sábado, 12 de junho de 2010

970 - RESUMO DO FEUDALISMO

A QUESTÃO DA TRANSIÇÃO E A TEORIA DEMOCRÁTICA




Maria Cristina Soares Paniago

Doutoranda em Serviço Social – UFRJ


A Transição, como um processo de passagem a uma "nova forma histórica", nos coloca uma série de questões que merecem um enfrentamento teórico não conivente com quaisquer restrições de natureza política ou ideológica que possam prejudicar uma análise rigorosa das experiências vividas pelo "socialismo real" ou pelo welfare state. "(...) contribuir para a clarificação de problemas freqüentemente não reconhecidos ou mal compreendidos" (Sweezy,1971:163) da Transição é uma necessidade histórica colocada àqueles inconformados com as propostas de emancipação parcial ou libertação gradual, mas comprometidos com a superação de todas as formas de subordinação entre os homens, cuja condição, para Marx (1979:142), é "a abolição de todas as classes, do mesmo modo que a condição da emancipação do terceiro estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens."

Marx ocupou-se com as questões teóricas necessárias ao desvelamento da realidade histórica movida pelo liberalismo, enquanto representação ideológica das necessidades de desenvolvimento da dinâmica capitalista. Foi a partir da crítica contundente aos fundamentos econômicos, filosóficos e políticos da sociedade burguesa que ele pôde, nas palavras de Mészáros (1995:cap.11), "elaborar uma visão de mundo científica voltada a transcender o ‘fetichismo da mercadoria’ do ponto de vista de uma ‘nova forma histórica’". Nos forneceu uma teoria sobre o capital e sobre a necessidade de sua superação, mas não uma teoria sobre as modalidades prático-políticas de se chegar ao comunismo.

O que não quer dizer que tenha desconsiderado os problemas da Transição; deixa clara sua preocupação na discussão levada anos depois d’O Capital na Crítica ao Programa de Gotha (sem falar no Manifesto Comunista de 1848). Marx não consegue nem mesmo concluir seu programa de estudos sobre o capital, mas nos deixa um legado teórico repleto de indicações sobre a versatilidade do capital em adaptar-se às novas necessidades históricas de seu processo de acumulação, sempre recobrindo-as com uma adequada aparência política. E mais, nos alerta sobre as formas incompletas e ilusórias de sua superação apregoadas pelas mais diversas correntes políticas já existentes em seu tempo.

Restou às gerações seguintes realizar o projeto de uma sociedade emancipada, definindo o processo de Transição, ou seja, a passagem de uma sociedade movida pela lógica do capital a outra onde o que vigora é o interesse dos produtores livres e associados.

Para Sweezy (1971:143),

Não há nenhuma teoria geral sobre a Transição entre sistemas sociais. Isto não se deve ao fato de se ter dado relativamente pouca atenção a tal assunto – embora isso seja indubitavelmente verdade – mas à circunstância de cada período de Transição ser um processo histórico original, necessitando portanto de ser analisado e explicado como tal.

O recurso à análise de experiências históricas anteriores, como do feudalismo ao capitalismo, ou da notável tentativa de construção do socialismo na União Soviética, com o objetivo de identificar elementos elucidadores dos fracassos e êxitos (mesmo que parciais e temporários, no segundo caso) até agora obtidos, é de fundamental importância para darmos um passo adiante na construção do socialismo.

A passagem do feudalismo ao capitalismo constituiu um processo que atravessou os séculos, até a definitiva abolição com a revolução burguesa no final do século XVIII. Foi no interior do ancien régime que se gestou a classe revolucionária que iria aboli-lo e a afirmação do novo modo de produção capitalista cuja acumulação primitiva pôde ser realizada sem que colocasse em xeque, no momento de sua gênese e início de desenvolvimento, as antigas relações sociais e produtivas feudais, a despeito dos inumeráveis conflitos de interesses. De uma formação social a outra coexistiam e se consolidavam, ainda que a presença ou ausência, enquanto relação social dominante do capital imputasse significativas diferenças entre elas, a propriedade privada, a exploração do trabalho, e por conseqüência, numa progressão impulsionada pela acumulação primitiva, as classes, a divisão do trabalho, e a consolidação crescente do mercado como locus da realização do valor de troca.

