagógicas, etc.) que nos colocaram em contato com os professores, em fase
anterior à realização desta pesquisa, foi possível perceber que tais professores, de uma
maneira geral, se vêem como sujeitos despreparados, desvalorizados, cuja identidade passa
por um processo de deterioração22. Em vários momentos pudemos constatar isso até
porque, não raro, esses professores reclamam direta ou indiretamente o papel da escola, do
poder público e, como não poderia deixar de ser, das universidades no sentido de resgatarlhes
suas condições de existência condignas. Isso tudo aparece em seus discursos, associado
à urgente necessidade de aumento dos níveis salariais, condição considerada fundamental
para reverter o quadro de desvalorização social da profissão docente.
É importante dizer que, em se tratando dos professores de língua portuguesa, há
um agravante nessa configuração de identidade deteriorada, permeada por um discurso de
desencanto ou descontentamento. Para tratarmos desse agravante, evocamos um exemplar
estudo de Pagliarini (1993) intitulado Prolegômenos de uma Pergunta, no qual a autora
argumenta que desde os anos oitenta, época em que se firmou no Brasil o que ela chama de
“ordem discursiva”, as ciências lingüísticas vêm trazendo aos estudos e pesquisas sobre o
ensino de português, verdades, orientações e caminhos de entendimento e explicação de sua
22 Deterioração é um termo utilizado por Silva (1995) para elucidar a questão da identidade do professor de 1º
Grau que, segundo o autor, “apresenta-se fragmentada, confusa e desagregada, seqüestrada que foi pela
expropriação crescente das suas condições de realização e afirmação” (op.cit., p.34)
71
crise e de seu fracasso, além, é obvio, de propostas de solução. Entretanto, a produção
intelectual dessa área, ao se propor a salvar o ensino da língua portuguesa, cria verdadeiros
embates protagonizados de um lado pelos professores que falam/agem interpelados pelo
discurso progressista, e de outro, pelos professores que falam/agem interpelados pelo
discurso tradicional em ensino de língua.
Para citar apenas um exemplo, a autora mostra que o discurso progressista diz
NÃO à concepção “que elege como língua exclusivamente a variedade culta e que entende
língua como um conjunto de regras e um exemplário a ser, em sua ahistoricidade,
aprendido e imitado para todo o sempre”; esse mesmo discurso diz SIM “à concepção de
língua como um complexo de variedades lingüísticas, como multiplicidade, como algo que
tem história, está vivo, sendo produzido, como UM simbólico a recobrir um movimento
ininterrupto de diferenciação”. Dessa forma, está-se contrapondo aquilo que é erro, desatino
para uns – professores atuantes nas escolas – e aquilo que é verdade e salvação do ensino
para outros – lingüistas, lingüistas aplicados, etc. Paralelamente à concepção de língua,
encontramos no texto dessa autora SIM e NÃO referentes às concepções de linguagem,
gramática, texto, leitura, escrita, correção lingüística, educação, aluno e ensino de língua.
Segundo Pagliarini (op.cit, p. 127) “ as concepções NÃO constituem o saber de
nosso OUTRO; as concepções SIM, o saber de NÓS MESMOS”. Continua postulando que
“o saber do OUTRO, mirado pelo NOSSO saber, com as NOSSAS lentes, revela-se um
pseudo-saber, revela-se aparência, revela-se erro, revela-se ilusão, revela-se deformação,
revela-se preconceito”.
Tais erros, preconceitos, deformações nada mais são do que verdades para aqueles
que falam interpelados pelo discurso tradicional. Tendo em conta esse contexto, fica fácil
entender por que os professores se vêem como sujeitos despreparados, desvalorizados. São
sobretudo críticas como esta:
E a escola? Muitas vezes ela esquece que educação é um problema
social, e encara-o como problema cultural, pedagógico. Sem o
menor respeito pelas condições de vida de seus freqüentadores
impõe-lhes modelos de ensino e conteúdos justamente produzidos
para conservação dessa situação injusta, indecente, que esboçamos
anteriormente, histórica, do saber que coloca aos alunos, a escola
considera todo e qualquer conteúdo válido, muitas vezes baseado
em preconceitos, ignorâncias, verdades incontestáveis, dogmáticas.
72
E assim vemos muitos professores de português, tragicamente,
ensinado análise sintática a crianças mal alimentadas, pálidas, que
acabam, depois de aulas onde não faltam castigos e broncas,
condicionadas a distinguir o sujeito de uma oração. Estas crianças
passarão alguns anos na escola sem saber que elas poderão acertar
o sujeito da oração mas nunca serão o sujeito das suas próprias
histórias. (...) (ALMEIDA, M.J. p. 15 apud PAGLIARINI, 1993)
que fazem com que os professores se sintam assim, tal como um propagador do MAL, do
preconceito.
Com o intuito de trazer para as salas de aula as descobertas da Lingüística, o
professor se preocupa com o que de fato ele deve fazer nas suas aulas. E são estas questões
que surgem constantemente: como ensinar a língua? como selecionar os conteúdos? como
fazer de nossos alunos leitores e produtores de textos competentes? como eliminar o
artificialismo das propostas de produção de texto? como ensinar a gramática? Enfim,
perguntas cujas respostas não são encontradas em sua tradicional formação. Se ele é ao
mesmo tempo alvo de intensas críticas e detentor de uma precária formação, é de se esperar
que esse professor se mostre perplexo e, por que não dizer, desorientado, pois não temos
dúvidas de que reside, em muitos desses professores, o desejo de realizar um trabalho
inovador, uma prática pedagógica emancipatória. Não conseguindo esse feito, surge o
sentimento de frustração e desalento.
Até aqui tentamos pontuar a primeira questão apresentada acima, qual seja: como
os professores se vêem. Ao discorrer sobre isso, necessariamente tratamos de forma
implícita de outras questões. Tentar responder, por exemplo, à questão de como pensam ser
vistos por nós, passa necessariamente pela reflexão acima no sentido de que, para eles,
falamos/agimos interpelados pelo discurso progressista e, portanto, vemos esses professores
como sujeitos interpelados pelo discurso tradicional.
Temos de concordar novamente como Pagliarini (1993), quando ela diz que, ao
tentarmos resolver os problemas do ensino da língua portuguesa, reiteramos aquela idéia de
que os professores são portadores de concepções erradas (do PRECONCEITO e do MAL).
A partir disso, tentamos fazê-los seguir os nossos passos já que somos, então, portadores de
concepções certas (da VERDADE e do BEM). As palavras da autora sintetizam essa
reflexão:
73
Uma olhadela, mínima que seja, no “curriculum vitae” de alguns
de NÓS revelaria a dimensão da cruzada evangelizadora em que,
prometeicamente, temos NOS empenhado desde os anos oitenta.
Imbuídos do espírito de emissários da VERDADE e do BEM,
deixamos a universidade, incontáveis vezes, para ir pregar no
território do OUTRO, principalmente, no território de professores
de 1º e 2º graus de escolas públicas, baluartes dos
PRECONCEITOS lingüísticos e, portanto, do MAL.
Daí também se depreendem o como nos vêem, ou seja, somos para os professores,
portadores dos conhecimentos construídos na área da lingüística aplicada e que, a exemplo
dos incontáveis trabalhos que circulam nas escolas, pretendemos apresentar caminhos de
entendimento e explicação do fracasso do ensino da língua e, igualmente, apresentar
propostas de solução.
Vale salientar, aqui, que por conta dessa imagem, os professores, no início,
mostraram-se resistentes em participar desta investigação, alegando, muitos deles, que
estavam cansados das pesquisas da universidade que observam as escolas, criticam os
professores e não apresentam nenhum resultado efetivo. Houve, inclusive, uma escola cujos
professores se negaram a participar. Para a realização da pesquisa, tivemos que passar por
um processo de esclarecimento, que se constituiu em um espaço de (re)aproximação com os
professores. A adesão à nossa proposta se deu no momento em que conseguimos contornar
essa imagem de professora-pesquisadora perversa explicando as propostas do trabalho e
salientando, principalmente, que nossa pesquisa era diferente dos trabalhos que geralmente
são feitos nas escolas, isto é, não estávamos partindo de modelos ideais de escola,
tampouco de modelos ideais de professores, para, então, realizar uma crítica dura e
contundente aos sujeitos reais da escola, posto que muitas das críticas feitas em diversos
trabalhos de natureza científica resultam desses modelos ideais, e os professores,
obviamente, jamais atingem esses padrões pré-estabelecidos. Firmamos com esses
professores o compromisso de apresentar os resultados de nossas reflexões através de minicursos
ou de cursos de capacitação docente, até porque acreditamos que ao apresentar tais
resultados e discuti-los com os professores que estão atuando no ensino da língua
portuguesa, estaremos contribuindo para que os professores reavaliem (ressignifiquem) sua
relação com o livro didático.
74
Em função das concepções aventadas acima, somos levados a crer que a imagem
que os professores constroem do referente, aqui no nosso caso o livro didático, está
estreitamente ligada ao modo como se vêem. Ora, se eles mostram-se desorientados, sem
saber exatamente o que devem fazer na sala de aula, então o livro didático vem a calhar,
suprindo essa lacuna, uma vez que esse manual está autorizado a dizer-lhes, e de fato diz,
exatamente como agir. Autorizado porque a sua presença é legitimada pelas instâncias
governamentais que, também, selecionam os livros que não contêm erros, problemas,
higienizando-os e tornando-os digeríveis para o professor.
Já para nós, o livro didático é o elemento que deflagra toda a nossa inquietação
concernente à identidade do professor. De um lado, temos de concordar com Magda Soares
quando ela diz que
o livro didático é fundamental por várias razões. As mais
importantes: o bom didático é uma forma de garantir um mínimo
de qualidade no ensino: ele tem a função de sistematizar o
conhecimento da criança. Além do mais, num país como o Brasil, o
didático tem a função de suprir a falta de livros entre as crianças
das camadas populares. Não há país no mundo que abra mão dos
didáticos, e em alguns países desenvolvidos eles são primorosos.23
Contudo, não podemos negar que os livros didáticos conquistaram um grande
espaço nos contextos escolares, acabando por se transformar em um objeto indispensável
para a realização do ensino da língua. Sobre essa força que os didáticos foram
conquistando, Silva (1998, p.43) argumenta tratar-se de
uma força que, vem dia passa dia, ganha o estatuto de verdadeiro
deus totêmico que os professores reverenciam, falam através da sua
voz e beijam-lhe os pés. Uma força que, junto a círculos cada vez
maiores de adeptos e seguidores, força a barra, enraíza-se, torna-se
bíblia, convence sem falar, escraviza pela rápida conversão de
mentalidade. Uma força que, caso representada por imagens
concretas, adquire o retrato de bengala, muleta, lente para miopia
(...)
23 Entrevista concedida à Revista Nova Escola em outubro de 1994.
75
Com efeito, entendemos que essas condições de existência do livro didático
contribuem para que o professor se sinta cada vez mais desanimado e desiludido. Estamos
convencidos de que o referente é um elemento que se impõe nos contextos escolares
intervindo como voz soberana em um processo cujo papel principal deve ser encenado pelo
sujeito-professor.
Por fim, é importante acrescentar algumas palavras acerca do contexto sóciohistórico
e ideológico que envolve a coleta dos registros e as aulas observadas. Um rápido
vôo sobre as condições de trabalho do professor já nos fornece elementos relevantes para
que possamos contextualizar a produção de seu discurso. O atual processo histórico dos
professores aponta mudanças sociais que transformaram profundamente o seu trabalho, a
sua imagem social e o valor que a sociedade atribui à própria educação. Tais mudanças
acabaram por gerar um certo “mal-estar docente”, segundo Esteve (1995, p. 95).
Convém reiterar aqui que os diferentes sentidos dos fatos ou dos seres são
determinados por suas condições de produção e de existência. Só que esses sentidos não
são individuais, mas são socialmente hierarquizados, de acordo com as relações de força e
de poder que norteiam a sociedade. Isso explica esse “mal estar docente”, e para entendê-lo
devemos nos reportar ao contexto social da sua função. O que se espera do professor hoje?
Basicamente que ele seja capaz de dar conta do aumento das exigências que se colocam no
seu cotidiano profissional, exigências essas que englobam um número cada vez maior de
responsabilidades destinadas ao professor. Sabemos, por exemplo, que a tarefa do professor
de português, há tempos, não se reduz apenas ao domínio cognitivo, ou seja, não lhe basta
conhecer os avanços das ciências lingüísticas e as propostas sócio-construtivistas da
educação; é necessário, também, ser um facilitador da aprendizagem, eficaz, dinâmico,
criativo, organizador do trabalho de grupo e, além do ensino, é necessário que saiba cuidar
do equilíbrio psicológico e afetivo dos alunos, da integração social e da educação sexual,
etc ... a tudo isso pode somar-se a atenção aos alunos especiais integrados na turma
(ESTEVE, 1995). Entretanto, não houve mudanças significativas nos cursos de Letras que
garantissem ao professor essa formação eclética. Como, então, querer que eles cumpram
todas essas novas tarefas? Não é de se estranhar, portanto, que os professores estejam
enfrentando situações conflituosas que desencadeiam aquele “mal estar docente”,
traduzido, não raro, pelo desânimo, pela apatia ou pela subserviência ao livro didático.
76
Além disso, as condições sociais do trabalho docente que, há algum tempo,
reservavam para o professor uma posição de prestígio, de um elevado “status” social e
cultural, passaram a desvalorizar cada vez mais o trabalho desse profissional. Sabemos que
atualmente o “status” social é estabelecido, primordialmente, a partir de critérios
econômicos. Para muitas pessoas, o fato de alguém ser professor tem a ver com uma clara
incapacidade de “ter um emprego melhor”, ou seja, ter uma ocupação que lhe renda mais
dinheiro. É nesse sentido que se percebe que a questão salarial dos professores se converte
em um forte agravante da crise de identidade da profissão (op.cit). Com outras palavras,
percebemos que, paralelamente à desvalorização salarial, produziu-se uma nefasta
desvalorização social da profissão docente, o que repercute, obviamente, no seu
compromisso com a profissão e, por extensão, no trabalho efetivo do docente na sala de
aula.
Inseridos, portanto, nesse complexo jogo de imagens, passaremos a examinar os
discursos dos professores.
2.1.1. Auto-imagem
De início, interessa-nos verificar as imagens que os professores de língua
portuguesa possuem sobre seu trabalho, suas escolhas, sua formação, pois isso tudo está
diretamente ligado à constituição da sua identidade. Para esse fim, daremos início à nossa
abordagem, questionando sobre como cada professor se tornou professor. Na seqüência,
discutiremos os depoimentos sobre o que mais agrada e o que mais aborrece o professor no
âmbito da profissão.
2.1.1.1 – Como é que cada um se tornou professor de português?
As manifestações discursivas de nosso corpus demonstram que o interesse e o gosto
pela profissão advêm de motivações diversas. A maioria dos professores localiza a origem
da opção para se ensinar a língua no fato de que sempre gostaram de ler, ao lado do fato de
que houve durante a sua escolarização, uma identificação com a disciplina de língua
portuguesa, seja porque gostavam do professor e esse, então, teria marcado
77
significativamente sua vida, seja porque gostavam das atividades realizadas durante as
aulas (ler, escrever, falar, aprender gramática...). Os professores assim se manifestaram:
Sd2: Por gostar da disciplina; pelos professores que tive; por detestar
matemática e não me interessar por outras disciplinas.
Sd3: Uma professora excelente que tive no ensino Fundamental.
Sd4: O que me levou a escolher esta disciplina foi a inspiração que eu tive por
gostar muito de uma professora do ensino fundamental.
Sd5: Admiração pela professora; facilidade de aprendizagem; gosto pelo estudo e
pela leitura.
Sd6: Afinidade com professores dessa disciplina na época escolar.
Sd7: Admirava meus professores de português por expressarem-se muito bem e
por serem exigentes.
Notamos nessas seqüências discursivas que a decisão pela profissão ancora-se em
modelos que permaneceram na memória discursiva dos professores, agindo como um ideal
da profissão. É na lembrança de um passado, de um “já vivido” em cujas representações há
imagens de professores marcantes, que se recuperam os modelos da profissionalidade, isto
é, há no não-dito desses enunciados um outro discurso afirmando que ao se tornar professor
de língua portuguesa, está-se querendo ser “igual” ao professor ideal.
Observemos também que em Sd7 o professor-enunciador evoca a imagem de um
professor que se expressava muito bem, indicando, assim, o porquê de alguns professores
irem buscar formação em Curso Superior de Letras: a intenção primeira em fazer esse curso
é aprender melhor a língua, e, como conseqüência, consegue-se uma profissão.
Faz parte do imaginário social a concepção de que o professor de português é aquele
que domina um conjunto de regras e particularidades gramaticais e que, por isso, consegue
se expressar bem, “gramaticalmente correto”. Nesse sentido, podemos destacar estas outras
manifestações:
Sd8: Para entender e aprender a língua materna.
Sd9: Conhecer melhor e mais a língua portuguesa.
78
Em um trabalho intitulado Ensino de língua e gramática: alterar conteúdos ou
alterar a imagem do professor?, Possenti e Ilari (1992) apresentam uma interessante
reflexão sobre esse tema argumentando que se faz urgente a criação de uma nova imagem
do professor de língua materna, pois esses autores também reconhecem que a que hoje
resiste na sociedade está tão desgastada quanto desvalorizada. E um dos pontos observados
por eles é que tal imagem deriva de uma prática tradicional de ensino da língua, centrada no
ensino da gramática tradicional, prática essa que possui uma resistência obstinada à
atualização, à mudança. Voltamos aqui àquela questão do confronto entre as verdades
daqueles que falam interpelados pelo discurso tradicional, e aqueles que falam interpelados
pelo discurso progressista do ensino da língua.
Outros professores dizem ter despertado para o ensino da língua em decorrência de
um certo dom, vocação. Eles disseram:
Sd10: Acho que é um dom pois desde criança, sem saber ao certo o que era ser
professor, eu já almejava essa profissão.
Sd11: Vocação pessoal. Paixão por literatura.
Sd12: Vocação porque eu me identifico com o que eu faço.
Sd13: Ensino por vocação, porque gosto.
Sd14: Gosto de orientar caminhos, gosto de ser professora.
Sd15: Sonho com muitas mudanças, sei que muito precisa ser refeito, mas
acredito que estou aí para isso.
Sd16: Ser professor é ser idealista
Sd17: Eu penso que minha missão é atuar (melhorando o mundo) através da
Educação
Sd18: Trabalho com dedicação e amor.
Há aí um elemento bastante significativo da constituição da identidade do docente.
Ao dizer que escolheu a profissão porque se considera portador de um dom, de uma
vocação para ensinar, o professor está revelando uma imagem idealizada da ação docente,
79
aquela tradicional que concebe o ato de ensinar como algo missionário, vocacionado.
Expliquemo-nos melhor: a palavra vocação vem do latim (vocatione) e pode significar o
ato de chamar, chamamento, ou ainda, predestinação, tendência24. Assim, percebemos no
discurso do professor efeitos de sentidos que apontam para a reprodução de uma ideologia
que prevê para o trabalho docente um tipo de sacerdócio, doação. O professor está
convencido de que ele é professor porque foi “chamado” a ensinar, entendendo que isso faz
parte de seu destino.
Coracini (2000), ao tratar dessa questão, afirma que essa ideologia da missão é um
resquício de um tempo em que o ato de educar comparava-se ao ato de evangelizar, dos
missionários. Nessa época, ensinar não era de fato uma profissão, mas uma missão porque
se ensinava por devoção, a exemplo do sacerdócio. Constatamos, pois, que alguns
professores ainda se vêem como missionários, já que tal idéia está presente (e diríamos
fortemente) no imaginário desses professores.
É necessário pontuar que o “ser professor” não aparece na vida dos professores de
forma naturalizada, como se a vocação florescesse, a partir do nascimento do sujeito, no
próprio cerne da personalidade. Desconstruir o discurso de que para ser professor é preciso
nascer com um “dom”, “ter vocação” é um importante ponto de partida para tentarmos
atribuir outros sentidos para a identidade da profissão docente de um modo geral, e para a
identidade do professor de português de um modo específico. A identificação com a
profissão, isto é, a construção da identidade do professor vai se forjando historicamente, em
diferentes tempos/espaços. Segundo o que Orlandi (1998) ensinou, a identidade do sujeito é
um movimento da história porque ela está sempre sujeita a uma historicização, ou seja, ela
está constantemente em processo de mudança e transformação. Com efeito, o professor se
torna professor no movimento da história.
Também expressões como ensino porque gosto; gosto de ser professora; trabalho
com dedicação e amor, somadas àquelas que apresentam afinidades, seja com o professor
modelo, seja com o conteúdo da disciplina de português, segundo Coracini (2000), são
reveladoras de uma forma ideal de se escolher a profissão já que, de acordo com a
concepção psicanalítica de sujeito, inspirada em Freud (1997 apud CORACINI, 2000) há,
nos dizeres desses professores, uma manifestação inconsciente da busca incessante que o
24 Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (HOLANDA FERREIRA,1986).
80
ser humano empreende com vistas ao prazer e à felicidade. Considerando, pois, que o
sujeito se vê no outro e pelo outro, percebemos nesses discursos um desejo latente de
construir e, ao mesmo tempo, proteger a própria imagem, que é justamente a do sujeito que
faz o que gosta; que faz tão competentemente quanto os modelos nos quais se espelhou.
Na seqüência discursiva abaixo, o professor deixa entrever que a escolha da
profissão é fruto de um certo determinismo hereditário.
Sd19: Eu me decidi a fazer Letras-Literatura, que é no que eu sou formada, acho
que por influência de minha mãe que também é professora de Língua
Portuguesa. Eu acho que a escolha veio dessa influência por parte da minha
mãe seguir a mesma carreira que ela. Mas eu me identifiquei, gostei, me
realizei com isso, não foi uma coisa frustrante. Eu gosto muito do que eu
faço.
Nessa fala, o professor, ao fazer menção à existência de certo tipo de herança
familiar, já que a mãe também era professora, reestrutura de imediato o discurso
enunciando mas eu me identifiquei, gostei, me realizei com isso (com a profissão). Nesse
ponto, o locutor deixa clara a presença do outro, pois o funcionamento discursivo da
contrajunção mas pressupõe uma outra voz argumentando que as razões que o levaram a ser
professor de português poderiam dificultar sua identificação com a profissão. O locutor
reitera esse pressuposto no momento em que enuncia não foi uma coisa frustrante, cuja
negação revela uma outra proposição, portanto, outra voz que diz que a escolha pela
profissão foi frustrante.
É certo, pois, que os efeitos de sentidos depreendidos desse discurso se constroem
no movimento polifônico entre o que está explícito na voz do locutor e o que está
pressuposto em um terreno comum do locutor e do interlocutor. Ao trazer para seu discurso
a asserção final Eu gosto muito do que eu faço, reitera-se a heterogeneidade constitutiva do
discurso ao mesmo tempo em que comprova aquilo que dissemos acima, ou seja, a
constituição da identidade do professor passa por esse sentimento de ideal da profissão.
No próximo trecho, a professora espelha-se na imagem de uma amiga que, segundo
o seu relato, era muito, muito professora:
Sd20: Quando eu comecei a faculdade, eu já estava casada, com 4 filhos. Na
realidade eu resolvi voltar para a escola porque toda vez que tinha um
81
concurso eu esbarrava, não podia fazer porque eu não tinha 2º grau, não
tinha faculdade, não tinha não sei o quê. Aí então eu caí no magistério no 2º
grau, e... eu achei ótimo, só que eu nunca pensei em ser professora na
realidade. No entanto, eu afirmei categoricamente, até o dia da formatura
que eu não ia ser professora. Só que eu tinha uma amiga muito, muito
professora que me dizia assim: Ah, você tem jeito pra coisa, vai lá... Vá
fazer o teste seletivo, e eu fui... ela me levou, né? Foi lá em casa me buscar e
me levou.
