segunda-feira, 7 de junho de 2010

552 - IMPÉRIO ROMANO

O MITO DO IMPÉRIO ROMANO: PONDERAÇÕES
SOBRE AS INTERFACES ENTRE HISTÓRIA E
CULTURA MIDIÁTICA
Carlos Eduardo Rebello de Mendonça*
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ
crebello@antares.com.br
Bianca Freire-Medeiros**
Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ
freiremedeiros@fgv.br
RESUMO: Uma análise sociologicamente produtiva das ficções de fundo histórico produzidas pela
Indústria Cultural não pode limitar-se a distinguir entre “verdade” e “ficção”, mas sim analisar as diversas
circunstâncias históricas que produziram esta ou aquela ficcionalização de um fato histórico, o que o
artigo abaixo pretende analisar fazendo um estudo de caso das vicissitudes sofridas pela representação
midiáticas da História da Roma antiga.
PALAVRAS-CHAVE: Império Romano – Cultura de Massa – Indústria Cultural
ABSTRACT: The sociological approach to a historically based Mass Culture fiction cannot limit the
content itself at telling the “truth” from “fiction”, but must strive at analyzing the historical context/
circumstances in which produces various versions of the same historical events/ facts have been
concocted – something for which the “mediatic” portrayal of Roman History in Mass Culture offers itself
as a ready case study.
KEYWORDS: Roman Empire – Mass Culture – Cultural Industry
A História é sem dúvida alguma a nossa
mitologia. Ela combina o ‘pensável’ com
suas origens [concretas] de acordo com o
modo pelo qual uma sociedade entende a si
mesma.
* Doutor em Sociologia pelo IUPERJ. Professor Adjunto do Departamento de Ciências-Sociais da
UERJ.
** Doutora em Teoria e História da Arte e Arquitetura pela Binghamton University – SUNY.
Pesquisadora do CPDOC/FGV.
Fênix – Revista de História e Estudos Culturais
Janeiro/ Fevereiro/ Março de 2008 Vol. 5 Ano V nº 1
ISSN: 1807-6971
Disponível em: www.revistafenix.pro.br
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MARCEL DE CERTEAU1
Sempre que se tenta realizar um estudo sobre a apresentação de acontecimentos
históricos reais – especialmente se situados no passado remoto – pela Cultura de Massa,
deve-se sempre evitar o truísmo de uma “verdade” sobre os acontecimentos que se
encontraria, no essencial, nas narrativas disponíveis em fontes secundárias. No caso da
História da Antiguidade Clássica, estas narrativas de há muito entraram no cânon
literário ocidental, o que lhes deu a dúbia distinção de serem percebidas como acima da
crítica,2 e que poderíamos tranqüilamente opô-las às “mentiras” da cultura midiática.
Nossas principais fontes escritas para a História da Roma Antiga são as
narrativas dos historiadores antigos, que escreveram séculos ou até milênios após os
acontecimentos que supostamente “descrevem”, e cuja escala de prioridades não é a de
um historiador positivista. Como diz Paul Veyne, o historiador antigo assumia, diante
daquilo que escrevia, uma postura muito mais próxima a de um jornalista investigativo
atual (História, em grego, significando “investigação”, “inquérito”) do que a de um
historiador moderno: ele era, em si mesmo, uma “autoridade”, e era isto que o tornava
capaz de preencher as (inevitáveis) lacunas de informação dos seus relatos de acordo
uma idéia preconcebida sobre aquilo que deveria ter acontecido.3
Já nos acostumamos à idéia de que a História remota de Roma, como a
encontramos em Tito Lívio, seja uma coleção de lendas alinhavadas pelo historiador.4
Mas ainda temos dificuldade em abordar períodos mais recentes da mesma História
Antiga sob esta ótica: foi necessário um artigo expressamente produzido para tal para
que pudéssemos perceber que a descrição que Tácito faz da morte da imperatriz
Messalina, com suas descrições mais do que detalhadas, não é útil por aquilo que ela
efetivamente diz, mas por revelar aquilo que Tácito pensava que devia ter acontecido.
5
1 CERTEAU, Marcel de. L’écriture de l’Histoire. Paris: Gallimard, 1975, p. 38.
2 “O moderno estudioso da Antiguidade [...] não pode escrever uma história de Roma reelaborando o
latim de Lívio [...]. O ‘patrimônio comum da pesquisa histórica’ que surgiu no século XVIII tornou
este procedimento inaceitável. Mas devemos acrescentar que [isto] não parece interferir na prática de
‘resgatar’ Lívio através da reescritura dos seus relatos [o que] termina tacitamente por aceitar a
veracidade essencial do original” – FINLEY, M. I. História Antiga – Testemunhos e Modelos.
Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 13.
3 Cf. VEYNE, Paul. Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes? Paris: Seuil, 1983, p. 21.
4 “Não é de espantar que, mesmo no estado irremediavelmente fragmentário do material sobre a
primitiva Roma que conseguiu sobreviver, exista uma incrível variedade de versões, variedade que
continuou a crescer e a se multiplicar até o início do Principado” (FINLEY, 1994, op. cit., p. 14.)