Para a realização e consolidação da ordem do capital ocorreram algumas modificações substanciais, se comparadas com sua forma incipiente na sociedade feudal, que resultaram num "modo de controle social metabólico fundamentalmente incontrolável", segundo Mészáros (1995:cap.2). O capital passa de um elemento subordinado e perseguido pela Igreja (na condenação à usura) e pelas instituições feudais (que reivindicavam a usurpação das terras para a conservação de seu poder) a um "modo de controle social metabólico" elevado a "domínio absoluto como um sistema global". Opera a separação definitiva entre produção material e controle, e, ao invés de permanecer subordinado como na ordem anterior, assume total domínio sobre a vida de todos os homens.

A complexidade dessas relações capitalistas e as necessidades sociais próprias a uma dinâmica de acumulação totalizante e absolutizante não deixam dúvidas sobre a impossibilidade de reversão dessa lógica a partir de seu próprio interior. Afirma Sweezy (1971:147), com base em Marx, que "O socialismo em si não pode criar suas raízes e desenvolver-se nos limites da sociedade capitalista, como o capitalismo fez sob o feudalismo".

Mesmo as experiências mais bem intencionadas no sentido de promover o homem frente a reificação da vida moderna, nos revelaram os mais diversificados problemas tendo predominado os elementos de continuidade do capitalismo sob novas formas de regência do capital, como vimos na situação atual nos países do Leste Europeu. Aqui torna-se totalmente compreensível a afirmação de que o "período de Transição é uma via com dois sentidos"(Sweezy,1971:43). Por um lado, o socialismo não constitui um caminho natural da luta de classes; encontram-se dadas as condições para sua conquista, mas apenas enquanto possibilidade. E de outro, rapidamente restabelecem-se as condições de existência da sociedade anterior, mediante a incompleta realização dessa possibilidade.

Num outro polo de experiências históricas, se nos voltamos ao que fundamenta a teoria democrática, a problemática da Transição, e seu conteúdo de superação, nem mesmo comparece. A teoria democrática procura encontrar meios de contornar os efeitos fundamentalmente excludentes e incontroláveis da dinâmica do capital. Ela permanece prisioneira de seus próprios limites e endereça todo esforço investigativo em direção a formas mais aperfeiçoadas e autônomas de instituições democráticas, com vistas a uma coexistência mais equilibrada entre mercado, Estado e sociedade civil.

O que importa é encontrar caminhos de "menor resistência", onde se possam alojar, no seio da sociedade de mercado, espaços de cidadania democrática. Não se pode pensar sob um ponto de vista de Transição a uma nova forma histórica de sociabilidade humana. Está muito mais presente uma busca de alternativas conciliatórias, e por que não, de capitulação frente à "naturalização" do mercado, do que um recuo estratégico temporário frente às impossibilidades presentes (e historicamente determinadas) de se iniciar um caminho de Transição que aponte para além do capital.

A teoria democrática se coloca num horizonte teórico onde a história se esvanece em formas reiterativas de sociedade mais, ou menos, democráticas, permanecendo prisioneira de institutos procedimentais inovadores, ou na aposta de que uma racionalidade comunicativa viria sobrepor-se aos interesses competitivos e divergentes, algo só concebível num âmbito social onde a luta de classes fosse um elemento teórico-político de menor importância.