A leitura dessa seqüência nos leva a evocar o princípio de que os sentidos não são
evidentes nem prontos, uma vez que ele sempre remete a um já-dito ao qual está filiado.
Além disso, a aparente evidência dos sentidos é um efeito ideológico porque a ideologia faz
parecer que um dado discurso é transparente e homogêneo, mas, como sabemos, ele é
constitutivamente opaco e disperso. Em relação ao segmento Quando eu comecei a
faculdade, eu já estava casada, com 4 filhos percebemos a idéia de Pêcheux (1995, p. 164)
quando ele assevera que a objetividade material “reside no fato de que “algo fala” (ça parle)
sempre antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a dominação do complexo
das formações ideológicas”. É, pois, a partir desse pré-construído, desse já-dito, que
percebemos o discurso ideologicamente marcado pelas vozes sociais que, atravessando o
discurso da professora, afirmam que a universidade é o lugar de jovens; não se espera, pois,
que uma mulher casada, com 4 filhos, freqüente o curso de Letras.
Outro ponto que chama a atenção nessa seqüência discursiva é o fato de que tal
professora é uma das poucas que afirma que a escolha da profissão se deu em virtude das
contingências, do acaso, tal como podemos perceber na expressão eu caí no magistério.
Aflora nesse trecho a imagem de professor vítima do destino, ou seja, essa professora não
escolheu a profissão, foi escolhida. Ela nunca pensou em ser professora, afirmando até o
dia da formatura que não ia ser professora. Seu relato refuta, portanto, aquela concepção
inatista, segundo a qual o sujeito “nasce” professor, ou ainda, a ideologia da missão como
se a vocação e a capacidade docente fossem dons inatos. Por outro lado, há nessa última
seqüência discursiva efeitos de sentido que parecem mostrar que a escolha da profissão
docente é determinada pelas circunstâncias, pelas oportunidades e, principalmente, pela
influência social já que a professora se decidiu pela profissão porque uma amiga muito,
muito professora disse que ela tinha jeito pra coisa. Cabem aqui duas observações. A
82
primeira diz respeito à modalização do discurso a partir do uso reiterado do muito; a
segunda refere-se aos efeitos impressos na expressão jeito para a coisa.
Qual seria, pois, a razão para a locutora fazer referência à amiga-professora
valendo-se da repetição do advérbio muito? O que é ser muito, muito professora?
Considerando que o sentido não está no texto, mas no espaço da interlocução, é lícito dizer
que o efeito de sentido que mais se evidencia, nessa da fala da professora, é aquele que
imprime qualidades importantes e necessárias para o exercício da docência.
Intrinsecamente ligada a essa manifestação, está o uso da expressão jeito para a
coisa. Ser muito, muito professora está em perfeita consonância com o ter jeito para a
coisa, daí concluirmos que nesse discurso intervém uma noção cristalizada no imaginário
social. Ambos os enunciados permitem entrever um discurso tradicional, recuperado pela
memória discursiva, social, que remete às antigas aptidões para o exercício da docência. Ou
seja, ter jeito para a coisa e ser muito, muito professora equivalem a dizer que essas
professoras dizem possuir atributos ou qualidades pessoais que lhe permitem ser
professoras, quer dizer, elas possuem as aptidões necessárias para isso. E quais são essas
aptidões? Tradicionalmente postula-se que para alguém ser professor, deve possuir: saúde e
equilíbrio mental; normalidade física e boa apresentação; órgãos de fonação, visão e
audição em boas condições; boa voz: firme, agradável, convincente; linguagem fluente,
clara e simples; naturalidade e desembaraço; firmeza e perseverança; etc.25 Se a pessoa
fosse, então, portadora dessas características, ela estaria apta para ser professor.
Merece nossos comentários ainda o fato de a Sd20 ser um claro exemplo da
heterogeneidade mostrada de que fala Authier-Revuz (1982). Observemos novamente o
seguinte segmento: Só que eu tinha uma amiga muito, muito professora que me dizia
assim: Ah, você tem jeito pra coisa, vai lá... Vá fazer o teste seletivo, e eu fui... ela me
levou, né? Foi lá em casa me buscar e me levou.
Que todo discurso é constitutivamente heterogêneo, já pudemos constatar no
levantamento feito anteriormente quando aventamos as multiplicidades de vozes que
atravessam o discurso dos professores. Também já observamos que a pretensa
homogeneidade ou unidade do discurso é um efeito ideológico. Queremos aqui sublinhar
que ao enunciar o sujeito sente-se fonte autônoma de seu dizer, desconsiderando, portanto,
25 Essas aptidões constam no livro MATTOS (1966).
83
o dialogismo constitutivo de todo e qualquer discurso. Essa ilusão é reforçada no momento
em que se dá a heterogeneidade mostrada, isto é, quando o locutor mostra a outra voz na
cadeia discursiva, iludindo-se de que é só naquele espaço que a alteridade interfere no
processo discursivo. No nosso exemplo, a professora usou o discurso direto para “passar” a
voz para o outro. Vale lembrar que, conforme vimos nos pressupostos teóricos, o discurso
direto é uma das formas marcadas a partir da qual o locutor se coloca como um porta-voz
que expõe as palavras do outro. Na seqüência acima, a professora inscreve a voz da
professora-amiga para assinalar a interferência desta na escolha da profissão daquela.
Todas as manifestações discursivas acima observadas, permitem-nos concluir que
na definição pelo ser professor de língua portuguesa, cruzam-se múltiplas vozes que
relatam acasos, circunstâncias, coincidências que conduziram o professor à escolha de sua
profissão. Importa, entretanto, perguntarmos: de onde vêm esses sentidos?
Vimos que qualquer seqüência discursiva, para ter sentido, deve pertencer a uma
formação discursiva que, por sua vez, faz parte de uma formação ideológica determinada.
Segundo Pêcheux (1995, p.160), é a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo
mundo sabe” o que é, por exemplo, “um soldado”, “um operário”, “um patrão”, “uma
fábrica”, etc.; em outros termos, vivemos sob evidências ideologicamente constituídas. Da
mesma forma atuam, nas manifestações discursivas acima, os sentidos que abordam os
motivos da escolha da profissão; nestas, temos a ideologia dos vocacionados, a dos amantes
da literatura, a dos admiradores da facilidade de expressão e do domínio da norma culta, a
dos interessados nas particularidades gramaticais, a dos frutos do determinismo (familiar ou
ambiental), ou seja, é o trabalho da ideologia sobre o imaginário que constitui a evidência
dos sentidos aí depreendidos.
2.1.1.2 – O que mais aborrece e o que mais agrada ao professor na profissão?
Movimentando-nos ao encontro do que diz Nóvoa (1995) acerca da construção da
identidade do professor, já que concordamos com esse autor quando ele postula que a
identidade do professor “é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de
maneiras de ser e de estar na profissão” (op.cit, p.34), intentamos neste espaço,
compreender como é que o professor “é” e “está” na profissão. Para tanto, apresentaremos
84
os depoimentos que mostram do que eles mais gostam e do que não gostam nesse estado de
coisa, isto é, nesse ser e estar na profissão.
Quando questionados sobre o que mais lhes agrada, foram, sobretudo, as imagens
construídas pelas relações professor-aluno que surgiram em seus discursos. Vejamos:
Sd21: O contato com adolescentes, conhecer seu mundo; poder mostrar que o
mundo pode ser melhor; que ele (o aluno) pode ser melhor, pode transformar a sociedade;
na verdade o mais apaixonante da minha profissão é isto: apresentar aos jovens
"possibilidades".
Sd22: O convívio com a juventude
Sd23: O que mais gosto é a oportunidade de conviver sempre com os
adolescentes e jovens
Sd24: Mostrar através de experiências de vida, caminhos que sirvam para
norteá-los ou fazê-los refletirem sobre determinadas atitudes.
Sd 25: Mostrar novos caminhos
Sd26: Gosto de orientar caminhos
Sd27: O contato com os alunos. É enriquecedor; só por eles vale a pena.
É impossível pensar na figura do professor sem que surja, constitutivamente, a
figura do aluno. Contudo, afloram nos dizeres acima valores, crenças e expectativas que
nos remetem novamente a uma concepção idealizada da profissão docente. Tal idealismo
fica mais claro quanto comparamos os discursos dos professores com os dizeres inscritos
em um antigo livro de didática geral, em que encontramos o seguinte excerto referente à
tradicional vocação para o magistério. O professor ideal é aquele que possui:
Amor paedagogicus, isto é, aquela atração, simpatia, interesse
natural pelos adolescentes e desejo de auxiliá-los nas suas lutas,
seus problemas e seu anseios. Dessa capacidade de sintonizar com
os adolescentes e de compreendê-los resulta satisfação e gosto pelo
convívio com os mesmos. O “amor paedagogicus” é o oposto da
atitude sistemática de aversão e de hostilidade aos adolescentes; de
impaciência, desprezo, arbitrariedade, rispidez e sadismo em face
de adolescentes imaturos e indefesos (MATTOS, 1966)
85
Essas premissas, recuperadas na memória discursiva, ecoam nitidamente nas falas
dos professores. É como se, por conta desse “amor paedagogicus”, o professor fosse capaz
de salvar o aluno, mostrando-lhe possibilidades (Sd21), caminhos (Sds 24, 25 e 26), dandolhe
um norte (Sd24). As metáforas de professor-guia, professor-bússola parecem cingir as
imagens que se entremostram nessas seqüências discursivas, pois para esses professores, as
significações do trabalho docente se expressam por palavras inscritas em redes de sentido
advindas de um certo imaginário sobre a profissão docente: ser professor significa possuir
aquele “amor paedagogicus” a partir do qual é possível guiar o aluno no caminho do bem,
da verdade, orientando-o “nas suas lutas, seus problemas e seus anseios” (op.cit.). Some-se
a essas imagens uma outra de professor-herói, disposto a livrar os alunos “não apenas das
doenças do intelecto, isto é, da ignorância, mas também das doenças da alma que se
manifestam, no vício da droga, em atitudes de insensibilidade” (CORACINI, 2000, p.151).
Mais especificamente na fala Sd24, o professor afirma que busca fazê-los (os alunos)
refletirem sobre determinadas atitudes, produzindo, portanto, um discurso consoante com a
concepção de que o professor é um “modificador de destinos”, de acordo com a reflexão de
Coracini (op.cit). Em suma, a profissão docente nesses discursos é representada por
imagens de amor, entrega, doação, já que é enriquecedor (Sd27) estar junto com os
adolescentes, e é por isso que o professor se diz um apaixonado pela profissão (Sd21).
Não queremos com essas considerações negar a importância do envolvimento
afetivo do professor na ação docente, até porque entendemos, junto com Luckesi (1992),
que o professor deve desejar ensinar e isso só é possível se ele for movido por uma certa
dose de paixão pela atividade docente que se estende, obviamente, ao aluno. Contudo,
julgamos necessário chamar a atenção para o fato de que junto com essa visão idealizada da
profissão, permanece sedimentada a imagem de professor vocacionado, missionário que
reproduz a ideologia do sacerdócio mantida pelo discurso social e messiânico de amor ao
próximo. Desse discurso deriva o desejo de salvar os jovens, mostrando-lhes caminhos.
Atentemos agora para estas outras seqüências:
Sd28: A satisfação de perceber o crescimento intelectual dos educandos; a
participação dos alunos; receptividade dos alunos ao propor atividades
que vêm de encontro aos seus interesses e que, portanto, são bem
desenvolvidas; trabalhar leitura e oralidade, oportunizando diversas
manifestações e conseqüentemente a pluralidade de opiniões e de
86
posicionamentos; a constatação de que os alunos estão evoluindo,
apresentando progresso na leitura e na escrita, demonstrando, nas
atividades, serem capazes de perceber a intencionalidade do autor, de
concluir que um mesmo texto é passível de mais de uma leitura, de se
expressarem de modo claro e coerente, de interagirem, seja verbalmente
seja pela escrita.
Sd29: Ver os alunos lendo textos com boa compreensão; observar o progresso
dos alunos/as durante o ano; despertar o gosto pela língua e pelo estudo
científico dela; ler as produções textuais que os alunos escrevem depois
que passam pelas oficinas de texto.
Sd30: Os alunos na relação ensino-aprendizagem; ver o interesse, o crescimento
e também aprender com eles; troca de experiências com o corpo docente;
Sd31: Gosto de estar em contato com os alunos, discutir, captar opiniões, idéias,
debates e estar acompanhando as idéias das quais elas são capazes de
compreender e repassar de alguma forma para o grupo (sala de aula).
Orientar, ser um agente desse processo. Isso me alegra, apesar de alguns
dissabores.
Nessas falas, embora permaneça a imagem do professor orientador de caminhos
que gosta do conviver com os adolescentes, esses caminhos referem-se aos objetivos do
trabalho com a língua portuguesa. Ou seja, o que de fato agrada a esses professores é
constatar que os alunos correspondem às expectativas de seu trabalho enquanto docente,
agente, mediador no processo ensino-aprendizagem. Considerando as posições-sujeito de
que trata Pêcheux (1997), percebemos que nessas últimas seqüências discursivas os
professores resvalam para uma posição de sujeito-professor profissional, entendendo-se
como alguém que sabe qual é o seu papel no ensino da língua. Queremos com isso dizer
que não basta “amar” o adolescente e envidar todos os esforços para que ele não saia do
caminho; o que se espera de um professor de português é que ele esteja preparado para
cumprir o seu papel, contribuindo para a formação de sujeitos no sentido de ajudá-los a ser
capazes de utilizar competentemente a sua língua materna.
A satisfação profissional de que falam os professores das seqüências acima,
advém da realização de um trabalho significativo na práxis pedagógica. O professor da
Sd28, por exemplo, deixa isso bastante claro quando observa que o que lhe dá prazer é
constatar que seus alunos atingem os objetivos do ensino da língua portuguesa, já que eles
87
apresentam progresso na leitura e na escrita, demonstrando, nas atividades, serem capazes
de perceber a intencionalidade do autor, de concluir que um mesmo texto é passível de
mais de uma leitura, de se expressarem de modo claro e coerente, de interagirem, seja
verbalmente seja pela escrita.
É fácil perceber que o discurso desse professor está em perfeita sintonia com o que
prevêem os PCNLP. Ou seja, as relações de sentidos aí depreendidas, procedem do
relacionamento do discurso com os outros discursos (aqui nesse caso, o discurso da
lingüística e da lingüística aplicada que ressoam nos PCNLP e, conseqüentemente, em
todas as atuais orientações teórico-metodológicas para o ensino da língua); trata-se da fala
interpelada pelo discurso progressista (PAGLIARINI, 1993). Dito de outro modo, os
sentidos recorrentes nessas últimas seqüências discursivas reproduzem o discurso
pedagógico ora vigente nas instituições formadoras e nos documentos oficiais. São
reproduções, e, como tais, isentas de qualquer criticidade ou questionamentos.
Em que pese essa submissão aos objetivos estabelecidos pela burocracia escolar,
percebemos um certo deslocamento da posição idealizada do sujeito-professor.
Lamentavelmente, são poucos os discursos que convergem nesta posição, pois a maioria
dos professores não se vê como sujeito mediador cujo papel é dar direção ao ensino e à
aprendizagem da língua portuguesa, orientando os alunos para que consigam desenvolver
sua competência comunicativa. A imagem que prevalece é aquela associada ao sacerdócio,
ao ensinar por amor.
Ocorre que a relação professor-aluno está longe de ser algo tranqüilo, livre de
conflitos. Essa visão ingênua de que o professor é um orientador de caminhos, demanda
uma contraparte, também ingênua, que diz respeito ao papel idealizado de alunos bem
comportados, engajados e empolgados com a escola. Todavia, os relatos dos professores
mostraram que o maior problema, entenda-se desgosto, de sua vivência na escola está na
falta de interesse dos educandos pelo ensino e a conseqüente indisciplina.
Tamanha foi a reincidência dessa questão nas observações dos professores que
julgamos oportuno evidenciá-la no gráfico abaixo
88
Gráfico 8: O que aborrece o professor no âmbito da profissão
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
40%
45%
Desinteresse dos alunos e
indisciplina
Salário
Os outros professores
Desvalorização da profissão
Número excessivo de alunos por
turma
Falta de tempo
Políticas educacionais
Pais de aluno
Falta de recursos didáticos
Se, antes, vimos que o professor se sente feliz porque convive com os alunos,
arriscaríamos dizer aqui que, a partir das constatações visíveis nesse gráfico, justifica-se,
em parte, o sentimento de frustração e desencanto que, não raro, emerge em seus discursos.
Ora, o professor de um lado espera poder orientar os caminhos dos alunos, norteá-los nas
escolhas; de outro, os alunos não se interessam pelo trabalho do professor e contrariam as
normas escolares de disciplina.
A esse respeito, importa destacar as seqüências discursivas arroladas abaixo:
Sd32: O que me aborrece mais é que a cada ano que passa eu encontro mais
alunos que não tem respeito por nada, nem por ninguém. Muitas vezes é
preciso parar com tudo e falar sobre moral, bons costumes, respeito,
consideração por si mesmo e pelos outros. O desinteresse do aluno. Outra
coisa que me aborrece é o salário defasado com a bagagem atualizada que
muitos professores apresentam. Outra coisa ainda é o descaso da escola
quando o professor quer desenvolver algo diferente. A princípio dão todo o
apoio mas na hora “h”, de desenvolver o trabalho, o professor que faça
tudo sozinho.
89
Sd33: Sou uma profissional com vinte e cinco anos de experiência e sempre
adorei lecionar, mas ultimamente tenho me aborrecido com o descaso de
alunos, a má educação deles e também a falta de interesse pelos conteúdos
abordados.
Sabemos que, antigamente, a relação professor-aluno acontecia de maneira
injusta, pois o professor tinha todos os direitos e todas as razões e o aluno não podia se
manifestar sob pena de ser submetido aos mais variados vexames. A relação de poder,
então, designava ao professor o lugar de controle autocrático, isto é, os alunos eram
submetidos a um regime de severa vigilância e de processos coercitivos. Presentemente,
segundo Esteve (1995, p.107), há uma outra situação, também injusta: “o aluno pode
permitir-se, com bastante impunidade, diversas agressões verbais, físicas e psicológicas aos
professores ou aos colegas sem que, na prática, funcionem os mecanismos de arbitragem
teoricamente existentes”. Dessa situação conflituosa resultam, por exemplo, os inúmeros
casos de violência nas instituições escolares que envolvem, também, o professor. Há que se
acrescentar que esses extremos, isto é, o despotismo do professor e o anarquismo do aluno,
anulam qualquer possibilidade de produção eficiente na ação docente-discente.
Chamamos a atenção para isso porque o problema da relação professor-aluno,
fruto das mudanças sociais e do momento histórico, ecoa fortemente nos dizeres dos
professores, pois, não devemos nos esquecer, a exterioridade é constitutiva do discurso
(ORLANDI, 2000).
Cumpre observar, então, que nas duas seqüências descritas acima, os professores
fazem menção a um tempo passado, quando os alunos respeitavam os professores. Na Sd32
esse tempo é marcado pela expressão cada ano que passa, e na Sd33 a professora diz que
durante seus vinte e cinco anos de experiência, sempre adorou lecionar, deixando claro que
o gosto pela profissão ficou no passado. Também o uso do operador mas permite-nos
inferir que hoje a professora não gosta mais de lecionar. O tempo presente, na voz desses
professores, aborrece, desanima.
É evidente que as relações nas escolas mudaram, assim como é evidente que os
professores não souberam encontrar novos modelos de convivência e de disciplina, o que
explica esse sentimento nostálgico que os faz lamentar a ausência do bom aluno de
antigamente. A imagem de professor daí decorrente é a do professor-saudosista, deslocado
90
perante uma escola em mudança vertiginosa, para a qual se exigem, acima de tudo,
professores capazes de resolver problemas novos.
Não deve ter passado despercebido o fato de que, no quadro acima, outros
fenômenos, além do aluno, contribuem para que o professor se sinta insatisfeito em face
dos problemas da profissão docente, em aberta contradição com a imagem ideal do
professor e, por que não dizer, da própria escola. Os professores disseram que se
aborrecem, por exemplo, com a questão do salário, da desvalorização da profissão, das
políticas educacionais. Esses dados confirmam o que levantamos no início deste capítulo
com relação ao mal estar docente (ESTEVE, 1995). Era de esperar, pois, declarações como
esta concernente ao salário:
Sd: 34 O salário, tendo em vista que cursei uma faculdade com bastante sacrifício,
adquiri dívidas para fazer a especialização e não tenho retorno financeiro.
Odeio a idéia de ter que levar o dinheiro contado todo mês. Não quero mais
estudar.
Muitos são os depoimentos de nosso corpus que dialogam com a Sd34, formando
através dessa multiplicidade de vozes consoantes, imagens de professor-desmoralizado,
desencantado. Na verdade, há casos em o professor se vê como um “pobre coitado” que não
foi capaz de arranjar uma ocupação mais bem remunerada. Adiantemos alguns exemplares
desse sentimento de derrota retirados das manifestações que discorrem sobre a
possibilidade de abandonar (mudar) de profissão. Nesses depoimentos os professores
gostariam de mudar porque:
Sd35: Sobreviver com o salário de professora é uma eterna frustração.
Sd36: Porque não me sinto satisfeita com as condições oferecidas aos docentes.
Existe um desgaste muito grande, pois precisamos trabalhar três períodos
para ganhar um pouco mais. E com isso se perde o tempo necessário para a
preparação de uma boa aula.
Sd37: Para ter mais dinheiro e poder dar ao meu filho oportunidades que eu não
tive e que se eu continuar nessa não terei nunca.
Pretender levantar as causas e os efeitos dessa situação fugiria aos nossos
propósitos. O que nos importa aqui é observar que os professores trazem na sua
91
profissionalidade marcas de revoltas e de decepções que não podem ser ignoradas por nós.
Para corroborar essas reflexões, trazemos à baila uma outra seqüência discursiva que
responde ainda à questão sobre o que aborrece o professor.
Sd38: O abandono em que o professor se encontra dentro da instituição. Ele está
jogado à própria sorte. Se há algum problema em sala de aula ou mesmo
fora dela, o culpado é o professor. O discurso de cima é que o professor
que não tem competência não se estabelece. Tua incompetência se
espalhará por todos os lugares e você não terá mais emprego no futuro. E
diretores quando se reúnem é para falar da incompetência de seus
professores. Quais professores eles querem e quais eles não querem em
suas escolas.
Eis aí uma manifestação em que se podem perceber as várias vozes constitutivas.
Inicialmente, notemos que quem fala não diz estar falando de si mesmo, mas faz alusão à
categoria, a todos os professores, permitindo-nos perceber que a identidade do sujeito
resulta de um processo de identificação no qual o sujeito é interpelado ideologicamente,
através de sua inscrição em uma determinada formação discursiva. Não é, então, a voz
isolada e única do professor que repercute em Sd38; do interdiscurso, emergem as vozes de
muitos professores que se sentem jogados à própria sorte, abandonados. Mas quem
abandona? Quem joga o professor à própria sorte? O próprio locutor pontua: o discurso de
cima, que provém do poder hierarquizado no âmbito da escola (diretor, supervisor, etc). É
nesse pré-construído, no já-dito que recuperamos o outro que julga o professor, que o tem
como incompetente, sendo sua voz incorporada na teia discursiva sem que o sujeito tenha
consciência desse efeito ideológico.
Contudo, há um momento em que o locutor circunscreve o outro e, assim
procedendo, age como se o outro não estivesse em todo lugar; isto é, pela heterogeneidade
mostrada de seu discurso (AUTHIER-REVUZ, 1982), percebemos a voz do outro no
momento em que o professor, valendo-se do discurso direto, enuncia: Tua incompetência se
espalhará por todos os lugares e você não terá mais emprego no futuro. Ao abrir esse
espaço no discurso para o heterogêneo, o locutor o reconhece ao mesmo tempo em que
nega sua onipresença na constituição de todo o discurso.