5 Cf. JOSHEL, Sandra R. Female desire and the discourse of Empire: Tacitus’s Messalina. Roman
Sexualities, editores J. P. Hellett & M.N.B. Skinner, Princeton, Princeton U.P., p. 221-254, 1997.
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Não nos adianta querer resolver o problema opondo, através de um amálgama
de Positivismo com Marxismo vulgar, “fatos” a “ideologia”, uma falsa consciência a
uma real. No caso da História Antiga, fora dos fatos mais elementares – e.g. a existência
do Império Romano, a lista dos seus imperadores – o que temos para “começar” é
apenas uma narrativa literária, duvidosa em tudo, e que não pode ser “purgada” dos
elementos ideológicos sem, ao fim e ao cabo, praticamente deixar de existir. Comparada
à História Moderna, com suas incontáveis evidências – documentais, literárias,
iconográficas – a História Antiga não é real, e, de fato, nunca o foi. Vivendo num
mundo sem jornais e sem compilação de estatísticas sociais, o que os antigos gregos e
romanos podiam esperar de um historiador era um significado adicionado.
Este é o fato: como escreveu Moses Finley, não temos – e talvez jamais
teremos – uma história real das Antigas Grécia e Roma em termos de uma seqüência de
eventos políticos definidos.6 Júlio César é uma personagem histórica; mas ele o é de
maneira bem diversa de Cromwell ou Lenin, já que sua biografia pessoal carece de
profundidade, e os eventos políticos de que participou não podem ser descritos
detalhadamente. O biógrafo que desconsiderar tal coisa tenderá a escorregar, mesmo
que imperceptivelmente, na ficção.
Como coloca Finley, uma História Antiga séria terá necessariamente de se
converter em Sociologia: deverá testar modelos weberianos sobre as regras gerais de
funcionamento das sociedades que estuda, e não lutar inutilmente contra a escassez de
evidências.7 Mas o que fazer, então, com os relatos “clássicos” remanescentes e com a
massa de ficções que eles geraram através dos séculos? Descartá-los não teria sentido, já
que eles nos falam sobre o que cada época, cada autor, em um dado tempo e lugar,
achou que deveria ter acontecido – assim nos contando sobre a história da sua própria
sociedade.
Neste artigo, seguimos a sugestão de Finley, e buscamos um entendimento
sociológico da gênese e desenvolvimento do Império Romano como um conceito metahistórico
e como um produto midiático extremamente bem-sucedido. Este conceito –
desenvolvido, de fato, pelos próprios romanos para estabelecer uma identidade política
separada da dos gregos clássicos – foi reinventado pela Hollywood dos anos 1950-60 e
6 Cf. FINLEY, M. I. História Antiga – Testemunhos e Modelos. Tradução de Valter Lellis Siqueira.
São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 138-139.
7 Cf. Ibid., p. 81.
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reemergiu recentemente, de forma peculiar, na série da HBO, Roma. A Roma
monumental, heróica e asséptica dos épicos cede lugar a uma Roma tardo-republicana e
“terceiromundista”. Se nos épicos de Hollywood tínhamos música sinfônica, cenários
extravagantes e figurinos de lamê dourado, na série da HBO temos musica de
percussão, batalhas sangrentas, e nudez frontal para ambos os sexos. Assistir a Roma é
uma oportunidade de refletir sobre as mudanças na base ideológica da “Roma” metahistórica,
e, portanto, sobre a idéia que a sociedade pós-moderna faz de si mesma.
O MITO DE “ROMA”
Na Antiguidade Clássica, o trabalho do historiador englobava, sob o mesmo
nome, duas atividades bastante diversas: a primeira, o trabalho do historiador “sério”,
que oferecia informação técnica precisa aos líderes; o segundo, o do historiador
“trágico”, que oferecia narrativas “inspiradoras”, voltadas para a formação ética do
leitor. Um problema (adicional) para o leitor moderno era o de que estas atividades, sob
a pena do historiador antigo, tendiam a sobrepor-se: o historiador sério editava os fatos
de acordo com suas idéias éticas; os historiadores trágicos, ao mesmo tempo em que
buscavam entreter o leitor, ainda assim criavam uma tradição de relato dos eventos por
eles descritos.8
Se queremos tratar da descrição da história romana pela Cultura de Massa
atual, podemos começar do começo e pensarmos em um dos primeiros apresentadores
do mito de Roma, o historiador grego Políbio. Escrevendo por volta de 140 a.C. sobre a
história da ascensão do Império Romano, Políbio oferece uma descrição das instituições
políticas romanas apenas no meio do seu livro com a seguinte justificativa:
O traço da verdadeira virtude em um homem certamente reside na sua
capacidade em suportar, com espírito forte e dignidade, as mais
completas transformações da Fortuna, e o mesmo princípio [aplica-se]
ao nosso julgamento de um estado. Uma vez que não pude encontrar
mudanças de fortuna maiores do que as que tiveram de ser suportadas
pelos romanos, reservei este lugar no meio de minha história para o
estudo da sua constituição.9
8 “A heterogeneidade do público deixava ao historiador uma certa margem: ele poderia apresentar a
verdade sob uma cor mais crua ou mais edulcorada, à sua escolha, sem, entretanto, traí-la”. VEYNE,
Paul. Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes? Paris: Seuil, 1983, p. 25. Um problema similar ao do
roteirista de uma ficção histórica moderno, que escolhe a versão dos fatos mais adequada aos
interesses da sua audiência.
