terça-feira, 8 de junho de 2010

689 - ESTADO TAMPÃO (DÁCIA ROMANA)

Reportagem

edição 71 - Setembro 2009


Uma encruzilhada fatal
O Afeganistão está no cruzamento político mais “quente” do planeta. Os vizinhos Paquistão e Índia, detentores de armas nucleares, disputam a Caxemira desde 1947, e o primeiro está no limiar do abismo político. É nessa zona cheia de armadilhas que Obama embrenhou ainda mais os Estados Unidos
por Osvaldo Coggiola
© Pascal Manoukian/Sygma/Corbis/Latinstock

Foto de 1980, na província de Kunar, onde combatentes afegãos das montanhas, os chamados mujahedin humilharam soviéticos que tentaram invadir o país

De rota de intercâmbio comercial entre Império Romano, China e Índia, o Afeganistão se tornou, no século VII, zona de conquista islâmica e, mais tarde, no século XVIII, colônia britânica. Túmulo de pretensões soviéticas no século XX, esse campo milenar de conflitos acabou se transformando em uma espécie de pesadelo ocidental do século XXI.

Em outubro de 2001, depois dos atentados de 11 de setembro, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) invadiu o Afeganistão, basicamente com forças dos Estados Unidos. Está lá até hoje, em uma ofensiva adotada como prioridade na política externa do presidente americano Barack Obama. A história antiga e a recente do país, porém, indicam que é grande o perigo de um revés, de consequências globais.

Em 2003, a suposta cumplicidade de Saddam Hussein com a Al-Qaeda levou os EUA, sem o aval da ONU, a invadir o Iraque. Embora o regime talibã, no Afeganistão, e o de Saddam, no Iraque, tenham sido derrubados, as duas ocupações foram se transformando em um inferno para os americanos, com fortes perdas militares, violações escancaradas do direito internacional, uso público da tortura (em Guantánamo e outras bases militares extraterritoriais) e desprestígio internacional crescente.

Recém-eleito, Obama pretendeu dar uma virada política: o novo presidente anunciou a retirada dos EUA do Iraque até 2012, mas decidiu manter (e reforçar) a presença no Afeganistão. Mesmo porque o presidente afegão Hamid Karzai foi escolhido a dedo para aceitar a ocupação militar na Ásia Central, e a presença americana nesse país conta com o aval da chamada “comunidade internacional”.
Coleção Particular / © Costa/Leemage/OtherIm ages

Já no começo do século XX, os guerrilheiros do Afeganistão lutavam contra invasores, no caso, os britânicos Terceira guerra anglo-afegã, ilustração, autor desconhecido, 1908

O país no qual Obama insiste em manter suas forças militares, porém, está situado na encruzilhada geopolítica mais “quente” do planeta. Faz fronteira com várias repúblicas da ex- União Soviética e com o Irã e a China. Outro vizinho, o Paquistão, disputa com a Índia o controle da Caxemira desde 1947, depois do fim da colonização britânica no território. Assim, os conflitos atuais pelo controle do Afeganistão são uma extensão da luta histórica entre as potências pelo controle da Ásia Central e seus recursos naturais, bem como da sua posição estratégica no meio da Eurásia.

As ações dos EUA sob o governo democrata não se fizeram esperar. No início de maio de 2009, a ocupação militar no Afeganistão, batizada de “Liberdade Duradoura”, produziu uma nova ofensiva contra insurgentes na província de Farah, que destruiu várias aldeias, deixando 140 mortos, incluídas 93 crianças. No último ano do governo Bush, 2.118 civis morreram no Afeganistão (64% devido a ataques aéreos americanos), uma média de seis mortes por dia, segundo dados oficiais da ONU, mas a cifra é provavelmente mais alta.

Depois de oito anos no Afeganistão, o fracasso dos ocupantes é visível. Os talibãs operam ou dominam 75% do território, e a autoridade efetiva do governo dócil ao Ocidente não se estende além da capital, Cabul. No Paquistão, os talibãs são fortes no vale de Swat, a pouco mais de 100 km da capital, Islamabad. Os refugiados de Swat já passam de 1 milhão. A Otan nunca conseguiu fechar a fronteira entre os dois países ou impedir que os talibãs afegãos recebessem refúgio, armas, recursos e treinamento no Paquistão.