Na demarcação dessa heterogeneidade discursiva, expõe-se um “tom” de ameaça,
posicionando o professor em um lugar de submissão. A ameaça contida nesse discurso vem
92
reforçar a imagem que estamos construindo do professor de língua portuguesa, qual seja, a
do professor desmotivado, desvalorizado e portador de um “mal-estar docente” (ESTEVE,
1995).
Há que se destacar um ponto que chamou nossa atenção com relação às
manifestações dos professores. Tanto os problemas relacionados aos alunos quanto aqueles
que se voltam mais especificamente para a conjuntura político-social, apontados pelos
professores como causas de maior aborrecimento no âmbito da escola, não dizem respeito
exclusivamente ao ensino da língua portuguesa. São problemas que atingem, supomos, o
sistema de ensino como um todo. Nenhum dissabor foi aventado com relação ao ensino da
língua; nenhum professor manifestou descontentamento quanto às novas diretrizes para o
ensino. O único caso que tem relação direta com o ensino da língua, foi o de um professor
que apresentou como fator de aborrecimento o fato de a biblioteca da escola possuir pouca
diversidade de livros para leitura: talvez aí haja uma ressonância das vozes veiculadas pelos
discursos de formadores mais recentes.
A pergunta que permanece por ora sem resposta é se a falta de interesse dos
alunos, colocada ao lado da indisciplina como a maior fonte de desgosto, advém (ou não)
de uma proposta monótona e enfadonha de ensino da língua, calcada nos moldes dos livros
didáticos. Voltaremos a essa questão oportunamente.
Esboçamos acima um quadro que, a rigor, é preocupante com relação à profissão
docente, porque se antes dissemos que não é de professor imbuído apenas de um “amor
paedagogicus” que o ensino da língua portuguesa necessita, tampouco é do oposto disso.
Com efeito, causou-nos em certa surpresa verificar que, apesar de todos esses
descontentamentos cujas razões são, no nosso entender, absolutamente procedentes, foram
poucos os professores que disseram que gostariam de mudar de profissão, apesar de tudo,
como muitos assinalaram. Vejamos, para elucidar, os números apresentados no gráfico a
seguir:
93
Gráfico 9: Interesse em mudar de profissão
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
Não mudariam de profissão
Mudariam de profissão
Não têm certeza
Analisado em seu conjunto, no grupo de professores de língua portuguesa,
convivem incertezas, frustrações, amparadas por uma certa dose de alienação e
conformismo. Não raro reincide, nas declarações desses professores, a imagem idealizada
do professor, sentindo-se um missionário que trabalha com dedicação e amor, acreditando
que sua missão é atuar (melhorar o mundo). Paralelamente emergem imagens de
professores descontentes, desvalorizados e, até mesmo, revoltados com o contexto sóciopolítico.
Posto isso, voltamos à pergunta: qual é, ou quais são, a(s) auto-imagem(ns) do
professor de língua portuguesa?
O quadro que se desenhou ao longo deste tópico sugere que, nos discursos dos
professores, sujeitos nesta pesquisa, vêm à tona vozes que nos permitem evidenciar
múltiplas imagens, apontando para a constituição heterogênea e, ao mesmo tempo,
paradoxal do sujeito-professor. Trata-se de um professor que se vê como herói, salvador
dos adolescentes, dedicado e, ao mesmo tempo, desmoralizado, desvalorizado e
desrespeitado e que, apesar disso, não deixa a profissão.
94
2.1.2. Imagem do professor sobre o ensino de língua portuguesa
Ao falarem de sua prática pedagógica, os professores assumem diferentes
posições-sujeito. Misturam-se em seus discursos vozes atravessadas por várias formações
discursivas que, no confronto e na contradição, deixam entrever uma imagem de professor
que de um lado incorporou a voz da lingüística moderna, defendendo que o ensino da
língua deve ser voltado para uma reflexão sobre o seu funcionamento; de outro, mas de
forma concomitante, reproduz o discurso pedagógico tradicional, supervalorizando, por
exemplo, o ensino da gramática e da norma culta.
É importante esclarecer que, embora se percebam essas duas formações
discursivas antagônicas em seus dizeres, elas não são blocos compactos, estanques,
separados, traçados de modo definitivo, como se de um lado houvesse o discurso
progressista e de outro, de maneira oposta, o discurso tradicional. Até porque, como
assevera Courtine (1982, apud BRANDÃO,1999):
O fechamento de um formação discursiva é fundamentalmente
instável, ela não consiste em um limite traçado de forma definitiva,
separando um exterior e um interior, mas se inscreve entre diversas
formações discursivas como um fronteira que se desloca em função
dos embates da luta ideológica.
Com efeito, as duas formações discursivas depreendidas nos discursos dos
professores são interligadas embora mantenham entre si uma relação polêmica no sentido
de que cada uma delas define sua própria identidade pela negação das unidades de sentido
construídas pela outra. Lara (2000) realizou um estudo sobre o espaço discursivo do ensino
da língua e, assim como ela, pudemos observar que, não raro, o discurso progressista e o
discurso tradicional convivem harmoniosamente, ou seja, eles se mesclam sem que a
presença de um implique necessariamente a rejeição ou a negação do outro.
Iniciemos apresentando uma seqüência na qual a professora entrevistada explica o
porquê de não haver, em seu colégio, uma linha teórico-metodológica única como
pressuposto para nortear o trabalho com a língua portuguesa. Segundo ela, as diferenças
entre os professores advêm...
95
Sd39: De uma série de coisas, eu acho. (...) formação porque muitos, e eu me
incluo nisso também, tivemos uma formação assim ... dentro daquela visão
bem tradicionalista, bem da gramática bem tradicional mesmo... nem todo
mundo conseguiu absorver essas idéias novas, essa passagem de como
trabalhar a Língua Portuguesa de modo mais prático, de uma maneira
mais utilitária para a vida do aluno. E aí, fica assim muito preso nessas
questões... não... eu aprendi assim, no meu tempo era melhor, hoje em dia
está tudo largado. Aí contribui muito para se pensar as questões das
políticas educacionais que as escolas tem, tem que acatar né? Sem
discussão nenhuma. Aí leva o professor a pensar: pra quê que eu vou ficar
quebrando cabeça, me dedicando, me impondo se daqui a pouco vem uma
mudança aí de estrutura e eu vou ter que abrir mão. Porque no final das
contas quem vai perder sou eu. E é aí que entra a questão da falta do
companheirismo, porque se a gente fosse unido a gente poderia fazer
frente a isso... mas como não é eu acho que é complicado. Agora eu,
pessoalmente, me vejo como uma pessoa tentando acertar. Tô sempre
buscando e acho que eu consigo muita coisa assim que vale a pena. Que
me mantém esperançosa ou otimista dentro da profissão, senão...
Encaixa-se aqui a reflexão que levantamos no início deste capítulo, quando
tratávamos do descompasso existente entre aqueles que falam interpelados pelo discurso
progressista da lingüística e aqueles que falam interpelados pelo discurso tradicional
(PAGLIARINI,1993). Desse descompasso surgem, nas falas dos professores, manifestações
de receios, inseguranças e desconfianças perante as mudanças dos conteúdos curriculares.
Nesse sentido, há uma passagem na Sd39 em que a professora deixa entrever a
desesperança dos professores em face das políticas educacionais brasileiras, mais
especificamente no trecho em que ela enuncia: as políticas que as escolas têm, têm que
acatar, sem discussão nenhuma. O efeito da memória discursiva atualiza aí o já-dito, ou
seja, as vozes de autoridade do governo enfatizam o tem que, o qual não surge por acaso no
discurso da professora.
A formação acadêmica que a professora da Sd39 diz possuir, assim como muitos
de seus colegas, é bem tradicionalista, bem da gramática, bem tradicional mesmo. O uso
reiterado do advérbio bem dá-nos a entender o quão defasada é a bagagem que a professora
adquiriu durante o período de formação inicial se ela for comparada com as atuais
exigências do ensino da língua. As verdades que lhe foram apresentadas eram outras; os
saberes adquiridos tornaram-se diante das perspectivas inovadoras, pseudo-saberes,
96
aparência, erro, ilusão, deformação, preconceito (PAGLIARINI, 1993). Salvam-se dessa
situação os professores que conseguiram absorver essas idéias novas, essa passagem de
como trabalhar a língua portuguesa de modo mais prático, de uma maneira mais utilitária
para a vida do aluno, ou seja, salva-se o professor que conseguiu engajar-se em uma
formação permanente, assimilando, pois, as profundas transformações que se produziram
no ensino da língua, adaptando o seu fazer pedagógico a novas exigências, aos novos
modelos.
Interessante salientar as diferentes vozes que habitam o discurso da Sd39,
reforçando, assim, a concepção de sujeito heterogêneo que guia nossa reflexão sobre a
identidade do professor de língua portuguesa. Quando a professora diz que nem todo mundo
conseguiu absorver essas idéias novas, há no não-dito desse enunciado um outro
anunciando que ela, a professora, absorveu, portanto não lhe cabem as críticas provenientes
do discurso progressista; também, quando a professora faz menção à formação tradicional,
recupera-se o discurso social-institucional que assevera que a universidade deve preparar
seus profissionais para se adaptarem aos modelos de ensino; a heterogeneidade mostrada
em não... eu aprendi assim, no meu tempo era melhor, hoje em dia está tudo largado
explicita o discurso do outro professor e estabelece, no fio do discurso, um rompimento
para deixar claro que quem diz aquilo não é a professora, mas os professores que não
absorveram as novas idéias e que fazem questão de reproduzir os tradicionais modelos
aprendidos durante a formação inicial.
Delegar a voz aos outros professores não ocorre porque o sujeito intencionalmente
passa a voz a quem deseja, como deseja em função de seus objetivos conscientes. Se todo
discurso é produto do interdiscurso, inscrito em uma dada formação discursiva, então é
lícito pensar que, na Sd39, são as imposições ligadas a esse lugar discursivo que regulam a
heterogeneidade mostrada na fala da professora. Nessa linha de raciocínio percebemos que,
em função de o sentido ser um efeito ideológico, a identidade do sujeito também resulta de
um processo de identificação no qual o sujeito é interpelado ideologicamente. Dessa forma
de constituição do sentido e de constituição do sujeito decorrem os esquecimentos
enunciativo e ideológico, ou seja, o sujeito tem a sensação de que o que é dito só pode ser
dito daquela forma; tem também a ilusão de ser fonte primeira de seu discurso. Em Sd39
temos o seguinte exemplo revelador disso: E é aí que entra a questão da falta do
97
companheirismo, porque se a gente fosse unido a gente poderia fazer frente a isso... mas
como não é eu acho que é complicado. Agora eu, pessoalmente, me vejo como uma pessoa
tentando acertar. Tô sempre buscando e acho que eu consigo muita coisa assim que vale a
pena.
Vejamos, de ora em diante, como os professores se manifestaram ao serem
suscitados a avaliar sua prática pedagógica em relação:
a) aos objetivos que, como professor de português, ele procura atingir;
b) à atividade (ou conteúdo) que desenvolve com mais prazer e mais à vontade;
c) à atividade (ou conteúdo) que considera difícil trabalhar com os alunos e a
forma como procura resolver esse problema.
Quanto aos objetivos que o professor estabelece para o seu trabalho, as
manifestações de nosso corpus indicam que a maioria absorveu as modernas orientações
para o ensino da língua. Não raro aparecem em seus dizeres termos, expressões derivadas
dos discursos da pragmática, da lingüística do texto e da lingüística aplicada. Vejamos
abaixo alguns exemplos. O objetivo do professor é, portanto,
Sd40: formar alunos com senso crítico, que saibam produzir textos e interpretálos.
Sd41: desenvolver a competência textual, tanto na leitura quanto na produção.
Sd42: levar os alunos a ver a língua portuguesa como uma disciplina
interessante, prática, para o dia a dia e aperfeiçoar o uso da língua, em
situações diversas.
Sd43: mostrar que o estudo da língua é dinâmico e interessante
Sd44: despertar o gosto e o prazer da leitura; ler e interpretar, indo do texto ao
contexto; analisar criticamente músicas, notícias, propagandas, etc...
comunicar-se com clareza; produzir textos coesos e coerentes.
Sd45: procuro trabalhar sempre com textos tendo cuidado para não usá-los como
pretexto
Se tomarmos os PCNLP como intertexto, percebemos a voz desse documento nos
discursos dos professores, pois todos eles, a exemplo do que sugerem os PCNLP, dizem ter
como objetivo principal o trabalho com o texto. Invariavelmente eles afirmam que buscam
98
formar alunos competentes tanto na leitura quanto na produção escrita. Partindo dessas
constatações, tem-se a impressão de que o ensino da língua está no caminho certo, tal como
querem aqueles que falam interpelados pelo discurso progressista.
Ao dar prioridade ao trabalho com o texto, no sentido de possibilitar ao aluno
condições para que ele possa se tornar sujeito do seu discurso, de forma apropriada às
diversas situações (Sd42) seja na produção de enunciados, seja na interpretação de
enunciados produzidos por outros, o professor nos leva a pensar que sua prática é
coerentemente orientada pela concepção interacionista de linguagem.
Com relação aos conteúdos que os professores desenvolvem com mais prazer e
mais à vontade, as manifestações apontaram, na sua grande maioria, para as práticas de
leitura e produção de textos, o que vem corroborar nossa primeira impressão, pois o
professor além de almejar os objetivos previstos pelos PCNLP, que se repetem, ecoam e
reverberam os e nos discursos dos formadores de professores, realiza seu trabalho com
prazer e à vontade, isto é, não tem problemas para levar a cabo seus objetivos.
Contudo, em inúmeros momentos de seus dizeres, vazam outros sentidos,
inscritos, então, em uma outra formação discursiva. Se antes vimos que eles enfatizam a
prática de leitura e de produção de texto como cerne do ensino, nesses outros momentos é o
ensino da linguagem gramaticalmente correta que aflora, em perfeita sintonia com a
pedagogia tradicional para o ensino da língua. Este é o caso da seguinte seqüência
discursiva.
Sd46: Priorizo o uso da língua culta, o bem falar e o bem escrever.
Esse foi o único caso em que o professor expressou claramente sua inscrição no
discurso tradicional. Os efeitos de sentido dos outros discursos foram apreendidos no nível
do interdiscurso, do semidesvelado. Ao falarem sobre as atividades que desenvolvem, foi
possível entrever em alguns trechos a forte presença da gramática dita tradicional durante
as aulas, contrariando, pois, o que asseveraram acima, já que sabemos que não é o ensino
da gramática que irá garantir a formação de leitores e produtores de textos competentes. A
gramática é, para esses professores, o conteúdo mais difícil de desenvolver. Nas seqüências
abaixo eles se pronunciam a respeito, explicando o que fazem para contornar o problema.
99
Sd47: Gramática: com fatos do dia a dia, textos interessantes, impressos: jornais
e revistas, vídeos como: Nossa Língua Portuguesa – Pasquale Cipro Neto.
Sd48: O mais difícil é trabalhar a gramática tradicional e o que faço é mostrar
situações de uso e situações que são só macetes para concurso ou
vestibular
Sd49: gramática em geral: criando e desenvolvendo situações dentro da
realidade do aluno, levando-o a conscientização do valor da língua
portuguesa, do falar, ler e escrever bem.
Sd50: A gramática é a maior dificuldade, mas procuro sempre evidenciá-la nos
textos e convencer o aluno da necessidade de aprendê-la.
Sd51: As dificuldades referem-se à sistematização gramatical, quando os alunos
não se interessam. Procuro conduzir de modo a despertar o interesse pela
necessidade de utilizarmos a norma culta.
Sd52: Acho difícil trabalhar com os alunos a análise dos períodos compostos por
coordenação e subordinação.
Sd53: Análise sintática: procuro trabalhar lentamente, “recheando” de outros
exemplos e citações; procurando, afinal, fazer a análise sintática da
lingüística; os livros didáticos trazem análise sintática e procuro
trabalhar pelo menos um pouco para que os alunos e os pais sintam que
tenho opções e não deficiências.
A gramática é considerada nessas seqüências discursivas o conteúdo mais difícil
de trabalhar com o aluno, do que se pressupõe que ela é ensinada. Até aqui não há nada que
contradiga os objetivos apresentados pelos professores. Mas ao prestarmos atenção em
alguns elementos de seus discursos, ficamos convencidos de que a prática do ensino
tradicional continua forte nos contextos escolares. Atentemos, por exemplo, para a
referência dada ao prof Pasquale Cipro Neto na Sd47, um nome de destaque na atualidade
quando o assunto é a arte de bem falar e bem escrever a língua portuguesa, nos moldes da
mais arraigada tradição; a alegação da Sd48 da qual se subentende que os alunos precisam
aprender a gramática para poderem passar em concursos e/ou vestibulares, fazendo eco,
portanto, a um conceito cristalizado no imaginário social; a supervalorização da norma
culta fica evidente nas Sds49, 50 e51. Além disso, a preocupação com o estudo da análise
sintática é nítida nas Sds52 e 53, o que é um outro indicador da ênfase dada à gramática
tradicional nas escolas.
100
A propósito da Sd53, vale lembrar que toda formação discursiva é heterogênea
porque se relaciona com outros sentidos exteriores a ela, provenientes de outras regiões.
Entretanto, os sentidos podem deslocar-se de uma região a outra, de forma que faz parte das
condições de produção do sentido a circulação pelas diferentes formações discursivas. Na
Sd53, o locutor enuncia valendo-se de variações de sentidos de enunciados provenientes de
outras formações discursivas.
Ainda que esses dados não fossem suficientes para constatarmos que no discurso
dos professores vazam sentidos que evidenciam uma prática tradicional do ensino da
língua, contradizendo, portanto, a concepção de linguagem como interação, sustentada
anteriormente, uma rápida incursão na sala de aula não nos deixa nenhuma dúvida.
Com o intuito de esclarecer que a concepção que o professor de português tem da
língua é, ainda, marcada pela tradição gramatical, observemos um fragmento de uma aula
realizada em uma 5ª série do ensino fundamental. Nesse fragmento, o professor recupera
junto com os alunos, o conteúdo da prova de gramática.
(...)
P26: Avaliação quinta-feira. Porque nós temos duas aulas. Vai cair na avaliação,
então: letras ... e estudamos o quê junto com letras?
A27: Fonemas
P: Fonemas. Com as sílabas, estudamos o quê? Sílabas tônicas e ...?
A: Átonas
P: Isso... sílabas tônicas e sílabas átonas. E estudamos também número de ...?
número de ...? Sílabas. Isso. Quando uma sílaba ... quando uma palavra tem uma
só sílaba, o que ela é?
A: Monossílaba
P: Monossílaba. E a monossílaba quando é forte, a palavrinha quando nós dizemos
com força, ela é o quê? Tônica ou átona.
A: Tônica
P: E quando nós dizemos bem fraca, ela é ...?
A: Átona
P: Então. Vejam bem.. número de sílabas as monossílabas tônicas e átonas. Quando
a palavrinha tem duas sílabas, o que ela é?
A: Não sei ...
P: Ah!
A: Dissílaba
P: Não entendi
A: dissílaba
P: Dissílabas. Quando ela tem três ...?
26 P significa professor
27 A significa aluno
101
A: Trissílabas
P: E quando ela tem mais de três.
A: Polissílabas.
P: O que que poli quer dizer?
A: Mais que quatro.
P: Poli quer dizer ? ... muitas, né? Poli quer dizer muitas.
P: Não precisa ser exatamente quatro. Ela pode ter mais que quatro. Então vejam ...
a avaliação vai ser bem fácil, não vai?
A: Vai.
P: Vai. É bem fácil nós vamos ter (inaudível)
P: Não, não vai ter nem oxítona, nem paroxítona e nem proparoxítona. Não vai ter a
ordem de acentuação. Vai ter só o número de sílaba.
P: Prontinho?
P: Teremos duas provas na quinta feira: uma de interpretação de textos, que é
moleza, vocês sabem disso. E a outra é de gramática, porque tem duas aulas. Tá
bom? Então vamos lá.
Nessa aula, o professor se preocupa em organizar uma lista dos pontos gramaticais
que serão cobrados na prova. O próprio fato de se realizar prova nesses moldes já é um
indicador da prática tradicional do professor. Mas o que nos interessa observar é o conteúdo
priorizado: tipos de sílaba. Vale perguntar: qual a razão de se ensinar para uma criança de
5ª série esse conteúdo, notadamente se considerarmos o texto como sendo o centro do
ensino da língua portuguesa, tal como é propagado pelos PCNLP e reafirmado nos
discursos dos professores?
O que é possível perceber nessa aula é que a concepção de língua e de linguagem
que está subjacente ao trabalho pedagógico do professor pouco (ou nada) tem a ver com
aquele discurso sobre trabalhar a gramática no texto (Sd50), ou criar e desenvolver
situações dentro da realidade do aluno; tampouco tem consonância com os principais
objetivos aventados pelos professores com relação ao ensino da língua, uma vez que
conhecer o número de sílabas das palavras não contribui, efetivamente, para o
desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos.
Interpelados pelo discurso progressista, somos incitados a observar que o
professor em questão parece ignorar o fato de que a língua é dinâmica porque resulta de um
trabalho coletivo e histórico; também parece desconhecer o caráter dialógico da linguagem
e que, por isso, é constituída no próprio processo de interlocução. Em suma, esse professor
não absorveu as atuais propostas interacionistas, já que a idéia tradicional de que para a
aprender a língua é necessário apropriar-se da teoria gramatical, com toda a sua inusitada
102
nomenclatura (monossílabo, dissílabo...), está bastante clara na sua prática pedagógica.
Entretanto, a exemplo dos demais professores, esse também busca formar alunos
competentes na leitura e na produção de textos.
Daí a imagem do professor desorientado e, ao mesmo tempo, frustrado.
Entendemos que, por conta dessas mudanças que exigem do professor um redirecionamento
de sua prática docente, exigindo-lhe que rejeite suas antigas verdades e se transforme em
um de nós (PAGLIARINI, 1993), o sujeito-professor passa a ser habitado por uma
enormidade de incertezas e inseguranças, tornando-se, no nosso entendimento, “presa fácil”
do livro didático.
Diante de tudo o que discutimos até aqui, temos a acrescentar que a chave do malestar
docente não está somente na desvalorização do trabalho do professor. Está também no
desajustamento entre o que se exige desse professor e as condições reais de seu trabalho na
sala de aula, desajustamento esse que o abriga, muitas vezes, a uma atuação medíocre, pela
qual acaba sempre por ser considerado único responsável (ESTEVE, 1995).
E é esse ponto especificamente que chama nossa atenção. Essa imagem de
professor debilitado não passa despercebida aos autores de livros didáticos. Ora, se um dos
condicionantes do discurso é a antecipação que o locutor faz do seu interlocutor
(ORLANDI, 2000), não é de se estranhar que a imagem do professor de português,
construída nesse mosaico de significações conflitantes, vá repercutir nos livros didáticos. É
sobre isso que trataremos no item 2.2, mais à frente.
2.1.3. Imagem do professor sobre o livro didático
Embora o livro didático tenha sido alvo de duros ataques nos últimos anos –
houve quem propusesse sua extinção28 - os professores pronunciaram-se favoravelmente
com relação a seu uso nas aulas de língua portuguesa. Isso vem ao encontro do que já
afirmamos: não se pode negar que o livro didático desempenha um papel bastante
importante no contexto escolar, onde certamente permanecerá por muito tempo.
Já na introdução de nosso trabalho adiantávamos que o livro didático deixou de
ser um material de ajuda para o professor, transformando-se, na maioria das vezes, no único
28 Segundo reportagem publicada na Revista Nova Escola, março 2001.
103
recurso disponível. Com outras palavras, admitimos que o livro não se configura mais
como um meio para que o professor possa atingir os seus objetivos, pois sabemos que o
professor transformou esse meio em um fim, o que contribui, no nosso entender, para a
manutenção do mal estar docente.