9 POLYBIUS. Hist: The Rise of the Roman Empire. Tradução inglesa e edição de Ian Scott-Kilvert.
Harmondsworth: Penguin, 1981. VI, 12.
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Em outras palavras, para Políbio a constituição romana – e com ela a história
de Roma, a descrição do processo pelo qual os romanos conseguiram estabelecer uma
hegemonia sobre as esferas de influência dos gregos e dos cartagineses – não era algo
que o historiador pudesse desejar contar como um fato em si mesmo, mas uma narrativa
que necessitava justificar a si mesma pela sua utilidade moral.
Políbio nos parece hoje obviamente tendencioso,10 mas criticar sua falta de
objetividade óbvia não deve nos deixar esquecer que, mesmo hoje, descrever e discutir
acontecimentos históricos é emitir um julgamento moral sobre eles. Como dizia Edward
Said: “[...] as notícias [...] são menos dados inertes e mais o resultado de um processo,
normalmente deliberado, de seleção e expressão”.11
Tivesse Políbio “escolhido” descrever a ascensão do Império Romano
simplesmente “como de fato ocorreu”, ele não teria enfrentado o fato principal com o
qual seus leitores putativos (aristocratas gregos educados) tinham de haver-se: a
necessidade que estes leitores tinham de uma racionalização que lhes permitisse
reconciliar sua consciência de si mesmos como gregos “civilizados” dominados por
italianos semibárbaros. Daí sua necessidade de descrever a hegemonia romana não
apenas enquanto tal, mas como algo louvável e moralmente justo.12
Quando, no início do século XX, a Indústria Cultural emergente lançou mão da
História Antiga, ela o fez pela apropriação de noções recebidas do cânon da erudição
burguesa a respeito do que deveria – ou não – ser preservado do registro histórico da
Antiguidade Clássica. Tal implicava repelir-se abertamente a “democracia extrema” da
Atenas Clássica (Péricles, Alcibíades e a Guerra do Peloponeso jamais foram
representados por Hollywood13) e concomitantemente idealizar o “sadio” “governo
10 “Políbio abriu o caminho para outros intelectuais gregos que aceitaram a hegemonia romana e
colaboraram com ela […] Sua tarefa foi a de persuadir os líderes romanos a comportarem-se de uma
maneira tal que não alienasse a maioria dos seus governados e conseqüentemente não por em perigo a
posição daqueles provinciais de classe alta que haviam identificado seus interesses com o governo
romano”. MOMIGLIANO, Arnaldo. Alien Wisdon: The limits of Hellenization. Cambridge:
Cambridge University Press, 1993, p. 30.
11 SAID, Edward Said. Covering Islam: How the media and the experts determine how we see the rest
of the world. Nova Iorque: Vintage, 1997, p. 50.
12 Cf. GREEN, Peter. Alexander to Actium: The historical evolution of the Hellenistic Age.
Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1990, p. 281-282.
13 Em oposição a Roma Antiga, a Grécia Clássica, para a Cultura de Massa, simplesmente inexiste, na
medida em que a Grécia de Hollywood é apenas a Grécia mitológica, seja a de A Fúria dos Titãs ou a
de Xena a Princesa Guerreira... A Antiguidade histórica, para a Cultura de Massa, começa em
Alexandre o Grande.
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misto” de Roma. Um homem do Iluminismo inglês, tal como Edward Gibbon, já
resumia assim as vantagens do sistema legislativo da República Romana tardia:
Quando as tribos [i.e. os membros das circunscrições eleitorais]
davam em voz alta seus sufrágios, a conduta de cada cidadão era
destarte exposta [...] diante de seus amigos e compatriotas. O devedor
insolvente consultava os desejos de seu credor […] e a gravidade do
magistrado oferecia uma lição à multidão. Mas um novo método de
sufrágio secreto aboliu a influência do temor e do pejo, da honradez e
do interesse; e o abuso da liberdade acelerou os progressos do medo e
do despotismo.14
“Medo e Despotismo” aparecendo como uma reação ao fato de que as paixões
da “turba” pudessem prevalecer sobre a opinião dos cidadãos responsáveis. Como diria
o contemporâneo americano de Gibbon, “[...] a mais durável fonte das lutas fracionárias
sempre foi [...] a distribuição desigual da propriedade” e nenhuma Democracia pode ser
estável enquanto a segurança pessoal e os direitos de propriedade não forem
intangíveis.15 Destarte, para que a Democracia parlamentar burguesa do século XVIII
anglo-americano pudesse começar a existir, ela teria que buscar sua ascendência numa
República Romana idealizada governada por estadistas “responsáveis”, não fosse ela
aceitar a suposta hegemonia helênica da “turba” e das suas paixões infrenes em todas as
questões políticas. Certamente que tal idealização era inteiramente a – histórica, mas
que importa se ela podia ser apresentada de maneira inspiradora na tela?