A chamada fronteira “Af-Pak”, herança das intervenções colonialistas, divide o que durante 2 mil anos foi uma região cultural, política e econômica única, a dos pashtun. Em que pese todo o investimento militar da Otan, os talibãs ressurgiram em todo o sul do Afeganistão e na fronteira e dentro do Paquistão, porque aparecem como representantes de uma reivindicação nacional pashtun diante da invasão ocidental e dos regimes dos dois países.
Biblioteca Britânica, Londres

Marco Pólo e sua família viajavam em caravana de camelos pela rota da seda, que incluía boa parte da região de conflito dos dias atuais Atlas catalão (detalhe), pergaminho, escola espanhola, 1375

No Paquistão, a reivindicação dos direitos dos pashtun está originalmente ligada à luta dos camponeses pela terra, ainda hoje em mãos de uma oligarquia agrária. Os talibãs impulsionaram uma espécie de revolta dos sem-terra de Swat contra os grandes proprietários. Mas dificilmente poderiam encabeçar uma revolta nacional em um país majoritariamente laico.

Fora das zonas pashtun, os grupos islâmicos do Paquistão são um instrumento armado e apoiado pelo Exército e os serviços de inteligência locais. Obama simplesmente não pode enviar tropas dos EUA ao Paquistão e, por isso, depende dos militares desse país para combater os talibãs. Ocorre que as forças armadas paquistanesas têm suas próprias prioridades e disputas territoriais imediatas a administrar. É bom lembrar que os grupos islâmicos sempre foram encorajados a atuar como força de choque contra a Índia no conflito pela Caxemira. Sem solução nessa frente, o Exército paquistanês continuaria com essa mesma estratégia.

O Afeganistão é um Estado dividido em “feudos”. O Paquistão e a Índia são Estados detentores de armas nucleares, e o primeiro está no limiar do abismo político. Dos dois lados da fronteira “Af-Pak” campeia o vazio. A pressão dos EUA fez saltar o precário equilíbrio que existia entre os diversos componentes nacionais e étnicos desses países, em uma crise que envolve a disputa indopaquistanesa pela Caxemira, conflito potencialmente nuclear. É nessa encruzilhada fatal que Obama embrenhou mais os EUA, sob o risco de transformar em global o conflito mais explosivo do planeta.

PELOS SÉCULOS O Afeganistão é o produto do cruzamento de diversos povos e civilizações. A primeira unificação territorial ocorreu no século IV a.C., com um reino de tribos arianas. Em 250 a.C., formou-se um reino independente, com a afirmação de uma civilização greco-búdica, nascida da troca de influências helênicas e indianas, e com escrita própria. O império, que teve seu auge no reinado de Kanishka, tornou-se um local de passagem de grande importância no intercâmbio entre o Império Romano, a Índia e a China. As rotas das caravanas da Ásia Central, em especial a rota da seda, ajudaram na difusão do budismo na China.
© Sayed Salahuddin/Reuters/Latinstock

Membros da etnia pashtun, em Kandahar: eles são herdeiros da cultura única que une o Paquistão e o Afeganistão

Quando os árabes conquistaram a região, no século VII, encontraram alguma resistência à implantação do islamismo, que, contudo, se impôs definitivamente na primeira metade do século VIII. A região foi designada pelos árabes como Khorassan (país do leste). Com a descoberta do caminho marítimo para as Índias, a rota da seda deixou de ter importância, levando à decadência de Khorassan. O grupo étnico pashtun, ariano, começou a ganhar importância em relação às outras etnias.

A Inglaterra passou a dominar o subcontinente indiano depois do Tratado de Paris de 1763. Mas o Império Russo começou a investir na região, para pressionar a Índia, então sob domínio britânico. Em 1837, a Inglaterra fez uma aliança com a monarquia afegã por temer uma invasão russo-persa, e, em 1839, os ingleses conquistaram o país, encontrando forte resistência nos anos que se seguiram.

Em 1842, o rei Dost Mohammed reconquistou o trono no Afeganistão, governando até 1863. Seu sucessor aproximou-se da Rússia czarista, que tinha estendido sua influência ao Turcomenistão. Em 1878, a Inglaterra invadiu novamente o Afeganistão.