Perguntamos inicialmente aos professores se eles utilizam livro didático em suas
aulas. O resultado abaixo não nos surpreendeu:
Gráfico 10: Uso de livro didático nas aulas de língua portuguesa29
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
Sim
Não
Merecem destaque os depoimentos abaixo que evidenciam o porquê de alguns
professores não utilizarem o livro didático:
Sd54: o livro didático não condiz com a realidade do aluno; cada aluno se
encontra em um nível. Os textos são extensos de difícil entendimento,
muitos exercícios gramaticais, quase nada sobre produção de texto e
incentivo à leitura.
Sd55: porque prefiro preparar minhas aulas selecionando os conteúdos de fontes
diversas, escolhendo os autores que fazem melhores abordagens,
escolhendo textos interessantes e atualizados e que vai de encontro aos
interesses do aluno.
Sd56: é descontextualizado da realidade dos alunos; poda a criatividade das
aulas; é uma tentação ao comodismo; quando sei que há um livro didático
com tudo pronto, sossego, pois não é necessário preparar a aula.
29 Houve 3 casos em que os professores disseram que tomam como material de apoio didático as apostilas.
Embora haja especificidades que diferem a apostila do livro didático, conforme estudo de Carmagnani (1999),
para o contexto desta pesquisa, tais diferenças não são relevantes, o que nos autoriza a considerar o uso de
apostilas como opção sim no gráfico em destaque.
104
Os professores enunciadores das seqüências acima afirmam dispensar o livro
didático de suas aulas. Seus dizeres apontam para uma posição de sujeito autônomo, capaz
de decidir o quê e o como ensinar. Notemos que o sujeito julga ser alguém que exerce
controle sobre si mesmo e sobre os outros, dando-nos a entender que possui plena
consciência do seu fazer, do seu pensar, do seu dizer, e – por que não? – do seu ser
(CORACINI, 1999). Entretanto, o sujeito, segundo nossa perspectiva teórica, é cindido,
clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente (AUTHIER-REVUZ, 1982) e se nele
há essa sensação de controle, trata-se da “ilusão do eu”, graças à qual é possível reconstruir,
no imaginário do sujeito descentrado, a imagem do sujeito autônomo que se vê como fonte
única de seu discurso. Há vários exemplos disso nas seqüências acima: porque prefiro
preparar minhas aulas (Sd55); quando sei que há um livro didático (Sd56).
Embora os demais professores afirmem valer-se do livro didático em suas aulas,
permanece em seus depoimentos a noção de professor-controlador (consciente). Vejamos
suas opiniões a respeito do uso do livro didático:
Sd57: Tem papel importante porque o professor não vence passar tudo no
quadro. E trazer xerox custa caro para o professor. Mas eu não uso o
livro didático sempre. Ele é apenas um apoio.
Sd58: É um material de apoio, onde para muitos alunos é ainda o único livro ou
recurso que têm para leitura e assim pode despertar para a leitura e a
pesquisa.
Sd59: Serve de apoio; ser um dos meios a serem usados para praticar leitura,
oralidade e interpretação e não um fim em si mesmo.
Sd60: Auxiliar a título de tarefas, leitura de textos, manuseio de material pelo
aluno, desenvolvendo sua responsabilidade, seus cuidados e também
sugerindo leituras e atividades diversificadas.
Sd61: Apenas auxiliar em algumas atividades como apoio.
Sd62: É um material de apoio. Não é necessário ser seguido à risca e precisa ser
complementado com enfoques aos acontecimentos do momento, discussões
sobre os episódios do dia-a-dia.
Sd63: Essencial. Ele garante um direcionamento, uma lógica de pensamento.
105
Com exceção da Sd63 que admite que o livro didático é essencial para o
desenvolvimento das atividades pedagógicas, já que ele garante um direcionamento, uma
lógica de pensamento, todas as outras seqüências demonstram que os professores negam
que o livro didático seja um elemento determinante, um fio condutor da sua prática
pedagógica. Reconhecem sua importância argumentando, por exemplo, que para muitos
alunos é o único livro ou recurso que têm para a leitura (Sd58). Contudo, eles o
consideram apenas como um apoio, um recurso didático a mais, um auxiliar em algumas
atividades (Sd61) de suas aulas. Daí a possibilidade de concluirmos que, para esses
professores, o livro é visto apenas como um meio para atingir os objetivos do ensino da
língua portuguesa, e não como um fim em si mesmo (Sd56), tal como orientam os inúmeros
trabalhos de investigação científica que tratam dessa questão.
Há, nas seqüências discursivas acima, momentos em que se percebe que o
professor se vê como imprescindível enquanto agente mediador do ensino da língua
materna. Ao dizer, por exemplo: Mas eu não uso o livro didático sempre. Ele é apenas um
apoio, percebemos que o funcionamento discursivo de apenas e mas nega, “refuta”
(MAINGUENEAU, 1993, p.81) o pressuposto de que o livro didático é uma autoridade, um
detentor de verdades e saberes. No fio desse discurso, percebemos as vozes do outro (dos
especialistas, dos outros professores) que condenam o professor pelo uso que
tradicionalmente faz do livro didático sempre, na transmissão de todo e qualquer
conhecimento. No intuito de se mostrarem teoricamente atualizados, os professores
asseveram assumir o papel de sujeito dentro da sala de aula, negando-se a ser meros
executores das aulas que os outros prepararam, negando, ainda, a premissa de que o livro
didático constitui o centro do processo de ensino-aprendizagem.
Queremos, nesse ponto, trazer à baila uma reflexão acerca do problema que se
instaura na sala de aula quando, muitas vezes, o professor “decide” o que fazer,
dispensando as sugestões do livro didático. Para tanto, descrevemos abaixo uma proposta
de atividade de interpretação de texto, realizada por um dos professores que participaram
desta pesquisa. Trata-se de uma aula cujo objetivo centra-se na compreensão e na
interpretação de uma crônica de José Simão intitulada “Peruada do Apagão”, por uma
turma de alunos do terceiro ano do ensino médio. Vale dizer que o trabalho foi
106
desencadeado por nossa sugestão, pois interessava-nos saber se, na prática, o professor
dava conta de organizar uma aula desacorrentando-se do livro didático.
A crônica de José Simão, "Peruada do Apagão", foi publicada no jornal Folha de
S. Paulo em 20 junho de 2001, e coloca em destaque o contexto sócio-político do Brasil
naquele momento. O critério para a escolha desse texto foi exclusivamente temático, ou
seja, escolhemos o texto de Simão porque julgamos que o tema Apagão poderia despertar
na professora e nos alunos um certo interesse pela leitura, já que ele era bastante atual e
polêmico. Além disso, se o enfoque que Simão deu ao tema fosse comparado com outras
diferentes abordagens sobre o Apagão, o trabalho com o texto poderia, a rigor,
proporcionar discussões e debates que, a nosso ver, contribuiriam para que os alunos
desenvolvessem uma posição mais crítica sobre tal fenômeno. Eis abaixo o texto sugerido:
Peruada do Apagão
Proibido lavar calcinha no chuveiro!
Buemba! Buemba!
(José Simão)
Macaco Apagão Simão Urgente! Direto do FHnistão!
Hoje só vou falar bobagem pra não gastar energia!
Hoje acordei rodeado de inimigos: chuveiro, micro, TV, geladeira.
Toda aquela tralha do Plano Real que me obrigaram a comprar.
Agora somos culpados.
Como disse um amigo meu:
"Dormi inocente e acordei culpado!".
E ainda recebi a cartinha da Eletropaulo, com a minha cota de consumo, à noite.
Aí acendi a luz pra ler a carta e gastei 30 watts!
Pior aquele meu leitor que recebeu sua cota de consumo: nove watts!
Não dá nem pra riscar um fósforo. Não dá nem pra acender a vela.
E um outro leitor me mandou uma idéia magnífica: racionar em 20% o mandato do FHC.
E, se ele quisesse continuar, teria que pagar sobretaxa de 200%. Pra cada um!
Tá todo mundo louco! Oba! Tá todo mundo louco! Oba!
Um mineiro inventou uma máquina de lavar calcinha.
Pra mulher não lavar calcinha no chuveiro.
Deve ser uma coqueteleira.
Você pega a coqueteleira, bota a calcinha dentro, chacoalha, chacoalha e a água você ainda
aproveita pra passar o café.
"Café com Aroma de Mulher", novela colombiana!
E um outro inventou um cinturão elétrico tipo Professor Pardal (olha um novo apelido pro
FHC, Lampadinha).
Diz que o cinturão pega a energia do corpo e dá até pra carregar o celular.
Aí você vai carregar o celular e morre eletrocutado.
Ótimo!
Um a menos pra consumir energia.
E como disse a minha empregada:
"Chego em casa, acendo uma vela, frito um ovo e vou dormir".
107
Pior aquele amigo meu que comprou um freezer nas Casas Bahia em 12 vezes.
Aí ele teve que desligar o freezer, e ainda faltam oito parcelas.
Manda o carnê praquela praga de urubu chamada FHC que a imprensa insistiu em chamar
de estadista!
E aí aconselham a desligar a secretária eletrônica quando você estiver em casa.
Aí você atende e é o cara das Casas Bahia cobrando o carnê do freezer desligado!
Ô, vida ingrata. Voy a mi matar. PUM! PUM! PUM!
Esse apagão já virou um pastelão!
A Volta dos Trapagões!
Só no Brasil que banco 24 horas só funciona 16 horas!
E o FHC não se compara ao Rei Sol?
Aquele que disse: "Après moi, le déluge" ("Depois de mim, o dilúvio").
E ontem eu assisti ao Grande Painho ACM no Boris e cheguei à conclusão que ele é como
aquele comercial americano: "Old Chevy never dies". (O velho Chevrolet nunca morre!)
Rarará!
Nóis sofre, mas nóis goza.
Hoje só amanhã. Vai indo que eu não vou.
Vou. Pingar três watts do meu colírio alucinógeno.
MICROONDAS É COISA DA OPOSIÇÃO!
Com a finalidade de trabalhar a interpretação desse texto, a professora adotou o
seguinte procedimento metodológico. Inicialmente fez uma leitura em voz alta do texto e,
na seqüência, teceu alguns comentários a respeito do tema tratado por Simão levantando
oralmente as seguintes questões: De que trata esse texto?, Vocês gostaram, Vocês
concordam com o autor? Após ter discutido o assunto com os alunos, ela propôs, por
escrito, cinco perguntas para verificar se os alunos haviam entendido o texto. São estas as
perguntas:
1) Comente a postura do autor com relação ao racionamento de energia.
2) Transcreva frases do texto que demonstrem tal postura.
3) Qual sua opinião sobre a relação sociedade x poder político?
4) Os seres humanos são desiguais, mas para chegarmos à unidade cada um
tem que contribuir com sua porção. Qual a sua opinião a respeito?
5) O texto sugere que o poder político subestima nossa inteligência?
Atentando-nos para a proposta da aula, percebemos que a seqüência de
procedimentos adotada foi: (i) apresentação de um texto escrito aos alunos, mediante a
leitura em voz alta, feita pelo professor; (ii) análise do texto, através de perguntas fechadas,
do tipo quem, o quê, como, onde, quando, por quê, feitas pelo professor e respondidas pelos
108
alunos. Não é difícil constatar que a professora utilizou o mesmo modelo de perguntas
comumente apresentadas nos livros didáticos.
Outra observação a esse respeito é que os manuais didáticos raramente orientam o
professor sobre a importância de atualizar, antes da leitura propriamente dita, o
conhecimento prévio do aluno, isto é, seu conhecimento lingüístico, textual e de mundo
(KLEIMAN, 2000, p.13). Vale lembrar que o aluno somente terá condições de rastrear as
possíveis significações materializadas no texto se ele estiver a par do que trata o texto.
Com efeito, para ler o texto de Simão, entendendo-se aqui o ato de ler, junto com
Geraldi (1997), como um processo que possui caráter dialógico e que, portanto, vai além do
texto e começa antes dele, os alunos precisariam saber o que é o Apagão e, indo mais além,
eles precisariam saber quais medidas estavam sendo impostas pelo governo, em alguns
estados brasileiros, com relação ao racionamento de energia. Dessa forma, talvez os alunos
conseguissem interagir com o texto, situando-o no contexto histórico-político do Brasil.
Contudo, a exemplo do que acontece com o livro didático, a professora não prestou atenção
na importância de contextualizar os alunos antes da leitura da crônica.
Mesmo depois da leitura em voz alta, seguida das perguntas orais apresentadas
acima, a professora não inseriu esse debate em um contexto mais amplo, tampouco
explorou o texto de forma a promover a reconstrução dos sentidos. Isso também é algo que
acontece nos livros didáticos, quer dizer, em geral esses livros não conduzem o trabalho de
leitura de forma a levar professor e aluno a realizarem uma abordagem mais reflexiva e
crítica do texto sugerido.
A prática de propor questões para avaliar a compreensão de um texto escrito é,
também, embasada no modelo do livro didático. Neste, inevitavelmente, há primeiro o texto
e, na seqüência, uma série de perguntas de interpretação. Estudos como o de Coracini
(1995) têm mostrado que as propostas de interpretação de textos, presentes em muitos
livros didáticos, parecem agir movidas pela busca de homogeneidade e de eliminação de
qualquer conflito proveniente de interpretações diferentes, ou vontades divergentes. Ou
seja, o livro didático seleciona o texto, analisa-o, propõe, através de perguntas e respostas, a
sua interpretação.
Embora o texto da aula em questão tenha sido selecionado por nós, acreditávamos
que o professor pudesse se 'libertar' do modelo do livro didático e propor, por ele mesmo,
109
uma estratégia de abordagem do texto que desse condições para os alunos se colocarem
como sujeitos nessa interlocução, desafiando-os e estimulando-os na sua capacidade de
reflexão. Contudo, não foi isso o que se sucedeu na aula de que estamos tratando, pois a
professora simplesmente reproduziu o modelo didatizado.
Quantos às questões propostas, observamos que elas apresentam problemas na sua
elaboração, o que vem ao encontro daquilo que dizíamos anteriormente, isto é, ao propor
por sua conta e risco um trabalho de leitura, o professor não dá conta de desenvolver o tema
de forma a dar ao aluno a oportunidade de depreender e discutir as idéias do texto.
Ao atentarmos para a primeira questão, por exemplo, notamos que ela somente
poderia ser respondida se os alunos confrontassem as idéias de Simão com suas vivências e
experiências para, então, poderem chegar a um posicionamento diante da discussão, o que
levaria o aluno a construir um outro texto, o texto próprio do leitor (Geraldi, 1997).
Entretanto, o que pudemos observar é que os alunos se limitaram a dizer que o autor faz
uma crítica ao atual governo do FHC. Não houve um único caso em que o aluno tivesse
discutido o assunto, comentando a postura do autor com relação ao racionamento de
energia.
Na segunda questão, em que se solicita Transcreva frases do texto que
demonstrem tal postura, a maioria dos alunos destacou o seguinte trecho: Você pega a
coqueteleira, bota a calcinha dentro, chacoalha, chacoalha e a água você ainda aproveita
pra passar o café. 'Café com Aroma de Mulher', novela colombiana!." Podemos entrever
duas razões para o fato de os alunos terem escolhido essa passagem. Primeiro, o autor
anuncia, no início do texto, que é "Proibido lavar calcinha no chuveiro!". Isso causa um
certo impacto de leitura, o que leva o leitor a buscar explicações para essa asserção que,
aparentemente, não tem fundamento. Tal explicação se dá, justamente, no excerto
destacado pelos alunos. A outra razão, provavelmente, tenha sido o humor que está à vista
nesse trecho, pois nele, por si só, não há nada que esclareça a postura do autor. Esse trecho
permite interpretações ambíguas, já que "Café Com Aroma de Mulher" era o nome de uma
novela da televisão latino-americana à qual é imputado o adjetivo colombiana para causar
um efeito de ironia, chacota. No texto, a expressão assume uma outra significação, e é
justamente essa outra significação que provoca o riso e desperta nos alunos o interesse. Só
110
que não passa disso. A leitura continua sendo réplica de modelo de aula proposto por
muitos livros didáticos.
A terceira questão, Qual sua opinião sobre a relação sociedade x poder político, a
rigor, não remete o leitor ao texto do Simão. Para respondê-la, o aluno deveria fazer uma
análise sócio-política da realidade brasileira, mas, para isso, ele precisaria ter elementos que
pudessem subsidiar essa análise. Discorrer sobre a relação entre sociedade x poder político
e, além disso, dar uma opinião a respeito é certamente uma tarefa que exige muita
discussão e muito debate. Até porque, se tomado apenas o texto do Simão, os alunos têm
uma visão única, uma opinião única.
A quarta questão, Os seres humanos são desiguais, mas para chegarmos à
unidade cada um tem que contribuir com sua porção. Qual a sua opinião a respeito?, pode
ser considerada inadequada à situação. Ao julgarmos essa questão como inadequada,
estamos nos baseando na pesquisa realizada por Menegassi (1999) junto a 47 professores
dos ensinos fundamental e médio, a qual constatou que a maioria absoluta das perguntas
elaboradas pelo professor, com o objetivo de avaliar a compreensão da leitura de um texto,
segue os padrões dos livros didáticos, e um número bastante representativo dessas
perguntas apresenta-se inadequado, pois ora as perguntas não condizem com a temática do
texto, ora são incoerentes com os objetivos propostos. De fato, a questão quatro de nossa
análise não condiz nem com o texto propriamente dito, nem com o objetivo da atividade
proposta pela professora já que se buscava uma forma de promover uma leitura reflexiva do
texto.
A quinta, e última, questão, O texto sugere que o poder político subestima nossa
inteligência, direciona a interpretação dos alunos. Menegassi (op.cit.) explica que, ao
formularem perguntas, os professores, muitas vezes, induzem os alunos a fazerem a mesma
leitura que ele fez do texto, ou seja, o professor acaba conduzindo a turma a interpretar de
acordo com a versão que ele deu aos fatos. A nossa quinta questão é um claro exemplo
disso, pois para a professora o texto de fato sugere que o poder público subestima a nossa
inteligência.
Diante da análise dessa aula e das manifestações dos professores que mostram que
eles se vêem como sujeitos autônomos, capazes de por si só conduzirem o ensino da língua
e de gerarem a aprendizagem, somos levados a concordar com Coracini (1999). Essa
111
autora, analisando o fato de que muitos professores preferem dispensar o livro didático de
suas aulas, postula que eles acabam tomando dois caminhos: no primeiro, servem-se de
vários livros e procuram neles o que interessa (é o caso da Sd55); no segundo eles
“constroem” seu próprio material pedagógico. Segundo a autora acima mencionada:
No primeiro caso, o resultado é um mosaico (ou melhor, uma
colcha de retalhos, sem planejamento algum, constituída) de
atividades, exercícios e exemplos que só não são mais deformados
porque não variam tanto assim de livro para livro (...). No segundo,
os professores, já tendo passado por um ou mais “cursos de
atualização” se vêem incentivados a usarem textos extraídos de
revistas e jornais e a “criarem” as perguntas de compreensão ou os
exercícios. (op.cit. p. 24).
Nossos dados apontam para essa mesma situação, pois ao propor uma atividade
desvinculada do livro didático, a professora que, ilusoriamente, se dizia controlar o quê e o
como ensinar, deixou transparecer uma total falta de domínio teórico-metodológico para
levar a cabo uma leitura eficiente da crônica de Simão. Além disso, a prática
operacionalizada demonstrou que embora ela não estivesse consultando um livro didático
específico, o modelo da abordagem (tipo de perguntas, por exemplo) é calcado no modelo
do livro didático, do que se conclui que este está, de certo modo, “internalizado” no
professor (op.cit). Ou seja, não se trata exatamente de usar ou de não usar o livro didático,
tampouco se esses são bem ou mal elaborados, pois o que se torna preocupante a partir das
nossas análises é que a organização do livro, bem como seus princípios, estão incorporados
pelos professores.
Esses últimos, por sua vez, não se dão conta de que embora dizendo não aceitarem
o livro didático como voz soberana e única na sala, inconscientemente, reproduzem o que
os livros determinam. Desse relacionamento, no mínimo conflituoso, entre professor-livro
didático, muitos são os sentidos que vazam no momento de se pensar a constituição da
identidade do docente.
112
2.2. Imagem do livro didático sobre o professor
Temos enfatizado em vários momentos que as vozes que constituem os livros
didáticos constituem também, e inevitavelmente, as vozes dos professores. O que nos
autoriza a afirmar isso é a concepção de heterogeneidade do sujeito e de seu discurso, em
cuja premissa básica encontramos a tese de que a construção da identidade do sujeito passa
necessariamente pela relação com o outro, uma vez que todo sujeito se faz como ser
diferenciado no outro. Ou seja, a alteridade, nessa perspectiva, é fundamental para que o
sujeito possa ter sua identidade, ainda que essa nunca seja fixa, já que, como ensina Orlandi
(1998, p.204), “a identidade é um movimento da história”.
Cabe aqui uma rápida digressão para ilustrar a idéia segundo a qual nossas
identidades são construídas através de nossa prática discursiva com o outro; prática
discursiva porque “as pessoas têm suas identidades construídas de acordo com o modo
através do qual se vinculam a um discurso – no seu próprio e nos discursos dos outros”
(SHOTTER & GERGEN, 1989, apud LOPES, 1998, p.306). Eis a digressão: é bastante
interessante atentarmos para o fato de que a primeira vez que o homem se viu de verdade
foi quando alguém o retratou – numa escultura, num quadro, numa foto. Mesmo no espelho
mais translúcido, a imagem que cada um de nós tem de si mesmo é uma imagem invertida
(RIOS, 1995). Fica evidente, assim, que quem nos diz como somos é o outro, uma vez que
o “eu” se descobre através desse outro olhar.
No processo de construção da identidade, em que a alteridade é crucial, não há
dúvidas de que, no caso do professor de língua portuguesa, sua identidade esteja
determinada pelas práticas discursivas que envolvem a ação docente, especialmente aquelas
resultantes do livro didático. O outro, portanto, de que trataremos nesta seção, é o discurso
do autor do livro didático. Concentraremos nossa atenção, doravante, nos três manuais que
compõem parte de nosso corpus de análise, com o intuito de apreender marcas na
materialidade discursiva (no texto) que deixam vazar a concepção de professor ali presente.
Os enunciados que nos interessam são os que visam subsidiar/guiar a ação docente,
inscritos, por exemplo, nas cartas de apresentação da obra, nas orientações didáticopedagógicas
e nas respostas dadas aos exercícios; todos eles contidos exclusivamente no
manual do professor.
113
A análise desses enunciados requer algumas considerações iniciais acerca de suas
condições de produção. Primeiramente, perguntamos: a que se destina o manual do
professor?
O PNLD-2002, segundo o Ministério da Educação (2002), avaliou tal manual
tendo em conta as seguintes orientações:
Considera-se fundamental que o livro didático venha acompanhado
de orientações ao professor, que explicitem os pressupostos
teóricos, os quais, por sua vez, deverão ser coerentes com a
apresentação dos conteúdos e as atividades propostas no livro do
aluno.
O livro do professor não deve ser cópia do livro do aluno com os
exercícios resolvidos. É necessário que ofereça orientação teórica,
informações adicionais ao livro do aluno, bibliografia e sugestões
de leituras que contribuam para a formação e atualização do
professor. É importante que oriente o professor para a articulação
dos conteúdos do livro entre si e com outras áreas do
conhecimento, trazendo, ainda, proposta e discussão sobre a
avaliação da aprendizagem. É desejável, também, que apresente
sugestões de atividades e de leituras para os alunos. (op.cit, p.28)
Esse manual deveria ser, conforme estabelece a comissão de avaliação do PNLD-
2002, uma poderosa ferramenta de contínua formação pedagógica. Gerard & Roegiers
(1998, apud Marcuschi, 2002) corroboram essa idéia, argumentando que “os manuais
escolares (...) preenchem essencialmente, em relação aos professores, funções de formação:
o objetivo é o de contribuírem com instrumentos que permitam aos professores um melhor
desempenho do seu papel profissional no processo de ensino-aprendizagem” (op.cit, p.141).