A CRISE DO IMPÉRIO NA TELA: ESPÁRTACO E A QUEDA DO IMPÉRIO
ROMANO
Martin M. Winkler argumenta que Hollywood representou, via de regra, a
Roma Imperial de maneira negativa, um antro de poder e vício, de práticas perversas,
crucifixões e gladiadores – no limite, uma antecipação da Alemanha nazista.16 Mas
pode-se argumentar que as representações de uma Roma “má” são, na verdade, um
subgênero do corpus, já que se referem mais ao nascimento do Cristianismo do que
propriamente a “história” romana. Estas representações, por mais que descrevam a
14 GIBBON, Edward. Decline and Fall of the Roman Empire. Chicago: Encyclopaedia Britannica,
1952, p. 73. V. II. (Destaque nosso)
15 Cf. MADISON, James. The Federalist Papers, #10. The Federalist Papers, Clinton Rossiter, Nova
Iorque: Mentor, p. 47, 1999.
16 MARTIN, M. Winkler, “The Roman Empire in American Cinema after 1945”. The Classical
Journal, v.93, Dec.1997/Jan.1998.
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perseguição aos cristãos como perversa, jamais dão o passo adicional de atacar “Roma”
– isto é, a idéia de Império em geral – como sendo em si mesma “má”.
Winkler fundamenta seu argumento em filmes como Quo Vadis, Ben Hur, Rei
dos reis, O manto sagrado. Mas estes são produtos, na maior parte, da década de 1950,
isto é, do imediato pós-Segunda Guerra Mundial, de um momento em que já não havia
necessidade de representar uma Alemanha nazista alegórica. Parece-nos que, mais do
que comemorar o que era então o seu passado recente (a derrota do Fascismo), este
filmes estão preocupados com o seu presente contemporâneo – a Guerra Fria. Os filmes
americanos dos anos 50 são eloqüentes sobre uma ansiedade que, em certo sentido, era a
mesma que arrebatava Cícero17 e seus pares: como criar uma base ideológica ad hoc
para o fato consumado. Jamais exaltam o Império enquanto tal, mas como um Império
moralmente regenerado. Não seria abusivo interpretar tal traço como um modo de
relembrar à América que não esquecesse suas origens cristãs, sob pena de perecer como
o Império Romano.18
À medida que os anos 60 aproximam-se, no entanto, os velhos épicos da era
áurea, cujo tema era a conversão ao Cristianismo, cedem lugar a approaches menos
convencionais. É o caso de Espártaco (1960) e de A Queda do Império Romano (1964).
Visto contra o pano de fundo do reacionarismo da época, Espártaco parece uma
exceção: um conto sobre a luta pela liberdade numa Roma viciosamente escravocrata,
que tem por base um romance roteirizado pelo membro da lista negra McCartyhysta
Dalton Trumbo. O nome do gladiador trácio, nos anos 60, já era de há muito – no
mínimo desde Rosa Luxemburgo19 – um rótulo para tudo o que fosse de “Esquerda”.
17 “Ora, diz Cícero [no De Officis], oprimir os aliados ou os súditos significa destruir o domínio romano
[...] Cícero está tão certo de que Roma tem o direito de dominar, que com total boa-fé confunde dois
problemas diferentes: o exercício correto de uma autoridade e o direito de existir que esta autoridade
tem”. VEYNE, Paul. Humanitas: Romanos e não-romanos. In: GIARDINA, Andréa. (Ed.). O
Homem Romano. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 296.
18 O que, inversamente, significa legitimar uma idéia do mesmo molde da abrigada por parte da
patrística latina: a de que se o cristianismo legitima o império, o império torna possível o cristianismo,
já que, “é [no Império Romano] que estão os santos sacerdotes e o pudor das virgens consagradas,
coisas que não existem entre os bárbaros, ou que não estariam seguras se aí existissem”. (Santo Ottato
Apud Ibid., p. 284.)
19 A historiadora inglesa Maria Wyke chama a atenção para o fato de que Espártaco já havia sido
“ressuscitado” em finais do século XIX pelo Risorgimento italiano como um herói “jacobino”, popular
e “anticlerical” (isto é, sem qualquer ligação com a hagiografia cristã) – em oposição ao nacionalismo
romântico e pró-cristão da literatura “antiga” da época (Quo Vadis), e que só no final do século XIX
mais tarde o personagem teria sido “fagocitado” pelo movimento socialista: Cf. WYKE, Maria.
Projecting the Past: Ancient Rome, Cinema and History. Londres: Routledge, 1997, p. 37-38 e 47-
48.