A ausência de uma perspectiva de Transição a uma nova forma histórica presente na teoria democrática revela uma subordinação voluntária, ou involuntária, ao limite absoluto imposto pela ordem social capitalista (igualdade política inexoravelmente vinculada à desigualdade econômica frente aos meios de produção), uma vez que permanecem inquestionados seus elementos constitutivos fundamentais: o mercado e a expropriação do trabalho alheio. E aqui estamos nos referindo à ausência de medidas e propostas de uma "temporalidade de longo prazo das transformações", necessárias, no entanto, para que as conquistas democráticas não se restrinjam às "reivindicações já realizadas" do receituário do Estado democrático, conforme referência crítica de Marx ao Programa de Gotha (1974:30). Ou que se constituam em "falsas mediações", "constantemente produzidas pela ordem estabelecida de tal modo a integrar as forças de oposição."(Mészáros,1995:cap.13)

A teoria democrática sacrifica o aspecto revolucionário que as conquistas democráticas (enquanto conquista dos trabalhadores e meio para uma transformação radical da ordem existente) poderiam ter para os trabalhadores, uma vez que as transforma em objetivo-fim. Dessa forma, as mediações políticas utilizadas (e aqui cabem todos os instrumentos e procedimentos democráticos aperfeiçoáveis e extensivos) permanecem desprovidas do "sentido e direção globais do processo" e de "objetivos mais amplos"; perde contato com a totalidade social e acaba por esvaziá-la de todo seu conteúdo histórico. Perde a dimensão histórica de todo agir humano na medida em que se submete às imposições do presente (naturalizando o mercado) e passa a infirmar seus próprios fundamentos e objetivos democráticos, deixando-os à mercê de sua base genética liberal.

Ao entender como compatível com a ordem capitalista a efetivação da universalização dos institutos democráticos, e ao atribuir-lhes um caráter libertador e igualitário, a teoria democrática passa, mesmo que involuntariamente, a compartilhar do ponto de vista do "fim da história".

Escolheram trabalhar com o aperfeiçoamento dos institutos democráticos (ao contrário do reconhecimento da essência do Estado escolheram atuar sobre a forma do Estado) numa composição com a economia de mercado. Se não descartam a necessidade de colocá-la sobre controle, não vêem a democracia como incompatível com as relações burguesas de produção, e portanto, ignoram seu limite absoluto.

Ao perderem a perspectiva da democracia enquanto um objetivo-meio à construção de uma sociedade emancipada do capital, esvaziam-na de todo conteúdo transicional e a transformam em um instrumento do conservantismo (com um Estado capitalista melhorado) e do liberalismo-democrático (presença equilibrada da igualdade política e da desigualdade econômica), ambos incapazes de possibilitar o salto a uma nova forma histórica.

E assim, a problemática da Transição desaparece do horizonte teórico da teoria democrática, ou transforma-se em transição do senso comum a lugar nenhum. E a história se restringe à reiteração do "velho" transvestido de "novo".

Cabe, portanto, a nós, marxistas comprometidos com a Transição ao socialismo, o desenvolvimento daquilo que Marx nos legou como a anatomia da sociedade burguesa, enquanto ciência viva do movimento do real, portanto, histórica. E para uma teoria que vise a emancipação humana, a "perspectiva de uma história aberta é muito mais fecunda."


Maceió, Agosto de 1999.

Endereço: Chácaras da Lagoa, Q. E, Lt. 17 – Tabuleiro – 57070-000 - Maceió - AL








V. Bibliografia


FREDERICO, C. Crise do Socialismo e Movimento Operário. São Paulo: Cortez Editora,1994.

MARX, K. Miseria de la Filosofia. Moscú: Editorial Progreso, 1979.

MARX, K, Engels,F. Crítica dos Programas Socialistas de Gotha e de Erfurt. Porto: Tipografia Nunes, 1974.

MÉSZÁROS, I. Beyond Capital (caps.2,11e13). London: Merlin Press, 1995.

NETTO, José Paulo. "Notas sobre democracia e transição socialista". In Democracia e Transição Socialista - Escritos de Teoria e Política. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990

SWEEZY, P., Bettelheim, C. A Transição para o Socialismo. Lisboa: Edições 70, 1971.


COPYRIGHT DEVIDO AO AUTOR DO TEXTO.

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