Tais funções, ainda segundo esses autores, englobam: informação científica e geral;
formação pedagógica; ajuda nas aprendizagens e na gestão das aulas; ajuda na avaliação.
Um livro didático – manual do professor que atendesse a essas premissas, traria sempre
embutida uma capacitação para o professor, sem se limitar a dar as respostas dos
exercícios; indicaria outros materiais com os quais cada aula, unidade ou atividade
poderiam ser enriquecidas; sugeriria atividades para além das que estão no exemplar do
aluno. Em suma, o manual do professor tornar-se-ia um valioso instrumento didático, à
medida que responderia a necessidades reais do ensino.
Entretanto, podemos facilmente observar que esse instrumento tem sido
negligenciado por seus autores. Há volumes que parecem ignorar a figura do professor,
114
dirigindo-se exclusivamente ao aluno, como é o caso, por exemplo, do Livro 1 – Entre
Palavras. Mesmo em estudos científicos que tratam especificamente ou
predominantemente da questão do livro didático, notamos que ele recebe pouca ou
nenhuma atenção, ainda que todos concordem que o manual deveria deixar de ser um
apêndice para virar o material principal. Ora, se o livro didático costuma ser, quase que
exclusivamente, a principal fonte de material didático utilizado nas escolas, um manual do
professor bem elaborado, que não fosse meramente uma cópia do livro do aluno, com as
respostas preenchidas, poderia de fato fornecer subsídios constantes para a atualização e
formação continuada do professor. Nesse sentido, Marcuschi (2002) orienta que, se o livro
didático-manual do professor tem por objetivo contribuir para que o professor consiga
desenvolver um esforço permanente de transformação do seu horizonte de referência,
preenchendo, desse modo, funções de ajuda ao professor no que diz respeito ao seu fazer
pedagógico concreto, ele deve trazer respostas a um conjunto importante de perguntas, tais
como: a) Que fundamentos teórico-metodológicos embasam a proposta do livro didático?
Que noções de língua, texto, conhecimentos lingüísticos subjazem ao ensino aprendizagem
pretendido? Tais perguntas são, geralmente, respondidas no que se costuma denominar
carta de apresentação da obra.
Assim, passemos a analisar tais cartas, perseguindo as posições que o professor
ocupa em sua relação com o livro didático, bem como as imagens que esses dizeres deixam
entrever.
2.2.1 As cartas de apresentação.
Referimo-nos, aqui, às cartas de apresentação da obra didática que visam esclarecer
o professor acerca das propostas e dos princípios de organização do material. Muitas dessas
cartas também explicitam, ainda que sumariamente, os pressupostos teóricos e
metodológicos a partir dos quais o livro foi elaborado. São, pois, cartas cujo locutor é o
autor do livro didático e o interlocutor, já o dissemos, o professor.
A exemplo de qualquer carta, essas também contêm informações experimentadas
pelo locutor que percebe o interlocutor como um “cúmplice”, ou seja, como um destinatário
comprometido nessa interlocução. Contudo, no caso das cartas de que estamos tratando,
115
esse comprometimento varia desde um reconhecimento efetivo por parte do autor que trata
o professor como um analista, capaz de produzir e de interpretar sentidos, até o total
descaso.
As cartas inseridas nos três livros de nosso corpus nos permitiram observar três
diferentes formas de “chamar” os professores para essa interlocução. No livro 1- Entre
Palavras, nenhuma menção é feita ao professor. Na verdade o autor não escreve uma carta
específica apresentando sua obra, o que há é uma rápida introdução no manual do professor
que aponta algumas características da obra; no livro 2 – A Palavra é Sua Língua
Portuguesa – há uma carta redigida para os professores, embora não haja em nenhum
momento uma menção explícita a esse interlocutor. Somente no livro 3 – Tecendo Textos -
o interlocutor está expressamente colocado no texto, pois já no início da carta os autores
dirigem-se a ele dizendo: de professor para professor, acrescido do chamamento Caro
colega, dando-nos a entender que nesse processo interlocutivo os autores, estrategicamente,
se posicionam “de igual para igual” identificando o professor como um cúmplice, ou nas
palavras dos próprios autores, como um “co-autor” da obra.
O primeiro ponto que chama nossa atenção nessas cartas é a repetição de algumas
características gerais, resultantes de um certo funcionamento que rege esse tipo de
publicação. Como sabemos, ao enunciar, o sujeito toma um lugar que diz respeito a
relações de poder, pois o lugar de onde fala implica uma projeção de imagens, resultante de
uma relação de força entre os lugares sociais representados no discurso, do que se conclui
que o lugar, a partir do qual o sujeito enuncia, é constitutivo do seu discurso (PÊCHEUX,
1997). Aos escreverem suas cartas de apresentação, os autores se posicionam em um lugar
que lhes confere autoridade, o que, de certa forma, é o mesmo que dizer que suas falas se
apresentam como discurso de verdade.
Exemplar estudo sobre o livro didático, tomado como veículo de um discurso de
verdade, é o de Grigoletto (1999). Essa autora, baseando-se em Foucault, argumenta que
existe um “como” do poder, uma certa maneira de o poder se disseminar em nossa
sociedade, que produz efeitos de verdade. No caso da escola, o livro didático atua pelo
prestígio de legitimidade e pelo discurso de verdade, isto é, o manual é institucional e
idealmente aquele que possui o saber definido, correto, e está à disposição do professor
para guiá-lo no trabalho pedagógico: o que o livro diz se converte em verdades, e isso
116
autoriza o professor, a partir de seu lugar também institucionalmente marcado, a
desempenhar um papel de mediador entre o que propõe o material didático e os alunos.
Orlandi (1987) nos ajuda a avançar nessa discussão quando trata do discurso
pedagógico, definido como “um discurso circular (...) um dizer institucionalizado, sobre as
coisas, que se garante, garantindo a instituição em que se origina e para a qual tende: a
escola” (op.cit., p.28). Embora ela esteja se referindo ao discurso do professor, julgamos
oportuno estender essa reflexão ao discurso do livro didático, porque, no nosso entender, o
fato de esse discurso estar vinculado à autoridade de seus autores e a uma instituição faz
dele “aquilo que é, e o mostra (revela) em sua função” (op.cit., p.28).
O discurso pedagógico, ilusoriamente, pretende-se neutro com a função de apenas
transmitir informações (teóricas ou científicas). Nesse mesmo raciocínio inserimos o
discurso do livro didático, igualmente entendido por nós como algo que se pretende isento
de conflitos, apoiado na credibilidade da ciência, de onde emanariam elementos puramente
informacionais e verdadeiros. Mas basta atentarmos para as condições de sua produção para
nos darmos conta de que ali, como, aliás, em qualquer outro discurso, não há nenhuma
neutralidade. Para explicar essa questão, Orlandi (op.cit.) lembra que do confronto existente
entre locutor e interlocutor podem resultar três tipos de discurso: o lúdico, o polêmico e o
autoritário. Trazendo à baila a noção de polissemia, a autora argumenta que
no discurso lúdico, há a expansão da polissemia, pois o referente
do discurso está exposto à presença dos interlocutores; no
polêmico, a polissemia é controlada uma vez que os interlocutores
procuram direcionar, cada um por si o referente do discurso e,
finalmente, no discurso autoritário há a contenção da polissemia, já
que o agente do discurso se pretende único e oculta o referente pelo
dizer. (op.cit., p.29)
Com efeito, o discurso do livro didático se constitui como um lugar que visa à
completude de sentidos. Por não permitir deslocamentos, ele nega um dos princípios
básicos da constituição da linguagem – a sua incompletude, pois, como já apontamos na
fundamentação teórica, os sentidos nunca se dão em definitivo, uma vez que existe uma
articulação inevitável entre o lingüístico e o histórico, isto é, entre o que é dito e a sua
exterioridade. Entretanto, no livro didático, é notório o fato de que os autores buscam
definir os sentidos em seus dizeres para que seus usuários (o professor, por exemplo)
117
apenas tenham o trabalho de reconhecê-los e aceitá-los. Ora, se não há reversibilidade na
relação entre os interlocutores – autor e professor, então isso caracteriza a “contenção da
polissemia”, logo, a atitude do locutor em face de seu discurso e através desse em face do
destinatário, provoca um funcionamento discursivo autoritário e, obviamente, sem nenhuma
neutralidade.
Assim sendo, consideramos que as cartas de apresentação constituem-se em um dos
aspectos que corroboram o LD como um discurso de verdade e, por conseguinte, como um
discurso autoritário. Nelas, por conta do próprio jogo ideológico que as sustenta,
dissimulam-se os sentidos sob a forma de informação; cria-se um efeito de sentido único;
toma-se o discurso cuja verdade “já está lá” (GRIGOLETTO, 1999) na sua concepção.
Para esclarecer, atentemos para os dizeres inscritos nos nossos três livros didáticos.
2.2.1.1– Livro 1 – Entre Palavras (FERREIRA, 1998).
Das três coleções didáticas que analisamos, essa é a única que não traz uma carta
específica destinada ao professor. Contudo, acreditamos que algumas observações possam
ser feitas a partir da carta de apresentação do exemplar do aluno. Também é relevante, para
esta discussão, a introdução do manual do professor.
Observemos, abaixo, a carta que apresenta a obra.
118
Primeiramente, a impressão que se tem é a de que, ao se dirigir apenas ao aluno, o
autor desconsidera o professor enquanto agente responsável pelo ensino da língua e um dos
principais usuários do livro. Suas palavras apontam para efeitos de sentidos que nos levam
a entender que o ensino da língua se daria sob a articulação entre dois eixos: de um lado os
alunos e, de outro, o livro. Ao professor, então, excluído do processo, restaria acatar a idéia
de que, sem a adoção do livro didático, não há como orientar a aprendizagem.
Na carta em destaque fica bastante claro que o objetivo do livro é contribuir para
que (o aluno) continue desenvolvendo suas habilidades com a linguagem e, para isso,
propõe um estudo que prioriza um trabalho voltado para as habilidades de ouvir e falar, ler
e escrever, em perfeita sintonia com o que prevêem os PCNLP. Isso torna, como sabemos,
o livro coerente com as modernas diretrizes para o ensino da língua, dando-lhe ao mesmo
tempo “passaporte livre” para ser indicado no Guia do livro didático. Lembremo-nos,
porém, que em uma perspectiva discursiva, a circulação dos sentidos está estritamente
ligada a formações discursivas que, por sua vez, estão ligadas a formações ideológicas. No
caso da carta acima, é necessário observar que quem diz, o faz do lugar de autor de livro
didático visando, certamente, vender sua obra.
Ao enunciar em uma carta de apresentação, o locutor se articula a um discurso de
verdade, inscrito em uma formação discursiva escolar que confere a seu discurso sentidos
indiscutíveis. É nitidamente a voz dos PCNLP que intervém nessa carta como intertexto, o
que nos conduz a uma análise mais específica sobre a heterogeneidade do discurso.
Voltemos, então, a Authier-Revuz (1982): a heterogeneidade constitutiva é a
condição de existência de qualquer discurso que não se entende como tendo “origem” no
locutor que o enuncia, ou seja, o sujeito, ao enunciar, acredita ser fonte exclusiva de seu
discurso, mas, na realidade, retoma um sentido preexistente. Na carta acima, o autor
incorpora o discurso dos PCNLP sem, contudo, demarcar na teia discursiva essa outra voz,
dando a impressão de que ele produz um discurso homogêneo. Em um outro momento,
porém, o locutor mostra claramente a presença da outra voz na teia discursiva o que
reforça, segundo Authier-Revuz (1982), a ilusão de que só nesse momento é que a fala seria
heterogênea.
119
Dentre as formas marcadas de heterogeneidade mostrada, a autora insere o uso das
aspas. Ao citar Carlos Drummond de Andrade, o locutor marca com as aspas (reiteradas
pelo itálico) o espaço em que a heterogeneidade é nitidamente mostrada. Com esse
procedimento, segundo Maingueneau (1993), o locutor acredita se distanciar e se eximir da
responsabilidade sobre aquilo que é dito. Entretanto, podemos perceber, na carta, que o
autor envolve seu discurso (e, portanto, se envolve) com a citação marcada como forma de
levar a cabo a sua estratégia argumentativa, ou seja, apoiando-se no dizer de um dos mais
importantes expoentes da literatura brasileira, o autor sustenta seu discurso valendo-se de
um argumento de autoridade. Ao citar Drummond, o autor toma o poeta como um fiador da
veracidade daquilo que enuncia, ou, em outros termos, busca convencer/persuadir o
interlocutor sobre a eficácia de suas propostas apoiando-se em uma imagem absolutamente
fidedigna.
Levar o aluno a refletir sobre a questão posta pelo poeta é, ao que parece, o
propósito principal da obra, pois o texto destaca que Entre palavras e combinações de
palavras circulamos, vivemos, morremos e palavras somos, finalmente, mas com que
significado, que não sabemos ao certo? Na seqüência o autor afirma que o livro pretende
contribuir para que o aluno possa refletir sobre a desafiante pergunta do poeta. Pontuemos
aqui, também, a intertextualidade existente entre o nome da obra - Entre Palavras, e o
pensamento de Drummond, aludindo-se a esse desafio da nossa existência entre as palavras
de que ele fala.
Diante de tão instigante proposta, surgiu em nós uma outra indagação: qual é a
fundamentação teórico-metodológica desse manual que garante a sua efetivação na prática?
Não encontrando resposta na carta de apresentação, fomos buscá-la em outros espaços do
manual, mais especificamente nas orientações contidas no manual do professor.
Esse, porém, é idêntico ao livro do aluno, com a diferença de que possui as
respostas dos exercícios e, ao final do volume, uma parte dirigida ao docente com o
objetivo de apresentar a estrutura da obra, os objetivos das atividades presentes nas diversas
seções, além de rápidas orientações metodológicas, bibliografia e sugestões de obras para
leitura extraclasse.
Em nenhum momento o autor explicita os pressupostos teóricos nos quais se
baseou, tampouco esclarece a concepção de língua e linguagem que fundamenta sua
120
proposta. Isso, no nosso entender, é bastante preocupante, pois fica a impressão de que o
ensino da língua deriva de uma suposição de que a teoria subjacente é tão óbvia,
indiscutível e conhecida, que se torna prescindível explicitá-la, tal como argumenta
Marcuschi (2002). É nesse sentido que cremos poder entender o discurso dessas cartas
como um discurso de verdade; não há nenhum esforço por parte de seu autor, de justificar
as propostas, de esclarecer as opções teórico-metodológicas; é como se esses aspectos já
estivessem legitimados a priori, ou seja, os autores não precisam “lutar pelo
reconhecimento do seu livro como um discurso de verdade; esta caracterização já é dada”
(GRIGOLETTO, 1999, p.68).
Atentemos, um instante, para a parte introdutória do manual do professor:
Esta coleção pretende oferecer ao professor uma proposta didático-pedagógica
que, levando em consideração as condições concretas do trabalho docente e também a
realidade sociocultural do aluno, possibilite o desenvolvimento de um programa completo
e exeqüível de ensino de língua portuguesa nas quatro últimas séries do ensino
fundamental.
Aprimorar as competências do aluno na leitura, na fala e na escrita é,
evidentemente, o objetivo maior do ensino de língua portuguesa. No entanto, deve-se levar
em consideração que a sala de aula é também um espaço privilegiado para o debate de
inúmeras outras questões relacionadas ao desenvolvimento intelectual do educando e à
ampliação de sua visão de mundo.
Assim, ao longo dos quatro volumes da coleção, são propostas atividades que, por
um lado, visam ao desenvolvimento das habilidades lingüísticas do aluno e, por outro,
objetivam contribuir para sua formação cultural, social e ética, no sentido de apurar-lhe o
senso de responsabilidade pessoal e coletiva, indispensável à formação de sua consciência
de cidadania.
Novamente percebemos que ecoa no discurso do autor do livro didático a voz dos
PCNLP, o que reitera a discussão arrolada acima sobre a aprovação e inscrição desse
manual no Guia do livro didático 2002. Para citar apenas um exemplo, o autor afirma que
aprimorar as competências do aluno na leitura, na fala e na escrita é (...) o objetivo maior
do ensino de língua portuguesa. Os PCNLP, por seu turno, quando tratam dos objetivos do
ensino da língua portuguesa pleiteiam que
a escola deverá organizar um conjunto de atividades que,
progressivamente, possibilite ao aluno (...) utilizar a linguagem na
escuta e produção de textos orais e na leitura e produção de textos
escritos, de modo a atender a múltiplas demandas sociais,
responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos, e
considerar as diferentes condições de produção do discurso.
121
Verifica-se nessa intertextualidade que o que o autor propõe está em perfeita
consonância com as atuais tendências sociointeracionistas de ensino da língua, deixando
entrever que sua prioridade é o trabalho com práticas de uso da linguagem (ler, escrever
falar e ouvir). Contudo, um rápido olhar pelas atividades que compõem o manual revela
que dificilmente tais objetivos poderão ser alcançados, posto que há muito pouco espaço no
livro para um trabalho produtivo com a língua portuguesa. Constatamos, por exemplo, que
o tratamento dispensado à produção de textos escritos é incompatível com a proposta do
manual porque, nessas atividades, prioriza-se a redação e não a produção de texto30, ou
seja, as propostas se dão predominantemente em situações artificiais e descontextualizadas
de uso da língua. Vejamos dois exemplos: o primeiro foi extraído do livro da 5ª série e o
segundo, do livro da 8ª série.
Exemplo 1:
30 Segundo Geraldi (1997), fazer redação é meramente fazer um exercício escolar, de caráter artificial,
desvinculado, portanto, das práticas sociais de linguagem; já a produção de texto é uma atividade que requer
algumas condições, a saber: “a) se tenha o que dizer; b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; c)
se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; d) o locutor se constitui como tal, enquanto sujeito que diz o
que diz para quem diz (o que implica responsabilizar-se, no processo, por suas falas); e) se escolhem as
estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d)”. (op.cit, p.160).
122
Exemplo 2:
Cremos que esses dois exemplos bastam para percebermos que as propostas de
produção de texto do Entre Palavras contradizem as orientações iniciais, inspiradas, como
vimos, nos PCNLP. Ou seja, elas não consideram o uso social da escrita já que não levam
em conta o processo e as condições de produção do texto. Na verdade, não se trabalha o
texto como forma de interação, tampouco se apresentam objetivos para a escrita uma vez
que não se prevê o contexto em que o texto deverá circular; não se orienta o aluno quanto à
escolha da variedade lingüística adequada; enfim, nega-se à produção de texto algumas de
suas características básicas: a funcionalidade, a subjetividade de seus locutores e
interlocutores, a situação sócio-comunicativa.
Destaque-se ainda que há uma clara tendência metodológica na orientação para a
produção de texto, que privilegia uma abordagem codificadora de inspiração estruturalista.
Nesse sentido, é esclarecedora a pesquisa feita por Reinaldo (2002), para quem, na maioria
dos livros didáticos, “os textos a serem produzidos tendem a ser tratados como pura forma
lingüística a ser dominada”, na contra mão, portanto, das correntes teóricas que orientam
para uma abordagem textual-discursiva. Os textos devem ser considerados tanto com
relação aos mecanismos de textualização quanto à situação comunicativa do gênero a ele
correspondente (op.cit., p.97). Em nossos exemplos, é flagrante a clássica tipologia textual
como referência central para a progressão no domínio da escrita; narração, descrição,
123
dissertação ocupam grande parte das atividades de produção do livro em questão. Vale
dizer que dentro do panorama das discussões atuais sobre tipologia de textos, narrar,
descrever e dissertar representam características estruturais de seqüências textuais que
podem figurar nos diversos gêneros de texto31. Segundo a autora acima mencionada, essa
apresentação das seqüências como se fossem gêneros é responsável pelo surgimento do
gênero redação escolar, aquele que existe somente no âmbito da escola.
Em suma, o trabalho com a produção de texto desse manual prende-se, conforme
enfatiza o Guia do livro didático (2002), a situações contextuais de produção escolar, cuja
finalidade tende a esgotar-se no treinamento da escrita, desvinculado das práticas de
linguagem. Ora, se as propostas não se articulam a usos não escolares da escrita, não há
como, então, garantir aquilo que foi dito tanto na carta de apresentação quanto na
introdução do manual do professor.
Nossa discussão aqui pretendeu, a partir da análise da carta de apresentação da obra
didática, mostrar que o autor, ao dizer, ocupa um lugar que lhe confere autoridade e que,
por isso, suas palavras são tomadas como verdades indiscutíveis. Contudo, o que ele
assevera tanto na carta de apresentação quanto na introdução do manual do professor não
condiz com o que ele propõe, de fato, nas atividades do manual, especialmente com relação
à produção escrita. Essa contradição e, principalmente, a falta de uma explicitação dos
pressupostos teórico-metodológicos nos quais o autor fundamentou seu livro, revela, no
nosso entendimento, que o livro didático possui uma imagem bastante negativa do
professor de língua portuguesa: é a imagem de professor cegamente obediente ao discurso
do poder, ou, em outras palavras, de professor executor acrítico de aulas preparadas pelo
livro que se deixa transparecer. Conseqüentemente, cremos que é por conta dessa imagem
que os autores, de um modo geral, não se preocupam em oferecer subsídios teóricos e
informações científicas que podem contribuir de maneira significativa seja na gestão das
aulas, seja na formação profissional do docente; dá-se a entender que o professor é incapaz
de tirar proveito de uma explanação teórica consistente e que, por isso, não vale a pena
31 A esse propósito, ler:
KAUFMAN, A.M. & RODRIGUEZ, M.E. Escola, leitura e produção de textos. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1995.
124
dedicar-lhe explanações úteis para sua atualização. Eis, então, a imagem de professor mal
formado, despreparado que atravessa o discurso dos autores de livros didáticos.
2.2.1.2 – Livro 2 – A Palavra é Sua Língua Portuguesa (LUFT & CORREA,
1996).
Abaixo copiamos a carta que apresenta a obra:
125
Diferentemente do primeiro livro analisado, os autores de A Palavra é Sua Língua
Portuguesa escrevem a carta acima exclusivamente aos professores, publicada no manual
do professor. Esse contém, além da carta, a descrição da estrutura dos capítulos e a
explicitação do objetivo e das principais características de cada seção. De resto, esse
manual é igual ao livro do aluno, exceto por trazer as respostas dos exercícios.
Mantendo-nos no princípio de que o sentido não está no texto, mas na relação que
ele mantém com quem produz, com quem lê, com outros textos (intertextualidade) e com
outros discursos (interdiscursividade), propomo-nos, mais uma vez, perseguir o mosaico de
sentidos que caracteriza a heterogeneidade do discurso e do sujeito (AUTHIER-REVUZ,
1982).
De início, é necessário que tenhamos em mente quais são os objetivos de um
discurso como esse. Indiscutivelmente, o objetivo principal é criar no professor de língua
portuguesa a necessidade de adotar esse livro na escola onde atua. Para isso, a carta age
como um instrumento que visa persuadir seus leitores, valendo-se de estratégias
argumentativas que buscam enredar o interlocutor na sua teia discursiva.
Tais estratégias se dão por mecanismos variados. Observemos, por exemplo, o
modo como os autores exploram o metadiscurso como forma de estabelecer um lugar
próprio de fala. Uma leitura atenta de suas palavras permite conferir que os autores
apropriam-se da voz da ciência, asseverando, dentre outras questões, que as gramáticas
escritas não passam de interpretações da gramática natural que todo falante possui
interiorizada, ou ainda que a gramática todo falante sabe naturalmente, sem, contudo,
demarcar (mostrar) tal apropriação. Percebemos, pois, que os autores “incorporam” o
cientista, confundindo-se com ele sem se mostrar como voz mediadora. Orlandi (1986)
esclarece que, com tal procedimento, apaga-se o modo pelo qual se faz a apropriação do
conhecimento do cientista tornando-se, os autores mesmos, detentores daquele
conhecimento. Isso corrobora o que afirmamos acima, isto é, a voz do autor do livro
didático confunde-se com a voz do cientista, pretendendo-se neutra e mostrando-se via um
discurso de verdade, inquestionável, percebido sob a forma de uma aparente
homogeneidade.