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No entanto, um nome não é tudo. Especialmente porque o episódio histórico
original foi já um caso excepcional: menos uma rebelião dos deserdados da terra do que
um motim de um grupo relativamente privilegiado da classe escrava como um todo.20
Apesar de não tão difundida quanto comumente é suposto (escravos eram uma
mercadoria cara), a escravidão antiga era ainda assim parte da vida quotidiana – uma
dimensão de que o filme de Kubrick carece. O Espártaco interpretado por Kirk Douglas
é menos um membro anônimo de uma classe explorada do que a vítima de um abuso
sexual – um “homem sadio e viril” (nas palavras do roteirista) constrangido a fazer
amor com uma mulher diante dos olhos de seu amo e de seu técnico (algo ao qual um
escravo romano real mal reagiria21). A fúria surpresa do Espártaco cinematográfico (“Eu
não sou um animal!”) ao descobrir-se objeto do prazer escopofílico de seu amo talvez
tenha mais a ver com o desconforto americano com a homossexualidade do que com
verossimilhança. Ao transformar o abuso sexual na questão central da escravidão – em
oposição à morte por sobre trabalho numa mina ou galera –, o filme coloca a idéia de
que o poder político trás consigo a idéia sádica de que se pode agir a seu bel-prazer para
com os inferiores, algo que tornava os governantes de Roma, para uma audiência
americana, “insuportavelmente decadentes”.22
O Espártaco cinematográfico é produzido não a partir do (obscuro) personagem
histórico, mas em oposição ao personagem de Howard Fast. Se o Espártaco de Fast era
um quadro stalinista que “decide tudo”, e que pairava muito acima das massas
alienadas, ele era, ainda assim, um personagem muito político, que funcionava como o
arauto de uma mudança sócio-política em larga escala. O Espártaco do filme era um
indivíduo comum pego involuntariamente numa situação traumática e que tentava sair
20 Vender-se voluntariamente como gladiador a um “técnico”, lanista, podia implicar toda espécie de
tortura física, porém era mais um último recurso do que uma degradação total (Cf. VEYNE, Paul.
L’Élégie Érotique Romaine. Paris: Seuil, 1983, p. 155.) e apresentar gladiadores forçados a
matarem-se uns aos outros é uma imprecisão histórica: em princípio, eles eram todos voluntários
treinados – caso contrário, o espetáculo seria medíocre.
21 Era normal que os amos romanos deixassem um criado pessoal escravo dentro de seu quarto – algo
que é mostrado diversas vezes na Roma da HBO (Cf. Ibid., p. 241. nota 51.) E para um escravo, o
abuso sexual era, em princípio, business as usual: “Não é vergonha fazer o que o amo ordena”, nec
turpe est quod dominus jubet (Petrônio Apud Ibid., p. 228, n. 59.)
22 Cf. HARRIS, W. V. Spartacus. In: CARNES, Mark C. (Ed.). Past Imperfect – History According to
the Movies. Nova Iorque: Henry Holt & Co., 1996, p. 40-43; note-se, no entanto, que este matiz
homofóbico já fazia parte da novela de Howard Fast (Cf. WYKE, Maria. Projecting the Past:
Ancient Rome, Cinema and History. Londres: Routledge, 1997, p. 70.)
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dela da melhor maneira possível, lutando pelos seus direitos individuais tão-somente.23
Se aí há “radicalismo”, este é estritamente burguês e de classe média.
Na sua representação da crise de legitimidade terminal do Império Romano,
Espártaco, ainda assim, contrasta claramente com A Queda do Império Romano. No
filme de Anthony Mann, quando o liberto grego convertido em soldado romano modelo,
entusiasta de uma política de educação de bárbaros germânicos nas virtudes da
civilização romana, é assassinado, uma cruz de metal24 é achada debaixo de suas vestes.
Apresenta-se uma situação similar a da hagiografia tradicional de S. Martinho, que,
como nos diz seu biógrafo antigo, Sulpício Severo, também se converteu de soldado
romano em missionário cristão.25 Com a diferença, apenas, de que S. Martinho passou a
dedicar-se ao trabalho missionário na Gália rural quando o Império Romano do
Ocidente chegava ao fim. Ele escolheu, portanto, a Cristandade no lugar do Império26.
No caso da personagem do filme, cujo trabalho missionário coincide com o apogeu do
Império Romano, existe a escolha pela possibilidade de combinar Cristandade e
Império.
O filme começa quando do final do reinado de Marco Aurélio, durante uma
conferência conjunta da alta hierarquia romana e de reis-clientes num castelo da
fronteira do Danúbio. Tanto Marco Aurélio quanto seu homem de confiança, o general
Livius, aparecem como estóicos convictos que querem deixar o mundo seguro para
alguma espécie de ordem burocrática romana, um Welfare State antigo.27 Uma vez que
para o verdadeiro estóico nada mais existe na Natureza a não ser a Razão e o Dever,28
Marco Aurélio deseja arranjar as coisas deserdando seu filho e herdeiro presuntivo – o
23 E justamente esta insistência em atacar a escravidão em si ( e não como base de uma desigualdade
social institucionalizada entre outras) é que permite a quem o faz, como diz Finley, “marcar pontos
para a nossa sociedade contra uma que já morreu”, o que nada tem de progressista: “A indignação
retrospectiva também é uma forma de justificar o presente”. (Bourdieu Apud FINLEY, M. I.
Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991, p. 67.)
24 ‘Ou, mais exatamente, um “chi-ro”, um pendente com uma monograma grega de Cristo ( e
superpostos): Cf. WYKE, Maria. Projecting the Past: Ancient Rome, Cinema and History. Londres:
Routledge, 1997, p. 185.
25 PERNOUD, Regine. La Vierge et les Saints au Moyen Âge. Paris: Christian de Bartillat, 1991, p.
72.
26 De acordo com a política de S. Ambrósio, que erigiu a hierarquia eclesiástica em oposição à imperial:
Cf. BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do
Cristianismo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1990, p. 298.
27 Sem sofisticar demais, uma ONU romana: como lembra Maria Wyke, segundo o house organ da
indústria cinematográfica da época, o Motion Picture Herald, “na sua leitura particular das estratégias
presentistas adotadas pelo filme, o Império Romano caiu porque carecia do que o mundo tem hoje – as
Nações Unidas [com as quais os EUA estavam em bons termos à época]”. WYKE, 1997, op. cit., p.
187.
28 VEYNE, Paul. L’Élégie Érotique Romaine. Paris: Seuil, 1983, p. 180.
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ambicioso e imaturo Cômodo – colocando Livius como seu sucessor, e ao mesmo
tempo casar sua filha (e amada de Livius) Lucila (Sophia Loren) a um príncipe armênio
(Omar Shariff), para grande desprazer, tanto de Cômodo quanto de Lucila. Uma vez que
Marco Aurélio é rapida (e secretamente) envenenado pelos partidários de Cômodo,
Lucila espera que Livius resolva a questão sucessória dando um golpe contra seu irmão
– golpe que a deixaria como imperatriz de Roma. Livius, entretanto, é um legalista, que
decide tomar a iniciativa em aclamar a Cômodo como “César indubitável” durante o
funeral solene de Marco, não dando a Lucila outra alternativa senão a de embarcar para
a Armênia.29 Mais uma vez, o que temos é uma leitura seletiva do passado e das
ideologias do passado: basta dizer que nem todo os pensadores cristãos da Roma tardia
eram entusiastas do Império – o maior deles, Santo Agostinho, considerava os impérios
como algo indiferente do ponto de vista da Vida Eterna.30
Quando o conceito do épico antigo reemergiu no início do século XXI, ele o
fez precisamente através de um remake deste filme específico. O Gladiador de Ridley
Scott (2000) ressuscitou todas as certezas reacionárias d’A Queda: o pano de fundo da
Civilização contra a Barbárie, a nostalgia dos bons tempos, o culto do Melhor Homem
no Lugar Mais Elevado. A única diferença é que Gladiador expõe estes elementos de
uma forma mais agressiva, belicista, chauvinista e (neo)conservadora. Ao mesmo
tempo, injeta no roteiro uma dose de “valores familiares” para evitar o tédio do
elemento romântico da versão anterior: “Livius”, renomeado Maximus, quer vingar a
chacina de sua mulher e filhos por Cômodo, e Lucila é uma viúva preocupada com seu
filho ainda infantil.
O fato é que a representação da Antiguidade através do épico moderno jamais é
“inocente” já que nunca é arbitrária ou incoerente:31 Espártaco pode ser visto como uma
29 Contrariamente `a estratégia de simplificação adotada pela maioria dos filmes históricos, o roteiro cria
dois personagens onde historicamente havia apenas um: a Lucila histórica casou-se com um certo
Pompeianus, um plebeu idoso que era ao mesmo tempo um oriental (sírio) e o principal general de
Marco Aurélio. Lucila acabou por ser executada após envolver-se numa conspiração contra Cômodo –
cf. Historia Augusta, Vida de Marco, §§ 19/21, & Vida de Cômodo, §§ 4/5 – na versão parcial Lives
of the Later Caesars, tradução inglesa e edição de Anthony Birley, Harmondsworth: Penguin,1982.
O que o filme faz é dividir a personagem exatamente para criar uma oposição entre a Razão ocidental
– representada por Livius – e a irracionalidade oriental do príncipe armênio de Sharif (mais a
sensualidade da diva italiana Lucila/Loren).
30 Cf. VEYNE, Paul. Humanitas: Romanos e não-romanos. In: GIARDINA, Andréa. (Ed.). O Homem
Romano. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 296.
31 Como Dorfman & Mattelart escreveram, aqueles que sustentam a idéia da “inocência” da
representação pop dos eventos históricos deveriam lembrar-se de que “ a visão do Tibete [em Disney]
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reafirmação das liberdades burguesas na esteira do McCarthysmo, A Queda propõe o
Império como a base de uma hegemonia internacional pacífica e multilateral, Gladiador
começa com uma sangrenta cena de batalha que pode ser interpretada como um modo
de dizer que o Império tem direito a fazer o que quiser. Mas, e quanto à bem sucedida
série da HBO, Roma?