PROTETORADO A rivalidade anglo-russa havia sido uma constante na questão relativa ao Império Otomano. Com a decisão russa de expandir-se na Ásia Central na década de 1880, aproximando-se assim das fronteiras da Índia, principal colônia inglesa, a Inglaterra impôs um quase protetorado ao Afeganistão (com o Tratado de Gandumak, extremamente desfavorável aos afegãos), que se constituiu assim em um Estado-tampão entre as duas potências. A tensão levou à iminência de uma guerra anglo-russa, provisoriamente sufocada.
© Adrees Latif/Reuters/Latinstock

Colorida e explosiva: caminhões tentam sair do Afeganistão em direção ao Paquistão; a fronteira Af-Pak abriga, dos dois lados, militantes fundamentalistas

Em 1881, os ingleses saíram do país, colocando Abdur Rahman no trono, um homem leal aceitável para ingleses e russos, que governou o Afeganistão até 1901 e foi sucedido por seu filho Habibullah. Na convenção de São Petersburgo, em 1907, a Rússia concordou que o Afeganistão ficasse fora de sua esfera de influência. Habibullah manteve a neutralidade do Afeganistão durante a Primeira Guerra Mundial, suportou o primeiro movimento pela adoção de uma constituição e foi assassinado por nacionalistas em 1919.

Seu filho Amanullah ocupou o trono e rompeu com os tratados anteriores, provocando a terceira guerra anglo-afegã. Fez recuar os ingleses, aboliu a servidão e até tocou no estatuto da mulher, o que provocou sua queda. Com a saída dos britânicos da Índia, Daud Khan, general e primo do rei, aproximou-se da URSS, depois de resolvidas algumas questões de fronteira com o recém-formado Paquistão.

Em 1964, o Afeganistão adotou uma Constituição, de regime parlamentar (monarquia constitucional). Em 1973, Daud Kahn deu um golpe de Estado, proclamando a República, e adotou uma política de aproximação com os países muçulmanos, principalmente a Arábia Saudita. Foi deposto em abril de 1978, com a ascensão ao poder do Partido Democrático e Popular, pró-URSS.

O Afeganistão foi invadido e ocupado pela União Soviética em dezembro de 1979, que impôs Brabak Karmal no governo. Um total de 118 mil soldados soviéticos tomou o controle das principais cidades e meios de comunicação, mas não conseguiu derrotar os rebeldes mujahedin (combatentes) nas montanhas.
Os soviéticos se retiraram em fevereiro de 1989, com um Exército desmoralizado e sem sustentação logística – sua propalada superioridade simplesmente ruiu no confronto com a guerrilha. As forças anticomunistas (incluídos os talibãs, milícia sunita da etnia pashtu) foram supridas e treinadas pelos EUA (que hoje as combatem), Arábia Saudita, Paquistão e China.

O país padecia de enorme pobreza, de uma infraestrutura devastada e de exaustão dos recursos naturais, com 3 a 4 milhões de afegãos sofrendo de inanição. A nova fase da guerra civil teve início em 1992, quando uma aliança de movimentos guerrilheiros derrubou o regime de Najibullah, a última herança da presença soviética. As negociações para a formação de um governo de coalizão degeneraram em confrontos.

A vitória dos talibãs, islâmicos fundamentalistas, permitiu a superação rápida da regionalização, com todas as cidades importantes sob seu controle: Herat em 1995, Cabul em 1996, Mazar-i-Sharif en 1998. Cerca de 1 milhão de pessoas morreram na guerra. Outros 2,5 milhões ficaram refugiados em países vizinhos.

O Irã ameaçou deslocar tropas em defesa da minoria xiita afegã. O governo indiano acusou os talibãs de apoiar os separatistas muçulmanos na Caxemira. A Federação Russa denunciou o envolvimento do Afeganistão com os separatistas muçulmanos da Chechênia e do Daguestão. Os EUA, que armaram os guerrilheiros islâmicos durante a invasão soviética, pressionaram os fundamentalistas afegãos para que extraditassem o saudita Osama Bin Laden, responsabilizado por ataques terroristas a embaixadas americanas na África.
O governo fundamentalista era apoiado só pela Arábia Saudita, pelos Emirados Árabes e pelo Paquistão. A ONU impôs sanções econômicas ao país em 1999, até que o terrorista Bin Laden, líder da Al-Qaeda, fosse entregue a um tribunal internacional.

Subsistiu a resistência ao regime talibã no centro e nordeste, comandada pelo ex-ministro Ahmed Shah Massoud. Fracassaram, em 1999, as negociações de paz, patrocinadas pela Arábia Saudita, entre o governo fundamentalista islâmico e a Frente Islâmica Unida de Salvação, de Massoud. O assassinato deste, em 9 de setembro de 2001, parecia a vitória final dos talibãs. Dois dias depois...