Suas palavras se integram em uma cadeia interdiscursiva na qual podemos
depreender, basicamente, duas formações discursivas: uma, pressuposta, que sustenta a
126
importância do ensino da gramática tradicional nas escolas, e outra que refuta esse ensino.
Com outras palavras: de um lado emerge a voz do ensino tradicional, conservador, e de
outro, a voz do ensino moderno sobre o qual os autores teriam edificado seu livro, já que
afirmam ter realizado uma revolução copernicana: Dizem os autores: destituímos a
gramática do centro das aulas e das provas. O resultado foi imediato. Os alunos passaram
a criar textos com desenvoltura, criatividade e prazer.
Para esclarecer, atentemos para o seguinte trecho: (...) tenta-se fazer das aulas um
estudo sistemático da gramática. No Brasil, estudar “português” equivale a estudar
gramática. Tal afirmação traz em si uma memória, quando analisada do ponto de vista da
história do ensino da língua portuguesa. É fácil constatar que a gramática dita tradicional
sempre foi objeto privilegiado nas aulas de português, e mesmo hoje temos muitos casos
em que o ensino da gramática ocupa quase todo o tempo das aulas de Português32. Aliás, o
entendimento de que quando o professor ensina a língua, está-se ensinando antes de tudo a
gramática, é algo bastante cristalizado no imaginário social: esse entendimento faz parte da
historicidade construída pelo discurso do ensino da língua portuguesa, e é isso que confere
à gramática autoridade no imaginário social.
Contudo, os recentes estudos desenvolvidos principalmente pelas modernas teorias
lingüísticas, como já dissemos em outro lugar, têm procurado mostrar (e solucionar) os
equívocos desse ensino calcado no dogmatismo da gramática tradicional, em cuja premissa
básica resiste a noção conservadora de que a linguagem é a expressão do pensamento e de
que quanto mais culta for a linguagem, melhor será o pensamento, ou seja, quem não fala
direito, não pensa direito ... Esse modelo de ensino insiste na idéia de que o aluno terá
domínio tanto da língua oral quanto da língua escrita se ele assimilar a nomenclatura
gramatical, ao mesmo tempo em que “descobre” aquilo que é certo e aquilo que é errado
com relação à língua. Com a intenção de provar que a funcionalidade desse ensino é
bastante discutível, os estudos lingüísticos se erguem para denunciar que o atual fenômeno
da crise na linguagem advém dessa concepção deturpada de língua e linguagem. Aliás, tal
crise foi constatada, já há algum tempo, quando se percebeu que muitos alunos, mesmo
32 Em 2.1.2, apresentamos uma reflexão a esse respeito, juntamente com a descrição de uma aula de
gramática, com o intuito de mostrar o quão arraigado ainda permanece o ensino da gramática nos moldes
tradicionais, em alguns contextos escolares.
127
depois de haverem concluído o ensino médio, apresentavam grande inabilidade de leitura e
de escrita.
Os autores de A Palavra é sua Língua Portuguesa fazem alusão a esse fracasso do
ensino da língua portuguesa no primeiro parágrafo quando afirmam que dez/doze anos de
aulas semanais não bastam para tornar os alunos comunicadores eficientes e criativos da
língua materna, articulando, pois, polifonicamente, o seu discurso com outros discursos
que sustentam a tese de que a escola tem-se mostrado ineficiente para ensinar os alunos a
produzirem e interpretarem textos de maneira autônoma e competente. É bom reiterar que
esse efeito polifônico é silenciado sob a aparente unicidade do discurso dos autores.
O uso das inúmeras frases interrogativas, observáveis ao longo da carta - o
português é difícil? O que está errado no ensino da língua nacional? E se os instrutores
imitassem os professores de português? Quem já não ouviu uma criança dizer “fazi” em
lugar de fiz? – indica que o metadiscurso aqui é uma estratégia de crítica ao ensino
tradicional, deixando claro que os autores compactuam com a idéia de que o fracasso do
ensino da língua materna advém de um modelo de ensino que possui como norte o ensino
da gramática33.
Na carta, a ineficácia do método tradicional do ensino da língua, voltado para o
ensino da teoria gramatical, é simbolizada em uma comparação com a eficiência do método
utilizado pelos instrutores das auto-escolas que, segundo os autores, conseguem êxito em
sua tarefa de ensinar os motoristas a dirigirem um carro, porque não se preocupam em
ensinar o funcionamento do motor. Já os professores (não nos esqueçamos:
leitores/interlocutores dessa carta) fracassam porque não imitam esses instrutores uma vez
que eles insistem em ensinar a gramática, ou seja, o motor da língua. Em vista disso,
percebemos aí uma primeira imagem do livro didático sobre o docente: ele é visto como um
profissional desnorteado, quiçá fracassado, que não sabe o que fazer em suas aulas para
atingir os objetivos do ensino da língua, dentre os quais é oportuno destacar o principal
deles: “desenvolver a competência comunicativa dos usuários da língua
(falante,escritor/ouvinte, leitor), isto é, a capacidade do usuário para empregar
33 Tratam desse assunto, dentre outros, os seguintes autores:
BAGNO, Carlos. Preconceito Lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2000.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola?. Campinas: Mercado de Letras - ABL, 1996.
SUASSUNA, L. Ensino de Língua Portuguesa - uma abordagem pragmática. Campinas: Papirus, 1995.
128
adequadamente a língua nas diversas situações de comunicação” (TRAVAGLIA, 2000,
p.17). Tal imagem é flagrante no momento em que os autores questionam: E se os
instrutores imitassem os professores de português? Há, sem dúvida, uma outra voz
asseverando que os professores não sabem ensinar o português e, em função disso, os
autores se valem de seu lugar de autoridade para dizer ao professor o que ele deve fazer
para não fracassar mais.
Embora concordemos com os autores quando eles dizem que é urgente tirar a
gramática do centro do ensino da língua portuguesa, julgamos necessário, neste ponto,
levantarmos algumas considerações acerca da comparação feita entre o professor e o
instrutor de auto-escola, pois, no nosso entendimento, essa comparação também abre um
espaço para que localizemos uma outra imagem de professor.
Inicialmente, há que se atentar para alguns possíveis significados da palavra
instrutor. De acordo com o Novo Dicionário da Língua Portuguesa (HOLANDA
FERREIRA, 1986), instrutor é aquele que instrui, que ensina, que adestra; instruir, por seu
turno é transmitir conhecimentos a; ensinar; adestrar, habilitar; exercitar; domesticar;
esclarecer, informar ... Os efeitos de sentido daí decorrentes salientam a imagem de
professor-instrutor, professor-transmissor e, por extensão, de professor-controlador da
aprendizagem dos alunos aos moldes da pedagogia tecnicista. Ou seja, ao afirmarem que os
professores deveriam seguir o método dos instrutores das auto-escolas, os autores estão
apostando em um relacionamento professor-aluno cujos papéis são definidos de maneira
estanque: àquele cabe administrar as condições e a transmissão da matéria, conforme um
sistema instrucional eficiente e efetivo em termos de resultados da aprendizagem; a este
cabe receber, aprender e fixar as informações (tal como acontece na dinâmica das
instruções das auto-escolas). Na pedagogia tecnicista, segundo Luckesi (1992), o professor
é concebido como um mero elo de ligação entre a verdade científica e o aluno, cabendo-lhe
empregar o sistema instrucional previsto, comportando-se, então, como um instrutor. Na
esteira dessa teoria, o relacionamento professor-aluno tem um sentido exclusivamente
técnico que visa, sobretudo, à eficácia da transmissão do conhecimento. Tal eficácia é
também garantida pelos métodos e pelas técnicas de ensino, bem como pelos veículos e
instrumentos que fazem circular o “conhecimento” observável e mensurável, decorrente da
ciência objetiva: ressaltemos, então, a importância dos livros didáticos nessa tendência.
129
Ressaltemos, também, que os autores da carta em análise acreditam que o êxito do ensino
da língua depende do bom uso do livro didático que eles propõem, reforçando, assim, a
nossa reflexão sobre a imagem do professor associada à de um executor de tarefas
(instrutor) que só consegue ensinar se conhecer técnicas.
Voltando à questão do ensino da gramática, é importante salientar que os autores
afirmam que na sua coleção o estudo da gramática não é o centro de maior interesse para o
ensino da língua portuguesa, ainda que haja uma parte em cada capítulo que expõe, no
conjunto da obra, toda a gramática que se costuma ministrar no ensino fundamental –
terceiro e quartos ciclos. Os capítulos que compõem o manual estão, portanto, organizados
em duas partes: a primeira traz uma proposta de estudo da língua (mediante práticas de
leitura e de produção de texto), e a segunda traz uma proposta de estudo sobre a língua,
baseada na tradição gramatical normativa. O êxito no ensino da língua, daí a mudança de
que falam (a revolução copernicana), decorre da boa utilização da primeira parte de cada
capítulo.
Têm razão os autores quando propõem que se deve mudar o enfoque das aulas de
língua, deixando para segundo plano o estudo da gramática, mas em momento algum os
autores explicam que esse deslocamento deve abrir espaço para que o aluno possa refletir
sobre sua própria linguagem, entendendo-se como sujeito do processo de ensinoaprendizagem,
analisando e levantando hipóteses que lhe permitam apropriar-se cada vez
mais das situações interacionais, adquirindo comportamentos de língua adequados aos mais
variados contextos de comunicação. Os autores limitam-se a dizer que a escola deve formar
alunos comunicadores eficientes e criativos. Daí então podermos dizer que esse livro
também não apresenta os pressupostos teórico-metodológicos que sustentam suas
propostas, o que vem ao encontro daquilo que afirmávamos anteriormente, ou seja, ao
sonegar essas informações, os autores agem como se isso não fosse necessário,
desconsiderando, portanto, a capacidade de reflexão dos professores que possivelmente
utilizariam esse manual.
Confrontando o que os autores disseram na carta com o que eles efetivamente
propõem nas atividades presentes ao longo do material, pudemos constatar que, embora
eles tenham dito que a gramática não é o centro de maior interesse do livro, em função dos
argumentos já explorados, cada capítulo do manual propõe enormes quantidades de
130
exercícios destinados à fixação dos conhecimentos aí apresentados e sistematizados à
maneira da gramática normativa. Na verdade, o espaço reservado para o estudo da
gramática é equivalente ao espaço reservado para a prática de leitura e de produção de
texto.
A propósito, vejamos o exemplo abaixo, extraído do manual da 7ª série.
131
Com o objetivo de trabalhar alguns elementos da morfologia (substantivo, adjetivo,
artigo, numeral e pronome), propõe-se, depois de uma rápida explanação teórica, uma série
132
de exercícios que priorizam estruturas isoladas, descontextualizadas. A ênfase dada aos
comandos “observe o modelo” e “copie”, deixam clara a intenção de submeter os alunos a
um tipo de treinamento de estruturação de frase, dentro da variedade padrão.
Dito isso, é o caso de se perguntar por que os autores dão um tratamento aos
conhecimentos lingüísticos desvinculado de atividades de uso da língua? Pior: por que
enfatizam tanto a memorização, se em sua carta eles admitem que o ideal seria banir quase
completamente a gramática do primeiro grau? A resposta a essas perguntas é dada pelos
autores no seguinte trecho:
Mas, para isso, seria preciso eliminar a cobrança gramatical dos concursos e dos
exames vestibulares. Os próprios pais dos alunos exigem que seus filhos estudem
gramática. No colégio em que a coleção foi testada, um grupo de mães foi reclamar contra
a ausência de substantivo abstrato no volume da 5ª série!
Temos aí um exemplo claro da heterogeneidade mostrada no discurso. O
funcionamento discursivo de Mas deixa evidente a presença do outro no sentido de que há
uma outra voz, um já-dito, insistindo que a gramática é cobrada em concursos e/ou
vestibulares. O uso do futuro do pretérito reforça o efeito de que o ensino da gramática
tradicional é absolutamente necessário. A alusão feita aos pais dos alunos que exigem o
ensino da gramática, reiterando, pois, o que dizíamos acerca da cristalização no imaginário
social de que ensinar a língua é a mesma coisa do que ensinar a gramática, funciona como
argumento para a conclusão de que é preciso ensinar a gramática normativa aos alunos.
Tendo em conta que o que é dito nessa carta é tomado como discurso de verdade, o
que os autores postulam acaba por silenciar a existência de outros discursos como, por
exemplo, aquele que sustenta a impropriedade de se ensinar a gramática tradicional no
ensino fundamental. Permanece, assim, a verdade dos autores: se é cobrado pelos pais,
pelos concursos e pelos vestibulares, então o professor deve ensiná-la. Observemos, ainda,
a manutenção desse lugar de verdade pelo uso dos modalizadores, isto é, de expressões que
marcam a relação do enunciador com os fatos que enuncia, conforme podemos constatar
nos seguintes trechos: O objetivo (da coleção) foi plenamente conseguido; Estamos
plenamente convencidos.
133
Finalmente, merece nossa atenção a última asserção do texto: o que prova que
estamos no caminho certo. Quem está no caminho (método) certo? Os autores. Quem está
no caminho errado? Os professores, tal como foi adiantado no segundo parágrafo da carta.
Daí, pois, podermos afirmar que no desenvolvimento da carta, os autores constroem
discursivamente uma imagem bastante negativa do professor de língua portuguesa.
Do encadeamento interdiscursivo da carta, depreendem-se imagens de professorfracassado;
professor-instrutor no sentido técnico do termo; professor-desorientado porque
não sabe qual é o melhor caminho (método); essa última nos conduz, por conseguinte, à
imagem de professor mal-preparado, desinformado. A tudo isso soma-se o fato de que os
autores não se preocuparam em apresentar os esclarecimentos teóricos e metodológicos,
ainda que seja clara a orientação normativa da gramática tradicional em grande parte do
livro, o que nos leva à conclusão, mais uma vez, de que a única atitude que se espera por
parte do professor, é a adoção do livro e a apropriação do já pronto. E é nesse sentido que
concordamos com Grigoletto (1999), quando argumenta que o professor é visto apenas
como um usuário e não como um analista, concebido, portanto, como um mero
“consumidor do produto, segundo as diretrizes ditadas pelo autor” (op.cit, p.68).
2.2.1.3– Livro 3 – Tecendo Textos (SILVA et al., 1999)
Não temos dúvidas de que esse livro se destaca dentro do quadro geral dos livros
didáticos de língua portuguesa, por não apresentar um caráter formulaico-receituário de
trabalho. Já na carta de apresentação da obra, percebemos essa diferença. Vejamos:
134
135
136
Comparando essa carta com as demais acima exploradas, verificamos que ela é
diferente em muitos aspectos. Inicialmente, questionamos: como atuam nessa carta as
significações implícitas que compõem a imagem que o locutor pressupõe sobre o
interlocutor?
Em vários momentos do texto, percebemos amostras mais ou menos claras de
manifestações que concebem o professor como um sujeito valorizado, um agente
importante e determinante no ensino da língua portuguesa. Nesse sentido, destacamos os
seguintes trechos:
professor, mentor principal desse processo;
professor, esta obra está dirigida para você que tem “sede de mudança”;
mudança de postura do professor: não mais um executor acrítico de ações
apresentadas por outros, mas um produtor de conhecimento junto com o aluno, capaz de
criar suas próprias metodologias de ensino;
seja também, junto com os estudantes, co-autor (a) desta coleção;
considero o professor capaz de construir exercícios mais significativos para os
alunos a partir das produções orais e escritas deles.
Tais significações formam, em seu conjunto, um quadro geral que, em última
instância, vê o professor não mais como um técnico que se limita a aplicar corretamente um
conjunto de diretrizes, tal como pudemos comprovar com os outros dois manuais, mas
como um profissional que se interroga sobre o sentido e a pertinência daquilo que vai
ensinar. Com esse entendimento há, para o professor, um certo espaço para que ele
participe ativamente no desenvolvimento da proposta do livro, deixando de ser um mero
consumidor para se tornar mediador, interlocutor e orientador. Em suma, essa carta de
apresentação entremostra uma visão de professor associada àquela de educador capaz de
refletir sobre sua gestão pedagógica.
Essa carta abre o manual do professor que, vale dizer, foge do modelo de manual
que se cristalizou na tradição brasileira, embora também traga as respostas dos exercícios.
A diferença está no fato de que para cada página do livro do aluno, o manual traz outra
página destinada ao professor na qual encontramos, além das respostas, explicações e
137
sugestões a respeito das atividades mobilizadas, um espaço totalmente “em branco” para
que o professor possa fazer os seus Registros Pedagógicos. Reitera-se, assim, a intenção do
livro de engajar o professor na operacionalização da proposta. É interessante, ainda,
observar que o livro didático em foco abstém-se de um esquema rígido, estanque,
liberando, desse modo, o professor para acionar, à sua escolha, as diversas seções,
conforme convier aos seus propósitos pedagógicos e às condições e necessidades de seus
alunos.
Na carta acima também encontramos indicadores de que suas propostas são
atualizadas em relação às necessidades atuais do ensino da língua, já que elas incorporaram
coerentemente os conhecimentos teóricos acerca da língua, hoje disponibilizados pela
Análise do Discurso, Lingüística do Texto, Sociolingüística, Psicologia da Educação, etc...
Segundo os autores, o livro concebe o estudo da língua como o estudo dos
processos de interações verbais e não verbais que ocorrem num contexto histórico-social,
sendo determinado por ele. Eis aqui, então, explicitada a concepção sociointeracionista
que, a rigor, embasa as atividades do livro. Tal concepção é mais explicada na seqüência do
manual, quando os autores valem-se, por exemplo, de autores como Geraldi (1996) para
mostrar que “a língua não é um sistema fechado, pronto, acabado, de que poderíamos nos
apropriar. No próprio ato de falarmos, de nos comunicarmos com os outros, pela forma
como o fazemos, estamos participando, queiramos ou não, do processo de constituição da
língua”. Portanto, constatamos que a concepção de língua e linguagem que subjaz às
propostas desse manual está claramente apresentada para os seus interlocutores, sendo que
tal concepção está bastante afinada com os PCNLP uma vez que a linguagem é entendida
como forma de interação que resulta de um trabalho coletivo e histórico.
Igualmente explicitados no manual do professor estão: a) a justificativa; b) os
objetivos gerais do ensino; c) os pressupostos metodológicos; d) os pressupostos teóricos;
e) os objetivos gerais do ensino de língua portuguesa no terceiro e no quarto ciclo; f)
considerações sobre prática de reflexão do uso da língua; g) considerações sobre avaliação.
Também nesse livro fomos conferir se o que é proposto na carta de apresentação é
efetivamente articulado com as atividades que compõem o manual. Vejamos, a título de
ilustração, o exemplo abaixo:
138
No penúltimo parágrafo da carta, os autores adiantam que o conteúdo gramatical,
na forma tradicional, não é contemplado na proposta da coleção, alegando que o objetivo é
trabalhar os conceitos gramaticais dentro de uma linha de reflexão, fugindo
139
completamente de exercícios mecânicos. No exemplo acima, percebemos tal iniciativa,
pois, em vez de apresentar o substantivo e o adjetivo tradicionalmente, isto é, a partir de
conceitos e definições com base em frases descontextualizadas, a exemplo do que
observamos nas análises do Livro 2, em 2.2.1.2, os autores propõem um espaço
denominado reflexão sobre o uso da língua (evitando, assim, falar em gramática) no qual
há um esforço para conduzir o aluno a construir o conceito de substantivo e adjetivo,
tomando como ponto de partida um texto.
Vemos, assim, que aquelas análises que propusemos para os Livros 1 e 2 não se
aplicam aqui, pois Tecendo Textos, a rigor, não subestima a capacidade de reflexão do
professor; ao contrário, ele lhe dá a oportunidade de ter contato com explanações teóricas
claras e fundamentais para a realização de um trabalho produtivo com a língua portuguesa.
Se naqueles emana uma imagem de professor portador de uma certa “anemia cognitiva”
(SILVA, 1998, p. 59), neste percebemos uma imagem de professor capaz de caminhar
sobre as próprias pernas, com certa autonomia e decisão. Qual é, então, a diferença entre
esses discursos que permite esse deslocamento na concepção de professor?
Novamente é Orlandi (1987) quem nos esclarece essa questão. Dissemos
anteriormente que o discurso do livro didático, ao mesmo tempo em que se constitui como
um discurso de verdade, mostra-se autoritário, pois ao enunciar, os autores ocupam um
lugar que produz efeitos de verdade: o que ali é dito torna-se inquestionável, fechando-se as
possibilidades de sentidos. Os dois primeiros livros aqui analisados comprovam isso. Já o
Livro 3, embora legitimado por condições de produção semelhantes aos demais, traz uma
diferença importante no sentido de que se pretende menos autoritário e mais polêmico. Eis
o deslocamento de que falamos acima. E isso, a nosso ver, decorre da imagem que os
autores do livro didático têm do professor.
Se no discurso polêmico, conforme ensina Orlandi (op.cit., p.29), “os
interlocutores procuram direcionar, cada um por si o referente do discurso”, é-nos
permitido concluir que no caso do livro didático Tecendo Textos o discurso se pretende
polêmico uma vez que os autores constroem seu texto, seu discurso, expondo-se a efeitos
de sentidos possíveis, abrindo espaço para as possíveis intervenções do professor, isto é, há
um lugar em seu discurso para a existência do professor como “sujeito”. Queremos com
essa reflexão dizer que é possível ao professor interferir no caráter autoritário do manual
140
didático, questionando os seus implícitos, o seu caráter pretensamente informativo, sua
unidade, sua organização e atingir efeitos de sentido (ORLANDI, 1987). Em que pesem as
inflexibilidades do livro didático e o seu caráter homogeneizante, podemos constatar que, a
exemplo do Livro 3, há livros que deixam vago um espaço para o diálogo com outro dentro
do discurso. Quanto à atuação do professor nesse processo, cremos que as palavras de
Orlandi (op.cit.), apesar de estarem se referindo à relação professor-aluno, ilustram
igualmente a relação professor-livro didático:
uma maneira de instaurar o polêmico é exercer sua capacidade de
discordância, isto é, não aceitar aquilo que o texto propõe e o
garante em seu valor social: é a capacidade (...) de se constituir
ouvinte e se construir como autor na dinâmica da interlocução,
recusando tanto a fixidez do dito como a fixação do seu lugar como
ouvinte. Ou seja, é próprio do discurso autoritário fixar o ouvinte
na posição de ouvinte e o locutor na posição de locutor. Negar isso
não é negar a possibilidade de ser ouvinte, é não aceitar a
estagnação nesse papel, nessa posição.
Expusemos até aqui um modelo de livro didático que foge, em princípio, à regra
geral, ou seja, nesse último a imagem de professor que transparece não é a de um mero
repassador, reprodutor de conteúdos. Entretanto, é necessário dizer que essa diferença,
embora imprima sentidos mais significativos na constituição da identidade do professor,
não descaracteriza a constituição do livro, uma vez que ele continuará atuando pelo
prestígio de legitimidade e pelo discurso de verdade. A diferença que pontuamos é que em
Tecendo Textos há uma brecha para que o professor possa instaurar o polêmico e exercer
sua capacidade de discordância (op.cit.).