ROMA NA TELA DA TV: A SÉRIE DA HBO
Nas descrições da História Antiga feitas pela Indústria Cultural moderna, o
pano de fundo sócio-político sublinha, em princípio, a oposição entre escravos e homens
livres, ou entre bárbaros e gregos e romanos. Mas, como se sabe, estas divisões eram
encaradas pelo mundo antigo como marginais à oposição propriamente política interna
ao corpo cívico, entre os ricos e os cidadãos comuns – uma oposição que alimentou
discórdias civis durante a maior parte da História Antiga. Como Marx já havia
percebido em meados do século XIX, a sociedade antiga tinha seu caráter excludente
sublinhado pelo fato de que a parte significativa, conscientemente reconhecida da luta
de classes, era aquela “[...] que envolvia uma minoria privilegiada, [a oposição] entre os
ricos livres e os pobres livres”32 pela distribuição do excedente econômico e de meios
de expressão políticos. Escravos e bárbaros eram apenas o “pano de fundo”, a base
puramente econômica sobre a qual os competidores principais lançavam suas demandas
políticas.33
Para nós, tal realidade jamais pareceria “inspiradora”, antes nos pareceria
como pedir-nos que tomássemos partido numa luta entre abutres e chacais disputando
uma carcaça.
Portanto, não é um dos menores méritos da série da HBO que ela comece por
nos oferecer uma Roma de fins da República que não pretenda, ou finja, ser
“inspiradora”. Este é o ponto de partida de toda a série: um sentimento de estranheza
enojada que se torna, ao fim, reconhecimento. A abertura dos episódios joga com esta
não é idêntica à sua visão da Indochina”. (DORFMAN, Ariel; MATTELART, Armand. How to Read
Donald Duck. Nova Iorque: International General,1991, p. 56.)
32 MARX, Karl. The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte. In: ______. Surveys from Exile.
Tradução inglesa de BenFowkes; Edição de David Fernbach. Harmondsqworth: Penguin, 1977, p.
144-145.
33 “[A Antiguidade] não se colocava qualquer perguntas sobre a escravidão, instituição [tida como] mais
familiar que política [... Uma] revolta [de escravos] era a abominação da desolação, mas produzia
menos indignação e fazia correr muito menos tinta ideológica do que [os esquemas de reforma agrária
dos] Gracos”. VEYNE, Paul. Le Pain et le Cirque: Sociologie Histoirique d’um pluralisme
politiquee. Paris: Seuil, 1976, p. 528. nota 394.
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idéia: uma câmara subjetiva nos faz passear pelas tortuosas ruas secundárias de uma
cidade romana, ao som de uma trilha de World Music. Mas, à medida que prosseguimos
neste labirinto, os grafites rabiscados nas paredes tornam-se cada vez mais sangrentos e
pornográficos; a erudição irônica converte-se numa espécie de pesadelo freudiano – tão
mais freudiano quanto mais lida com a idéia do sinistro, unheimlich, como produto de
uma mistura do familiar com o aberrante.34 Pois já não vimos estes becos e grafites
antes – em alguma cidade do Terceiro Mundo? Ou na periferia de uma metrópole
globalizada? A abertura joga com a idéia de uma sociedade profundamente dividida
entre um invólucro monumental e um recheio mal escondido e miserável.
Em oposição aos gregos, que sempre aceitaram abertamente a dicotomia entre
os interesses dos ricos e do homem livre comum, os romanos sempre mantiveram sua
política interna subordinada aos interesses gerais de sua oligarquia governante: “[Em
Roma,] a liberdade de expressão [pertencia] tanto a esfera da auctoritas [a “autoridade”
geral de que os dominantes estavam sempre investidos] tanto quanto à esfera da libertas
[liberdade].35 Assim, portanto, primo, o caráter manifestamente elitista da política
romana, mas também, secundo, o fato de que havia uma não menos completa
solidariedade ideológica entre os ricos e o povo comum, especialmente no que dizia
respeito aos projetos imperiais romanos.36 Daí o fato de que em Roma não há simpáticos
plebeus democráticos em oposição a aristocratas cobiçosos; todos compartilham da
mesma ganância – o que adiciona-se à acuidade histórica geral da série.
O enredo de Roma subdivide-se em dois:37 de um lado, as figuras históricas
“reais” – Júlio César, seus familiares, amigos e adversários políticos; de outro, as
personagens de classe inferior, que são também “históricos” ainda que só em nome: os
34 Em termos de iconografia, a abertura remete a uma das características mais notáveis da arte romana: a
sua mistura da descrição realista com um gosto quase-expressionista pelo grotesco, o emocional e o
etéreo, herdada pelos romanos da arte helenística, em oposição à fatura idealizada e ao mesmo tempo
muito concreta da arte grega clássica (WHEELER, Mortimer. Roman Art & Architecture. Londres:
Thames & Hudson, 1996, p. 160; 191; 200.)