PESADELO AMERICANO Os atentados de 11 de setembro contra as torres gêmeas em Nova York foram atribuídos a Osama Bin Laden, o líder da Al-Qaeda protegido pelo regime talibã. Os EUA e forças aliadas, junto ao grupo afegão Aliança do Norte, lançaram uma campanha militar em 7 de outubro de 2001. Em pouco tempo, os talibãs tiveram de abandonar Cabul e as principais cidades. Os EUA bombardearam posições militares, cidades, aldeias, caçando e prendendo supostos terroristas e enviando-os para a base militar de Guantánamo, em Cuba.

No Afeganistão, o presidente Hamid Karzai foi imposto por Washington, mas não conseguiu impor sua autoridade em um país patrulhado por tropas americanas e da Otan, com 26 milhões de habitantes e expectativa de vida de 46 anos (homens) e 45 anos (mulheres). As províncias continuaram dominadas pelos “senhores da guerra”, o Talibã reagrupou-se nas escolas islâmicas do outro lado da fronteira com o Paquistão. Onde também se encontra, provavelmente, Bin Laden, com o que restou de seus partidários.

ACADEMIA DO TERROR
© Reuters/Latinstock

Militantes do Talibã: o violento “reinado” desse grupo começou em 1996, com o apoio indireto dos Estados Unidos

Na maior parte do século XX, os “fundamentalistas islâmicos” eram grupos de estudiosos do Corão, sem maior influência política, espalhados pelo mundo árabe-islâmico. O termo “fundamentalista” (usuli) existe no Islã há séculos: designa, no sentido tradicional, apenas os acadêmicos da ilm AL usul, a ciência dedicada ao estudo do fiqh (direito islâmico).

O islamismo político, incluído o “fundamentalismo”, foi uma presença constante na luta política das nações árabes no século XX. Baseia-se nos símbolos tradicionais, mas o idioma e as políticas dos fundamentalismos são uma forma de ideologia contemporânea, que usa o passado com finalidades do momento e formas emprestadas das ideologias modernas.

Segundo alguns autores, o fundamentalismo mais recente foi obra do ex-secretário de Estado norte-americano John Foster Dulles. Com a derrota dos ingleses e franceses no conflito do canal de Suez, em 1956, os EUA estavam alarmados. A ascensão de Gamal Nasser, no Egito, e de outros líderes “populistas de esquerda”, no Médio Oriente, ameaçava seus interesses em relação ao petróleo.

Durante três a quatro décadas, os EUA fomentaram o fundamentalismo. As organizações fundamentalistas serviram como forças de choque de ditaduras e outros regimes patrocinados pelos americanos. Os militantes do Sarakat-para-Islã, por exemplo, foram informantes e agentes do Estado nas execuções de cerca de 1 milhão de comunistas nas mãos da ditadura de Sukharno na Indonésia, em 1965. No Egito, na Síria e em outros países islâmicos, organizações como a Akhwan ul-Muslimeen foram usadas para desestabilizar regimes de esquerda.

O renascimento do Islã como movimento político de massas deu-se em dois eventos em 1979: a Revolução Iraniana e a resistência afegã contra a invasão soviética. No segundo, para se contrapor à expansão da URSS, os EUA contaram com o apoio do Paquistão e da Arábia Saudita, de população principalmente sunita, cujas elites queriam expulsar o “invasor vermelho e ateu” e contrabalançar o poder e a influência da revolução xiita iraniana.

No Paquistão, o grupo Jamaat-para-Islami era a ferramenta do governo para reprimir forças de esquerda. Durante o regime de lei marcial do general Zia-ul-Haq, esse grupo eliminou ativistas que lutavam contra a ditadura. Nos anos 80, os EUA financiaram os grupos da Al- Qaeda contra a URSS, no Afeganistão. Chamavam-nos de “combatentes da liberdade”.

No Afeganistão, os talibãs tomaram o poder em 1996: foram os EUA, pela mão do Paquistão e com o apoio da Arábia Saudita, que deram o sinal verde para que o grupo instalasse seu reinado de terror. Desde 1980, financiaram as escolas de treinamento nos territórios tribais. Ali se formaram gerações a serviço das chamadas Organizações Sunitas de Peshawar e, depois, dos talibãs.

Os homens saídos da “academia do terror”, montada sob a supervisão da CIA, ficaram conhecidos como “os afegãos”, embora muitos fossem árabes. E foi no modelo saudita e kuaitiano de tratamento da população feminina que o Talibã inspirou-se para tratar, bestialmente, as mulheres afegãs. – O. C.
Osvaldo Coggiola é professor do programa de pós-graduação em história econômica da USP e autor do livro A revolução iraniana(Unesp, 2008)


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