Enfim, há que se dizer que livros como Tecendo Textos são, por enquanto, muito
poucos: um rápido passeio pelos livros disponibilizados pelo Guia do Livro Didático
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2002) comprova que a maioria absoluta está
desatualizada em relação às necessidades de nosso tempo, no sentido de que não
incorporaram os conhecimentos teóricos acerca da língua hoje disponíveis. Além disso, eles
deixam facilmente entrever, tal como constata Coracini (2000, p.155), a imagem de um
professor “despreparado para exercer a profissão, incapaz de, sozinho, construir atividades,
decidir sobre o quê e como ensinar, um professor reprodutor de conteúdos, despolitizado e
141
ideologicamente neutro, mero executor de tarefas, despreparado até mesmo para aquelas
que pretende ou precisa ensinar”
Após termos analisado essas três cartas, julgamos necessário fazer algumas
considerações sobre mais um aspecto do livro didático que certamente reforça todas essas
imagens apontadas por Coracini (op.cit.) e que, no seu conjunto, reitera a premissa básica
de que o professor, na maioria das vezes, ocupa o “o lugar do morto”, conforme Nóvoa
(1995), isto é, ele é visto apenas como “consumidor e não construtor, como usuário e não
analista”(GRIGOLETTO, 1999, p.68): esse outro aspecto diz respeito às orientações
pedagógicas e às respostas dadas aos exercícios, sobre as quais passaremos a expor.
2.2.2 Orientações didático-pedagógicas e respostas dadas aos exercícios
O livro didático está de tal forma arraigado no cotidiano da escola que raramente
o professor se dá conta dos sentidos subjacentes à materialidade lingüística de seu discurso.
O que os autores dizem, em função do lugar de autoridade que eles ocupam, acaba se
“naturalizando” e, por isso mesmo, não causa estranheza. Ou seja, por seu caráter
homogeneizante e “natural” não ocorre ao professor questionar seus implícitos para tentar
compreender o que é que está por trás daqueles comandos (orientações), aparentemente
neutros e ingênuos: Professor, agora você faça desse modo... Professor, não se esqueça de
pensar que ...O professor não reage em face de comandos como esses porque uma vez
interpelado pela posição de sujeito-reprodutor das verdades contidas nos manuais didáticos,
não percebe o entrelaçamento de sentidos que colocam em cheque sua própria identidade
docente, limitando-se, muitas vezes, a simplesmente obedecer aos autores.
Para elucidar, apresentamos a seguir uma atividade do Livro 1 – Entre Palavras,
intitulada Ouvir e Falar, cujo objetivo seria desenvolver “a habilidade de concentração para
ouvir e a habilidade de expressão oral eficaz”, segundo o que consta nas sugestões
metodológicas do manual do professor. Eis a atividade:
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A estrutura da obra didática, da qual retiramos o exemplo acima, constitui-se de
atividades nucleares (Ler, Escrever e Gramática) e de atividades alternantes (Ouvir e Falar,
Ver, Debater, Aprender Mais). Desse modo, a atividade acima sugerida, faz parte das
atividades alternantes e tem a intenção de promover um trabalho com a linguagem oral a
partir da leitura do texto de Millôr Fernandes intitulado Sempre Alerta. Importa esclarecer
que essa atividade é desenvolvida a partir de um texto que consta apenas no exemplar do
professor. No livro do aluno é apresentado um conjunto de questões a respeito do conteúdo
temático e de detalhes informativos presentes no texto.
No manual do professor há os seguintes esclarecimentos para que o professor possa
(consiga!) efetivar a proposta:
Deixando de lado uma enormidade de questões concernentes ao equívoco de se
entender a compreensão de textos orais como audição de textos escritos, lidos pelo
professor, vamos nos ater às “sugestões” dadas ao professor. Tais sugestões destacam-se
pela cor rosa com a qual foram impressas.
Primeiramente devemos indagar, ainda que superficialmente, sobre o papel do
professor na dinâmica do ensino-aprendizagem. Luckesi (1992, p.115) nos esclarece isso
afirmando que o professor tem um papel específico na relação pedagógica, que é a relação
145
de docência, ou seja, “na práxis pedagógica, o educador é aquele que, tendo adquirido o
nível de cultura necessário para o desempenho de sua atividade, dá direção ao ensino e à
aprendizagem. Ele assume o papel de mediador entre a cultura elaborada, acumulada e em
processo de acumulação pela humanidade, e o educando”. Assim, entende-se que o
professor é um sujeito com papel bastante definido e que, em princípio, é capacitado e
habilitado para desempenhar sua função docente.
Contudo, as orientações e as explicações que pudemos rastrear no Livro 1,
produzem sentidos que atribuem ao professor um lugar completamente diferente daquele
descrito por Luckesi (op.cit.). Vejamos, por exemplo, as primeiras inscrições no alto da
página que apresenta o texto de leitura: Professor, sugerimos chamar também os alunos
mais tímidos. Para eles, é conveniente propor as questões mais fáceis, pois, sabendo as
respostas, não terão medo de errar. Assim, começarão a se desinibir ao falar.
De onde essa certeza de que os alunos tímidos superarão as dificuldades? O que
leva o autor a pensar que o professor precisa desse tipo de orientação? Por que se esforçar
em alertar o professor para questões tão óbvias como esta outra que é apresentada antes das
perguntas que seguem o texto: Professor, é importante pedir aos alunos que dêem
respostas claras e falem alto o suficiente para serem ouvidos. Somem-se a isso os
esclarecimentos metodológicos para a realização da atividade, tão absurdo quanto inútil.
Retomemos aqui o que Pêcheux (1997) ensinou. Segundo esse autor todo
processo discursivo supõe, por parte daquele que fala, “uma antecipação das representações
do receptor sobre a qual se funda a estratégia do discurso” (op.cit., p.84). Ao produzir seu
discurso, o locutor produz imagens do sujeito-interlocutor dentro de uma conjuntura sóciohistórica.
Assim, o locutor quando enuncia está ao mesmo tempo se perguntando: quem é o
interlocutor para que eu lhe fale assim? Quem sou eu para lhe falar assim? É esse jogo
imaginário do qual fazem parte as posições que o sujeito ocupa, que rege as diferentes
possibilidades de realização do discurso.
No caso das sugestões acima destacadas, é a imagem que o autor tem do
interlocutor que o faz dizer dessa e não de outra forma; é também por conta dessa imagem
que o autor diz certas coisas e não outras, ou seja, trabalhando esse jogo de imagens, o
locutor ajusta seu dizer a seus objetivos. Evidentemente, a imagem de professor que
sobressai nos discursos dos autores é a de um sujeito sem a menor capacidade cognitiva
146
para dar direcionamento ao ensino e à aprendizagem. Daí a necessidade, por exemplo, de
explicar-lhe até mesmo que é preciso dizer aos alunos para falarem alto o suficiente para
serem ouvidos, como se o professor não fosse se dar conta disso. Temos aqui, novamente, a
imagem de professor mal formado, despreparado, incapaz de tomar atitudes básicas para
direcionar o ensino-aprendizagem.
Vale dizer que esse tipo de orientação que visivelmente subestima a capacidade
intelectual e profissional do professor, perpassa todo manual reiteradamente. Eis outros
exemplos:
Professor, ler este texto com os alunos, explicando as passagens mais difíceis, de modo a
garantir a perfeita compreensão de seu conteúdo.
Professor, se necessário relembrar os objetivos da atividade Debater.
Professor, antes de iniciar a leitura do texto, convém explicar aos alunos o que é um
posto de alfândega na fronteira (local em que fiscais do governo vistoriam cargas para verificar se
estão com a documentação em ordem e com os impostos pagos) e o que é contrabando (transporte
de mercadorias de um país para outro sem o pagamento dos devidos impostos).
Professor, esta atividade exige uma maior capacidade na retenção de detalhes; sugerese,
dependendo do nível da turma, ler o texto mais de uma vez.
É importante acrescentar que a natureza desses comandos que desloca o professor
do lugar de professor reflexivo, professor crítico, professor atualizado, professor indagador,
professor tomador de decisões, professor profissional, para o lugar de professor
despolitizado, professor acrítico, professor alienado, etc... , é uma constante em todos os
manuais analisados.
Se esse deslocamento não ocorre pelas orientações pedagógicas, ele certamente se
dá pelas respostas dadas aos exercícios. A esse respeito, vale voltarmos ao exemplo
destacado do Livro 1 – Entre Palavras. Ali, a estratégia proposta visa, principalmente,
levar o aluno a falar, demonstrando assim que ele acompanhou a leitura em voz alta do
professor e que foi capaz de entender o texto. Além disso, é possível perceber a intenção de
147
ensinar os elementos constitutivos do texto narrativo, embora isso não seja esclarecido nem
para o aluno e nem para o professor.
Uma das características mais marcantes dos manuais do professor é o fato de
trazerem todos os exercícios respondidos, evitando, assim, erros. Há, inclusive, professores
que se recusam a adotar o livro no caso de ele prescindir das respostas. No nosso
entendimento, o fato de tudo já estar respondido no livro acarreta uma série de problemas
que vão desde a imagem subjacente a essa atitude, pois aí o professor também é visto como
um sujeito sem a menor capacidade cognitiva para buscar possíveis respostas para os
exercícios, até o total tolhimento das possibilidades de haver outras respostas, diferentes
daquelas apresentadas pelo autor.
As onze questões da atividade acima relatada remetem o aluno ao texto Sempre
Alerta. Contudo, a proposta do exercício se resume a uma atividade de
identificação/extração de conteúdos. Não há aí espaço para se levantar uma reflexão mais
crítica com relação ao texto, pois a considerar o humor ali contido, poder-se-ia pensar em
uma abordagem que extrapolasse a linearidade do texto, dando assim ao aluno a
oportunidade de expandir a compreensão, construindo outros sentidos além daqueles que
são óbvios.
Nesse sentido, ao trazer as respostas, os manuais assumem que há apenas aquela
única opção de resposta correta, rotulando, assim, todas as outras como erradas. Ora,
sabemos que o texto possui caráter não acabado porque há uma enormidade de sentidos
possíveis que derivam da relação do texto com outros textos, ou seja, um texto é, segundo
Marchuschi (2002, p.142) “uma proposta de sentido e ele se acha aberto a várias
alternativas de compreensão. É possível haver leituras diferenciadas e ainda corretas. A
proposta dos exercícios escolares falha porque concebe o texto como uma soma de
informações objetivas facilmente identificáveis”. O desdobramento disso é que o professor
também acaba considerando apenas aquela resposta como correta, ignorando as várias
possibilidades de leitura de um texto. Isso porque, como já dissemos, o professor toma o
livro como detentor de verdades reconhecidas, de saber inquestionável.
Obviamente toda essa problemática concernente à identidade do professor de
língua portuguesa não se construiu de maneira isolada dos demais determinantes negativos
observados na esfera do trabalho docente. São muitas as variáveis que contribuíram para
148
desencadear o atual processo de proletarização da profissão docente do que resulta o malestar
docente, sendo que algumas poucas foram aventadas anteriormente.
De acordo com o que expusemos até aqui, os professores foram reduzidos à
condição de meros repassadores e/ou cobradores de lições, esvaziados, portanto, de uma
afirmação profissional cujo efeito revela a perda crescente de sua autonomia. Tal afirmação
se sustenta no fato de que quando levantamos, em um outro lugar, a imagem do professor
por ele mesmo (cf. 2.1), percebemos já ali um comprometimento bastante sério com relação
a sua profissionalidade. Em seus depoimentos estava implicada uma imagem de professor
idealizado, fracassado, desorientado, desmotivado ... e que, por não ter voz nem vez nas
atuais circunstâncias político-educacionais, acaba reproduzindo inconscientemente os
valores e as verdades dos livros didáticos. Esses se convertem em normas, transmitindo ao
professor o que deve fazer, o que deve pensar e o que deve evitar para adequar a situação
educativa ao modelo proposto. Isso independentemente das idiossincrasias, ou seja, o
caráter homogêneo do livro propõe que todos os professores ensinem da mesma forma a
alunos iguais que, por isso, aprendem de maneira igual.
Um último passo desta pesquisa direciona-nos para a sala de aula. Lá, temos o
encontro do professor com o livro e é a partir desse encontro que procuraremos mostrar
alguns outros contornos da identidade do docente, observando, na prática, como se dá a
intervenção do livro no fazer pedagógico do professor.
149
2.3. Professor e livro didático na sala de aula.
“É possível desvendar o universo da pessoa por meio da análise de sua ação
pedagógica: Diz-me como ensinas, dir-te-ei quem és” (NÓVOA, 1995, p.33). Essa
afirmação de Nóvoa faz bastante sentido para os propósitos deste tópico, pois entendemos
que ao observar o uso do livro didático na prática, colocaremos em evidência uma série de
fatores que interferem no delineamento da identidade do professor de língua portuguesa.
Já tivemos oportunidade de relatar, em 2.1.3, uma aula que, embora fosse
inteiramente inspirada no livro didático, não foi extraída dele. Naquele item, chamamos a
atenção para o fato de que o modelo do livro didático está, muitas vezes, internalizado no
professor, e esse possui a sensação ilusória de que está realmente trabalhando de forma
autônoma e desvinculada do autoritarismo do livro didático.
Em outros casos, porém, a dependência do professor com relação ao livro didático
é bastante clara. É o que acontece na aula de língua portuguesa que passaremos a
investigar.
A aula foi realizada em uma turma de 5ª série do ensino fundamental e tinha por
objetivo trabalhar o início do quarto capítulo do Livro - 2 A Palavra é Sua.. Como
sabemos, a maioria absoluta dos livros didáticos traz no início de cada capítulo um texto
seguido de atividades de interpretação. Em A Palavra é Sua, o procedimento não é
diferente. O quarto capítulo apresenta inicialmente uma página intitulada Artesanato
Musical onde se ensina confeccionar instrumentos musicais. Aliás, música é o tema em
torno do qual toda a unidade se desenvolve. Depois, há um texto de leitura, O Sirigaita,
com as palavras difíceis destacadas e devidamente explicadas logo ao lado do texto. Na
seqüência, o livro traz os exercícios de interpretação.
Foi, portanto, a leitura e a compreensão do texto O Sirigaita, abaixo copiado, que
impulsionou o desempenho didático-pedagógico do professor durante a aula em questão.
Vale mencionar que a parte introdutória do capítulo, aquela que trata da confecção dos
instrumentos musicais, foi ignorada pelo professor.
150
Foi esse, então, o texto deflagrador da aula em questão. Para que possamos
analisá-la, faremos uma transcrição considerando os momentos em microcenas34, ou seja,
trataremos separadamente os enfoques que se sucederam durante a aula. O primeiro diz
respeito ao início da atividade de leitura; o segundo refere-se ao após da leitura; e o
terceiro, e último, engloba o momento em que o professor confere os significados das
palavras.
Microcena 1: Início da atividade de leitura
P: Vamos abrir o nosso livro. Agora deixe o caderno de lado. Deixe de lado. Nós vamos
abrir o nosso livro na página setenta e dois.(...)
Livro aberto na página setenta e dois. Qual é o texto que nós temos lá?
A: O Sirigaita
P: O ... o quê?
A: O Sirigaita.
P: Quem é o autor desse texto?
A: Carlos Queiroz Teles.
P: Muito bem. Primeiro vamos fazer uma leitura silenciosa desse texto. Todo mundo
fazendo a leitura silenciosa.
(O professor caminha pela sala enquanto os alunos lêem.)
P: Pronto? Agora todo mundo olhando ali ó, vai grifando onde tem os numerozinhos,
nós sabemos que do lado ali tem o ... o que que é sinônimo mesmo?
A: (inaudível)
P: O que é sinônimo?
A: A mesma coisa.
P: A mesma coisa. É o ...
34 A subdivisão desta aula em microcenas, orienta-se em um modelo de análise proposto por Moita Lopes
(1998).
151
A: Com outras palavras.
P: Com outras palavras. É o mesmo ...? significado. É quase a mesma coisa. Lembramse
que nós estudamos a palavrinha quase? É quase a mesma coisa, é quase a mesma
coisa. Tá? Tem uma interpretação diferente. Então quando usamos ... primeiro:
peguem o lápis para grifar as palavras difíceis. Então eu vou lendo bem baixinho, e
eu só levanto a voz quando vocês tem que ... grifar uma palavrinha. Posso começar?
A: Pode.
(O professor faz a leitura tal como havia orientado, ou seja, ele lê o texto em um tom de
voz bem baixo, erguendo a voz quando há uma palavra que os alunos devem grifar)
Como já enfatizamos em 2.1.3, a questão do conhecimento prévio, em um ato de
leitura, é muito importante. Se o aluno não possui o conhecimento pertinente sobre aquilo
que vai ler, ele não conseguirá atribuir um significado ao texto, ou seja, ele simplesmente
não conseguirá ler. Solé (1988), a esse respeito, afirma que “frente à leitura na escola,
parece necessário que o professor se pergunte com que bagagem as crianças poderão
abordá-la, prevendo que esta bagagem não será homogênea. Esta bagagem condiciona
enormemente a interpretação que se constrói”. Não nos parece que o professor do exemplo
acima tenha tido essa preocupação, haja vista que ele não promove nenhuma discussão
sobre o tema a ser tratado, tampouco propôs alguma estratégia para atualizar o
conhecimento prévio dos alunos para que esses pudessem 'enfrentar' o texto. O texto em
questão trata da história de um siri. É o caso, aqui, de perguntarmos se todos os alunos
daquela turma sabiam o que era um siri?
Ainda que todo processo de leitura seja um contínuo de formulação de hipóteses e
predições, é possível estabelecer previsões sobre um texto antes de ele ser lido. Podemos
fazer previsões a partir da superestrutura textual, do título, das ilustrações, etc. O título do
texto trabalhado na aula em foco, O Sirigaita, poderia suscitar uma série de previsões que
permitiriam aos alunos levantar hipóteses, tentando entrever o conteúdo do texto. Isso
poderia gerar uma vontade de saber se as previsões levantadas ajustar-se-iam ao que é dito
no texto, e somente com a leitura efetiva é que os alunos conseguiriam saber se o que eles
imaginavam correspondia às idéias do texto, ou não. Com isso, queremos dizer que, em vez
de mecanicamente mandar seus alunos abrirem os livros na página tal, o professor poderia
atentar para procedimentos que dessem algum significado à atividade, provocando a
curiosidade dos alunos e estimulando-os à leitura.
152
Microcena 2 - Após a leitura
P: Vocês entenderam esse texto?
A: Silêncio.
P: Quem entendeu o texto?
A: Silêncio.
P: O que que quer dizer esse texto?
A: Um Siri que não sabia que tinha uma vocação artística ...não sabia praticar o seu
talento.
P: Isso. Muito bem. Ela sabia que tinha uma vocação artística mas ele não sabia onde
aplicar o seu talento. É bem isso. E o que mais que nós vimos ?
(...)
A: Ele tinha uma vocação artística, só que não sabia aplicar a ... o seu talento.
P: Não sabia aplicar o seu talento. E aí?
A: Porque não dava certo.
P: Por que não dava certo?
A: Por causa de suas garras ...
P: Por causa de suas patas, né? Eram muito grandes, diferentes ... e o que mais? E daí,
quando que ele descobriu que tinha um talento.
(Vários alunos tentaram explicar, ao mesmo tempo)
A: (inaudível) ... teve uma idéia de gênio, para tocar gaita.
P: Ele ia tocar ...?
A: Gaita.
P: Porque daí ele não precisava... dava para segurar. Muito bem. Então, vejam. Ele
descobriu que ele sabia que ele tinha um talento e não sabia como aplicar. Ele
descobriu quase que por ...?
A: Silêncio.
P: Acaso, né? Que ele tinha um talento. Vamos, então, todos juntos ler o texto. Vamos
lá?
P: O ...
A: Sirigaita (...)
(Os alunos fazem a leitura em voz alta e o professor acompanha somente nos trechos em
que a leitura começa a perder o ritmo, a altura e o ânimo.)
Como podemos observar, há nesse depois da leitura uma verdadeira leitura
parafrástica monitorizada pelo professor. As perguntas dirigidas, cuja finalidade é verificar
se os alunos entenderam o texto, não garantem isso, pois são perguntas diretivas que
induzem a uma abordagem mecanicista do ato de ler. Podemos ainda acrescentar que a
prática de leitura assim delineada resume-se numa atividade de decodificação do material
impresso.
153
Vejamos, então, por que a atividade desenvolvida na aula acima equivale a uma
abordagem que concebe a leitura como mera decodificação. O que temos é um
questionamento restrito, basicamente, às informações presentes na linearidade do texto. São
perguntas cujas respostas podem ser facilmente localizadas na superfície do texto. Para
respondê-las, os alunos não precisam ter entendido o texto, basta, apenas, reproduzir
fielmente as sentenças que se encaixam nas perguntas formuladas.
Ora, se o objetivo principal é a leitura como interação, tal como prevêem os
PCNLP (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1998), percebemos que os alunos, em momento
algum, demonstraram envolvimento com o texto, seja perguntando, opinando, arriscando,
falando, enfim. Suas palavras são fiéis reproduções de alguns trechos do texto base.
Microcena 3 - Checando os significados das palavras
P: Vamos ver, então, o significado das palavras. Eu digo as palavras com numerozinhos,
e vocês vão olhar o significado do lado. Vão olhar o sinônimo. Que quer dizer o que,
sinônimo?
A: A mesma coisa.
A: A mesmo significado com outras palavras.
P: Isso. O mesmo significado em outras ...? palavras. Ou..? Quase a mesma coisa. Tá
bom? Então, vamos ver. O número um. O que que é uma vocação artística?
(os alunos, em coro, lêem a significação apresentada no livro didático)
P: Vocês vão grifar apenas “jeito para as artes”. Porque eu vou passar no quadro e
vocês vão colocar o sinônimo. Então, ao colocar o sinônimo coloquem só ... ? jeito
para as artes. A número 2. O que que é ter um talento?
(os alunos, em coro, lêem a significação apresentada no livro didático)
P: Podem grifar “habilidade, e dom”. A número três. O que que são as suas pinças?
A: Garras.
P: Suas garras. Muito bem. Número 4.
A: Grifa garra?
P: Está ali só garras, né? Então grifa garras. Número 4. O que que é um concertista,
com c? Vocês sabem que tem conserto com s e concerto com c. O concerto com c é um
concerto musical, é isso que eles faziam aqui. Ele virou um grande...? concertista. E
que que é esse concertista com c que está aqui no livro?
A: (lêem a definição do LD)
P: Então, vocês podem grifar só “pessoa que se apresenta em concerto”. E vejam que
esse concerto é com a letrinha c. Porque não é concerto de arrumar, consertar
alguma coisa. É um concerto de arte. Tá. Número 5. O que é a Síria?
A: (lêem a definição do LD).
154
P: Podem grifar apenas “países da Ásia”. Olhem lá... quando vocês forem pro show do
milhão, vocês vão, vai cair lá, vão perguntar: onde fica a Síria? Aí vocês já sabem. É
um país que fica no continente asiático. E o Sirilanka. O que é o Sirilanka? Número 6.
A: (lêem a definição do LD).
P: Esse comentário que tem na página 66 é porque Sirilanka, não é assim que se escreve.
É com um s mudo. Deixa eu ver se eu acho na página ... Acharam? Ah! em cima.
Vejam, lá embaixo ... tão vendo como é que se escreve? Mas o autor aportuguesou
isso, pra que vocês entendessem melhor. Então, ao invés dele colocar Srilanka, ele
colocou Sirilanka. Muito bem. O que que é mesmo Sirilanka?
A: Ilha do oceano Índico.
P: Então, grifem lá que é uma “ilha do oceano Índico”.
(...)
P: Número 9. O que são duetos? Olhem DU etos.
A: (lêem a definição do LD)
P: Isso. Oh! DU eto; apenas duas vozes.
A: Como uma dupla sertaneja.
P. (rindo). Não é como uma dupla sertaneja, não. Não é tão assim. E o último lá. O que
que é o gogó.
A: (lêem a definição do LD)
P: Vocês já viram pessoas que quando viram de lado aparecem aqui o ossinho.
A: (inaudível)
P: É. Fica o biquinho aqui. Aquilo ali é que é o gogó. Mas gogó é ter uma voz bem forte,
né? Bem alta. ... Ah?
A: (inaudível)
P: Muito bem. Vamos pegar o nosso caderno, então? Ah?
A:. (inaudível)
P: Não. Grifem apenas nó na garanta.
A: (inaudível)
P: Eu pulei a 9? Não. A nove não tem como reduzir. É bem o que está ali. Não tem como
reduzir. A nove é tudo. Não dá para simplificar. Peguem o nosso caderno. Hoje é
lição nova ...
(vários alunos falam ao mesmo tempo)
P: Amanhã ...tenho uma notícia boa.
A: Amanhã não tem aula (inaudível)
P. Então, por que não passar muita tarefa?
A: (falam todos ao mesmo tempo.)
Nessa microcena, a preocupação do professor parece ser o de alargar o vocabulário
dos alunos, preocupação, aliás, própria dos livros didáticos que trazem um vocabulário
supostamente desconhecido dos alunos, logo após o texto que inicia a unidade do livro.
Tendo realizada uma rápida investigação, para verificar se eles haviam compreendido o
texto, o professor passa a trabalhar com as palavras destacadas, conforme sugestão do livro
didático.
155
Na verdade, o professor apenas requisita que os alunos grifem a adequada
significação, sem estimulá-los a inferir um possível significado partindo do contexto em
que a palavra aparece. Na prática aqui apresentada, os alunos não necessitam de nenhum
esforço para descobrir o sentido das palavras; seu único trabalho é o de transcrever
mecanicamente os significados apontados pelo professor. Uma aula assim orientada, além
de não provocar o exercício de reflexão do aluno, limita a sua capacidade e promove uma
certa 'preguiça mental', já que não há espaço para que ele tente construir sentidos no texto
que está sendo trabalhado.
A esse respeito, é interessante atentarmos para a passagem em que o professor
pergunta o significado da palavra pinças. Após os alunos terem dito que são as garras, tal
como estava escrito no vocabulário proposto, um dos alunos não sabia qual palavra grifar,
ainda que houvesse apenas a palavra garras para eles grifarem. Fica muito claro, assim, de
que preguiça mental se trata, pois, dos alunos, não é exigida nenhuma compreensão ou
interpretação: na verdade eles não precisam de nenhum engajamento intelectual.
Notemos, ainda, que o texto traz um interessante jogo com palavras que se iniciam
com as sílabas siri. Aparecem, não por acaso, os termos siri, siriema, Síria, Sirilanka. No
entanto, isso passou despercebido pelo professor, pois ele não fez qualquer menção com
relação a esse recurso estilístico, deixando claro que a leitura realizada não extrapolou a
decodificação. O mesmo se dá com relação à formação da palavra que intitula o texto:
Sirigaita. O efeito polissêmico dessa construção foi totalmente ignorado pelo professor.
Esse tipo de trabalho, em que se concebe a compreensão do texto a partir da
compreensão de palavras tomadas isoladamente induz, certamente, os alunos a uma
concepção de leitura enquanto decodificação. Parte-se do princípio equivocado de que o
texto é apenas um repositório de mensagens e informações, formado por um conjunto de
palavras cujos significados são examinados um por um para se chegar a uma suposta
mensagem final. Quanto ao leitor, ele é visto como um ser passivo, cujo trabalho consiste
apenas em colher as informações através do domínio das palavras que, nessa visão, são
veículos das informações (Kleiman, 2000).
Uma das propostas do manual didático em análise é o trabalho com o vocabulário,
focalizado especificamente em uma seção denominada A palavra no contexto que, segundo
156
os autores, ocupa um espaço especial. A esse respeito, os autores dirigem-se aos
professores explicando o que segue:
Nossa preocupação foi suprir as deficiências dos alunos que hoje pouco lêem. Ora quem
lê pouco tem limitações de vocabulário. Por isso, trabalhamos intensivamente as palavras que
aparecem no texto de leitura.
Estudamos os vocabulários não isoladamente, mas no contexto, em frases, pois é dessa
maneira que o aluno poderá perceber o significado único, a força específica e a sonoridade
exclusiva de cada palavra. Logo compreenderá que sinônimos são vocábulos de significados
aproximados, e não iguais, como muitos ainda supõem. (LUFT, 1998, 2.
O que nos é possível constatar, a partir da observação da atuação pedagógica do
professor, é que sua fala reveste-se da voz do livro didático. Isso fica bastante claro se
observarmos que os autores haviam chamado a atenção do professor para o fato de que não
existe sinonímia perfeita em língua portuguesa, daí o eco: de um lado, a voz dos autores
enfatizando que o ensino do vocabulário é muito importante e advertindo (como se o
professor não soubesse) que sinônimos são vocábulos de significados aproximados, e não
iguais, como muitos ainda supõem; de outro, a voz do professor, atravessada pela voz do
livro didático, reproduzindo que sinônimo é quase a mesma coisa.
Embora o professor não tenha consciência disso, até porque há o mecanismo
ideológico sustentando a ilusão de que ele, o professor, é a fonte do seu discurso
(ORLANDI, 2000), ele assumiu, junto com o livro didático, a idéia de que é muito
importante ensinar o vocabulário para os alunos. Queremos com isso reiterar que o livro
didático representa no imaginário do professor a voz da autoridade, o saber legitimado.
Notamos ainda que o professor incorpora o pressuposto do livro ao ponto de insistir no
ensino do vocabulário, enfatizando que ele deve ser ensinado no contexto, como se
existisse algum vocábulo descontextualizado em qualquer língua que seja.
Poderíamos argumentar ainda que atividades como a que foi sugerida no livro
didático em questão, e que foi seguida à risca pelo professor, ao invés de contribuir para a
construção de uma imagem mais positiva da figura do professor, destitui a ação docente de
quaisquer significações. Ou seja, o sujeito-professor parece não ter existência própria
enquanto fator determinante da dinâmica educativa, pois ele fala através da voz dos autores,
transformando-se, assim, em um mero repassador-reprodutor dos dizeres inscritos nos
livros didáticos, comprovando, então, o que dizíamos anteriormente.
157
Cabe-nos, para finalizar, perguntar: em uma situação didático-pedagógica como
essa, qual a posição que o professor ocupa em relação ao livro didático?
Diferentemente do que foi observado nos depoimentos dos professores, quando
solicitamos suas opiniões sobre o uso de livro didático nas aulas, e cujas respostas
demonstraram que o livro didático seria apenas um apoio, pudemos constatar que o
professor não somente incorporou o discurso do livro didático, como também ele, enquanto
sujeito, constituiu-se nesse discurso. Ou seja, ao significar, o sujeito se significa
(ORLANDI, 2000). Portanto, podemos concluir que a constituição da identidade do sujeitoprofessor
de língua portuguesa é atravessada por várias posições conflitantes.
158
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe-nos agora, para encerrar, lembrar que a proposta aqui apresentada nesta
forma de análise não visou à exaustividade nem à completude, até porque isso seria
impossível. São inesgotáveis as possibilidades de se analisar a questão da identidade do
sujeito-professor em sua relação com o livro didático, a partir do recorte teórico-analítico
que propusemos, já que, como vimos, todo discurso se constitui a partir de um já-dito e
ressoa em outro, construindo, assim, uma cadeia interdiscursiva infinita. Portanto, se não há
discurso fechado em si mesmo, mas um processo discursivo do qual se podem recortar e
analisar estados diferentes, este estudo permanece aberto, incompleto e disponível para
outros recortes, outras análises, ou nos termos de Orlandi (2000), para outros “gestos de
interpretação”.
Contudo, algumas considerações finais são necessárias para que possamos
responder às questões levantadas no início do trabalho, quais sejam: como os professores de
língua portuguesa têm sido representados pelos discursos que emergem dos livros
didáticos? Em que medida essa representação afeta a sua identidade? Com base nesses
questionamentos perseguimos, ao longo do trabalho, as posições-sujeito (PÊCHEUX,
1997) ocupadas pelos professores no espaço discursivo da sala de aula sempre tendo em
mente que o livro didático é uma voz legitimada a guiar/orientar a ação docente e,
conseqüentemente, é também uma voz que interfere na construção da sua identidade.
Para compreendermos esses discursos, filiamo-nos a estudos realizados no âmbito
da Análise do Discurso de orientação francesa, que concebem a identidade do sujeito no
interior de contextos histórico-sociais; nessa perspectiva, a identidade está inevitavelmente
sujeita à “historicização” (ORLANDI, 1998), do que se conclui que ela está sempre em
movimento, sempre em processo de construção, sendo-nos possível, apenas, “flagrar
momentos de identificações”, conforme explica Coracini (2000, p.148).
Procuramos, pois, investigar alguns contornos da identidade do professor de
língua portuguesa considerando-o como sujeito histórico e, portanto, ideologicamente
constituído no interior de determinadas condições. Enquanto sujeito, ele é:
159
impelido, de um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela
sua experiência, por fatos que reclamam sentidos, e também por
sua memória discursiva, por um saber/poder/dever dizer, em que
os fatos fazem sentido por se inscreverem em formações
discursivas que representam no discurso as injunções
ideológicas. (op.cit, p. 53)
Outro ponto, no qual nos apoiamos para tentar compreender e explicitar o
funcionamento do discurso do livro didático, diz respeito à noção de heterogeneidade
discursiva postulada por Authier-Revuz (1982, 1990). Se o sujeito é, como ensina essa
autora, heterogêneo, ele é, em decorrência, o que o outro pensa que ele é, pois em uma
perspectiva psicanalítica, segundo Coracini (1999, p. 167), “a imagem que fazemos de nós
mesmos é constituída ao longo da vida, por aqueles com quem convivemos”. Ressaltemos,
também, que embora o sujeito se veja, ilusoriamente, como sendo portador de uma
individualidade, “recalcado, esse desejo se depara com a presença do outro(...) de outros,
vozes que entram na constituição mesma do sujeito e do seu dizer” (op.cit.). Em suma, a
noção de alteridade foi crucial para que pudéssemos falar sobre a identidade do professor
de língua portuguesa, pois o outro é a condição de existência do sujeito e de seu discurso.
Ao mobilizarmos prioritariamente o conceito de heterogeneidade constitutiva,
pudemos orientar nossas análises no sentido de realizar um trabalho que potencializasse as
diferentes vozes que atravessam os dizeres dos professores e dos autores dos livros
didáticos, vozes essas que, embora silenciadas em uma aparente homogeneidade, deixaramse
ouvir no interdiscurso. Nossa premissa básica, portanto, foi sustentada pela idéia de que
o discurso se constrói pelo atravessamento de uma variedade de discursos, pois a palavra,
segundo Authier-Revuz (1982) é ocupada pela alteridade, daí entendermos que todo
discurso se tece em um entrecruzamento de vozes, ora explícitas, ora veladas.
A realização dessa escuta discursiva, nos termos de Orlandi (2000), aconteceu,
em um primeiro momento, através de manifestações discursivas obtidas por meio de
depoimentos orais e escritos dos professores participantes da pesquisa. Neles, observamos
as imagens que os professores de língua portuguesa fazem de si mesmos, de seu trabalho
docente e do nosso objeto de análise: o livro didático.
Quanto à auto-imagem, vimos que os professores, por serem engendrados nas
evidências ideologicamente constituídas (PÊCHEUX, 1995), se representam como sujeitos
160
idealizados, isto é, as múltiplas vozes coexistentes em seu discurso delinearam a imagem de
professor-vocacionado que ensina por amor porque se sente imbuído de uma missão. Essa
visão de professor-missionário, que povoa o imaginário dos professores, vem ao encontro
da figura do professor “modificador de destinos”, conforme Coracini (2000). Localizamos,
igualmente, imagens de professor-herói, professor-amante da literatura, professor-detentor
do saber gramatical, professor-guia, etc. Nesse mesmo sentido, destaquemos o fato de que
muitos professores optaram pelo curso de Letras porque se espelharam em antigos
professores, na mãe, nos amigos ... que foram tomados como modelos ideais de
profissionalidade.
Paralela e paradoxalmente à imagem de professor-ideal, constatamos nos seus
discursos a imagem de professor-nostálgico, saudoso da dignidade que há muito lhe foi
‘roubada’. As referências ao passado, atualizadas pela memória discursiva, nos permitiram
visualizar inúmeras imagens conflituosas de professor, tais como a de sujeito
desmoralizado, desvalorizado e desrespeitado, o que aponta para uma identidade do
professor amalgamada a um certo “mal-estar docente” (ESTEVE, 1995). Quer dizer: o
professor parece identificar-se com a tradicional imagem de professor vocacionado,
desejoso de transmitir aos jovens seus conhecimentos e os frutos de sua experiência,
sempre com o objetivo missionário de mostrar aos jovens caminhos, salvando-os “das
trevas da ignorância”, a exemplo do que constatou Coracini (2000, p. 153). Impossibilitado
de atingir tais objetivos, o professor frustra-se e passa a identificar-se com a imagem de
sujeito “humilhado, incompreendido, desiludido, vítima de uma sociedade injusta e ingrata”
(op.cit.).
Essas amostras da constituição contraditória e heterogênea do sujeito-professor,
marcadas sempre e fatalmente pela voz do outro, corroboram as conclusões a que chegaram
Coracini (2000), Maciel (2001), Benites (2002), dentre outros autores. O caráter
heterogêneo da constituição subjetiva e dos processos de identificação do professor de
língua portuguesa se reforçou no momento em que tratamos do discurso do professor sobre
os conteúdos de ensino e sobre o livro didático. Quando incitados a avaliar seu trabalho, os
professores assumiram distintas posições-sujeito: inicialmente, colocaram-se como
profissionais autoconfiantes, seguros e conscientes de suas responsabilidades perante o
ensino da língua; seus depoimentos revestiram-se de concepções teóricas consistentes e
161
bem fundamentadas nas modernas correntes lingüísticas, ou seja, a concepção interacionista
de linguagem parecia estar subjacente à prática pedagógica daqueles professores.
Contraditoriamente, porém, pudemos também observar que os professores estão
desnorteados e perplexos, sem saber como agir diante das atuais propostas para o ensino da
língua portuguesa. Daí a imagem depreendida por nós, de sujeitos-professores
desorientados e, novamente, frustrados. Isso porque eles se vêem como profissionais
qualificados que dominam um repertório adequado de conhecimentos (inclusive os
teóricos) que os habilita para o ensino eficiente da língua portuguesa. Todavia, os sentidos
que vazaram de seus discursos bem como a observação do desempenho em sala de aula,
evidenciaram uma concepção tradicional de ensino, moldada apenas nos parâmetros da
norma culta e na memorização da metalinguagem gramatical. Do que se conclui que o
conteúdo de ensino da língua portuguesa pouco mudou ao longo dos anos e que o professor
procura mascarar essa imobilidade através de seu discurso que, por sua vez, mostra-se
atravessado pela voz dos colegas, dos alunos, dos pais, dos órgãos oficiais de ensino e da
própria sociedade. Vale dizer que ao usar a palavra do outro, o sujeito-professor busca se
afastar de uma heterogeneidade que o constitui e que constitui o seu discurso, mascarando
sua posição num jogo que encobre sua própria identidade.
Quando levantamos as imagens que o professor constrói sobre o livro didático,
verificamos que eles rejeitaram a hipótese de que o livro é um instrumento imprescindível,
uma voz soberana que se sobrepõe à autoridade do professor, o que vem ao encontro
daquela imagem de professor-profissional, autoconfiante e seguro. Mas, mais uma vez, as
análises apontaram incoerências e conflitos, pois, enquanto em seus discursos emerge a
imagem de um professor valorizado, que se nega a ser um mero executor de aulas
preparadas por outros, a prática de sala de aula mostrou que o professor incorpora as
verdades contidas nos livros e as reproduz fielmente. Com efeito, o professor se deixa levar
pelo discurso de verdade dos manuais (GRIGOLETTO, 1999), fixando-se na posição de
mero reprodutor dessas verdades. Nas palavras de Orlandi (1987), o professor não instaura
o polêmico, não exerce sua capacidade de discordância e, por isso, aceita a estagnação
nessa posição que esfacela a sua autonomia e, por conseguinte, a sua identidade
profissional.
162
O quadro que se desenhou a partir das interpretações dos sentidos contidos nos
discursos analisados confirmou a premissa básica apresentada logo na introdução deste
nosso estudo: ao professor é reservado, não raro, o “lugar do morto” (NÓVOA, 1995), ou
seja, o de referente passivo dos discursos sobre educação. E a manutenção do professor
nesse lugar é reforçada, no nosso entendimento, pelos discursos dos autores de livros
didáticos, especialmente quando falam diretamente ao professor. Através das cartas de
apresentação da obra, das orientações didático-pedagógicas e das respostas dadas aos
exercícios, verificamos que o discurso dos autores, na maioria das vezes, não concebe o
professor como o principal agente do processo de ensino da língua, sublinhando uma
tendência que valoriza a relação aluno – conhecimento transmitido pelo livro didático, com
os professores ocupando, então, o lugar do morto.
Subjacentes aos dizeres inscritos nos livros didáticos, localizamos vozes que
denotam uma grande desvalorização da qualificação dos professores. Ainda que, dos três
livros analisados, um tenha deixado transparecer, a rigor, uma imagem de professor
reflexivo, estamos convencidos de que a maioria absoluta dos livros utilizados nas escolas
públicas brasileiras, a exemplo dos outros dois que compuseram nosso corpus, vêem esse
professor como um sujeito mal-formado, despreparado, executor acrítico de tarefas,
fracassado, desnorteado. A impressão que fica é que o professor de língua portuguesa não
possui a menor capacidade cognitiva para dar direcionamento ao ensino da língua
portuguesa. Se atentarmos para o fato de que a identidade do sujeito se constrói através da
alteridade e que quem nos diz como somos é o outro, uma vez que o “eu” se descobre
através desse outro olhar, fica, então, evidente o esfacelamento da identidade do docente
refletido no olhar do livro didático que, de certo modo, decreta a inoperância das
capacidades de análise, de avaliação e de criatividade dos professores, tal como
defendemos ao longo da pesquisa.
O entendimento do professor como sujeito portador de uma identidade plural,
forjada na relação com o outro, convida-nos a repensar a constituição dos livros didáticos,
especificamente o manual do professor. Não acreditamos que seja possível modificar
totalmente esse quadro, uma vez que o discurso do livro didático, como, aliás, qualquer
outro, é regulado ideologicamente através das instituições sociais. Além disso, muitos são
os fatores que contribuem para que o livro didático se torne um elemento imprescindível
163
nos contextos escolares. Contudo, gostaríamos de crer que, ao inserirmos nossas reflexões
nos debates que visam combater a imagem de debilidade profissional do professor de
língua portuguesa, estamos também contribuindo para possíveis deslocamentos no sentido
de resgatar ou conquistar doravante a imagem de professor profissional, reflexivo. Isso
porque, como professores, nunca deixamos de acreditar na relevância e na especificidade
do trabalho do professor de língua portuguesa.
Para finalizar, valemo-nos novamente das palavras de Nóvoa (1995, p.36) para
reiterar a importância de se deslocar o professor do “lugar do morto”.
Os professores não são certamente “os salvadores do mundo”,
mas também não são “meros agentes” de uma ordem que os
ultrapassa. Só através de uma reelaboração permanente de uma
identidade profissional, os professores poderão definir
estratégias de ação que não podem mudar tudo, mas que
podem mudar alguma coisa. E esta alguma coisa não é coisa
pouca.
164
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WOODWARD, K. Identidade: uma introdução teórica e conceitual. In. SILVA T.T. (Org.).
A produção social da identidade e da diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais.
Petrópolis: Vozes, 2000. p.7-72.
171
ANEXO
172
ANEXO I – Questionário aos professores de língua portuguesa.
Prezado(a) professor(a)
Estou realizando uma pesquisa, com vistas a uma dissertação de mestrado, sobre o papel do livro
didático na construção da identidade do professor de língua portuguesa. Este questionário visa a levantar
algumas características da identidade do docente a partir de suas opiniões, sentimentos, interesses,
expectativas e situações vivenciadas. Para o sucesso de minha pesquisa, preciso que suas respostas sejam
sinceras.
Comprometo-me a manter sigilo quanto às informações aqui contidas e asseguro que não as divulgarei
isoladamente em nenhuma hipótese.
Muito obrigada por sua colaboração.
Denise Gabriel Witzel
Fones: (0xx42)623.28.23 / 99.64.99.19
E.mail: witzel@gol.psi.br
DADOS SOBRE O PROFESSOR
1. Faixa etária:
( ) menos de 20 ( ) 20 a 30 ( ) 31 a 40 ( ) 41 a 50 ( ) 50 a 60 ( ) mais de 60
2. Sexo:
( ) masculino ( ) feminino
3. Você é:
( ) solteiro(a) ( ) casado(a) ( ) separado(a)
4. Nível de renda (em salários mínimos):
( ) até 3 ( ) 3 a 5 ( ) 5 a 8 ( ) 8 a 12 ( ) mais de 12
5. Nível de escolaridade:
( ) 3º grau incompleto ( ) 3º grau completo ( ) especialização ( ) mestrado ( )
doutorado
6. Nome da faculdade em que você cursou (ou cursa): a) graduação: ________________________
b) especialização: _____________________
c) mestrado: _________________________
d) doutorado: ________________________
7. Nome do curso que você cursou (ou cursa): a) graduação: ______________________________
b) especialização: ___________________________
c) mestrado: _______________________________
d) doutorado: ______________________________
173
DADOS SOBRE A PROFISSÃO
1. Nível em que você atua:
( ) ensino fundamental ( ) ensino médio ( ) ensino superior
[ ] instituição pública [ ] instituição pública [ ] instituição pública
[ ] instituição particular [ ] instituição particular [ ] instituição particular
2. Há quanto tempo você é professor (a) ? ________________________________________________
3. Qual(is) disciplina(s) você leciona? ___________________________________________________
4. Qual é a sua carga horária semanal de aulas? ___________________________________________
5. Se você atua no ensino público, qual é o seu regime de trabalho? ___________________________
6. A formação profissional que você teve, ou está tendo, pode ser considerada:
( ) excelente ( ) boa ( ) precária
7. Relacione os motivos que o (a) levaram a ser professor (a) de Língua Portuguesa.
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
8. Quais são as coisas que mais o (a) aborrecem na profissão? (se necessário, use o verso desta folha)
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
9. E quais são as coisas de que você mais gosta na profissão? (se necessário, use o verso desta folha)
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
10. Se pudesse, você mudaria de profissão? Por quê?
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
11. Faça uma rápida avaliação da sua prática pedagógica no ensino da língua portuguesa, considerando:
a) os objetivos que, como professor de português, você procura atingir;
b) a atividade (ou conteúdo) que você desenvolve com mais prazer e mais à vontade;
c) a atividade (ou conteúdo) que você considera difícil trabalhar com os alunos e a forma como procura
resolver esse problema.
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
174
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
12. Você participa dos cursos de capacitação docente, promovidos pela SEED? ( ) Sim ( ) Não
13. Caso você tenha respondido SIM, de quantos cursos de capacitação você participou nos últimos dois anos
e qual é a sua opinião sobre esses cursos?
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
14. Nas aulas de Língua Portuguesa, você utiliza livro didático? Sim ( ) Não ( )
Para os que responderam SIM:
a) Qual livro você utiliza?
________________________________________________________________________________________
b) Como foi feita a escolha desse livro?
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
c) Quais critérios foram considerados na hora da escolha?
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
d) Na sua opinião, qual é o papel do livro didático nas aulas de Língua Portuguesa?
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
Para os que responderam NÃO
a) Por que você não utiliza livro didático?
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
b) Em que você se baseia para preparar as suas aulas?
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
175
c) Qual é a sua opinião sobre o papel do livro didático nas aulas de Língua Portuguesa?
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________
15. Caso queira se identificar, por favor, acrescente aqui seus dados:
Nome:__________________________________________________________________________________
Endereço:________________________________________________________________________________
Fone: ___________________________________________________________________________________
Estabelecimento de Ensino: _________________________________


COPYRIGHT DEVIDO AOS AUTORES DO TEXTO.________________________________

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