35 Arnaldo Momigliano Apud FINLEY, M. I. Politics in the Ancient World. Cambridge: Cambridge
University Press, 1991, p. 139.
36 Como coloca Veyne, os mais radicais reformadores agrários romanos, os irmãos Gracos, eram
“oligarcas como quaisquer outros [...] e não desejavam a ruína da oligarquia [enquanto tal, mas]
oferecer-lhe tropas [:] Tibério Graco temia que a crise agrária privasse Roma de cidadãos e soldados”.
A questão em pauta era de que a “Direita”, os oligarcas extremados como Cícero, reconheciam o
“nacionalismo” dos Gracos – todo o problema estando em que eles não gostavam desta espécie de
“nacionalismo”. (VEYNE, Paul. Le Pain et le Cirque: Sociologie Histoirique d’um pluralisme
politiquee. Paris: Seuil, 1976, p. 468.)
37 Cf. o comentário de NELIS, Jan. Historia Actual Online, n. 8, p. 249-252, Outono 2005.
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legionários Voreno e Pullo [ou Pulão, para os puristas do vernáculo38], dois nomes
desprovidos de biografias retirados do texto da obra de César De Bello Gallico. Voreno
e Pullo podem ser vistos como os “tipos ideais” do soldado comum do fim da República
Romana, ideológica – e pessoalmente39 – ligados ao seu general e com ele
compartilhando a mesma psicologia exploradora, a crença no seu direito a uma parte do
botim compatível com sua posição subordinada.40 Eles não são exatamente bons
sujeitos, não se opõem à ideologia dos seus maiores – pelo contrário, compartilham
ativamente dela. No início da série, Voreno é um centurião “pequeno-burguês” e
respeitável, simpatizante do Senado, enquanto o brutal Pullo é um cesariano e como tal,
um popularis. Entretanto, suas posições relativas mudam à medida que a série
prossegue.
No começo do primeiro episódio (A águia roubada),41 estamos no final das
guerras gaulesas de César, e com uma guerra civil entre César e o Senado prestes a
começar, disparada pela morte em trabalho de parto de Júlia, filha de César e esposa de
Pompeu Magno. Pullo está na prisão militar por quebra de disciplina42 e Vorenus já está
pensando em fazer fortuna após dar baixa, vendendo em Roma os escravos adquiridos
no botim da Gália. Quando a águia legionária de César43 é roubada pelos agentes de
Pompeu, no entanto, Pullo e Vorenus recebem a incumbência de encontrá-la. Ambos
38 CÉSAR, Júlio. Comentários sobre a Guerra Gálica. Tradução de Francisco Sotero dos Reis. Rio de
Janeiro: Tecnoprint, 1967, V, XLIV.
39 Diferentemente do exército imperial – uma força profissional de carreira com um prazo de dezesseis
anos entre engajamento e reforma – o exército romano da República recrutava soldados para
campanhas específicas sob um comando específico: “Os generais de Roma eram […] todos políticos,
não militares profissionais. Naturalmente eles viam em seus exércitos uma fonte de vantagens
políticas potenciais”. (GRUEN, E. S. The Last Generation of the Roman Republic. Berkley:
University of California Press, 1995, p. 377.)
40 FINLEY, M. I. Politics in the Ancient World. Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p.
120. Como descreve Gruen, um general romano tinha de prover seus soldados com oportunidades de
saque, o que fazia o exército romano não ser melhor que um bando de bandidos (GRUEN, 1995, op.
cit., p. 371.)
41 Diretor Michael Apted, roteiro de Bruno Heller, conforme site da HBO, disponível em:
www.hbo.com/rome/episode/season1/episode01.html
42 Como é bem sabido, o exército romano lutava como uma unidade, daí abandonar a formação ser uma
infração disciplinar séria. Mas leve-se em conta que esta disciplina legendária era aplicada de forma às
vezes frouxa, em função das relações pessoais que os generais romanos tinham com seus soldados. O
Pullo e o Voreno históricos – ambos centuriões, aliás – são descritos por seu general César (De Bello
Gallico, V, 44) como tendo ambos cometido esta mesma falta (“Por que é que hesitas, Vorenus? Ou
que ocasião esperas para mostrar o teu valor? Este dia será juiz das nossas competências”) e César é o
primeiro a elogiá-los (“De tal sorte provou a fortuna a um e outro [...] que, sendo um inimigo do outro,
levou socorro e salvação a seu inimigo, sem que se pudesse decidir qual o mais valoroso”).
43 Que não era apenas um objeto religioso, mas ela mesma uma divindade, Bellorum Deos: cf. GIBBON,
Edward. Decline and Fall of the Roman Empire. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952, p. 674,
V.I. nota 34.
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realizam a tarefa brilhantemente, entrementes resgatando o sobrinho-neto de César,
Otaviano, que havia recebido de sua mãe, a intrigante Átia,44 a tarefa de presentear
César com um cavalo que ela havia comprado, após uma barganha sexual, de seu
amante Timon,45 um judeu negociante de cavalos por ofício e eventual assassino
contratado.
À medida que a história desenvolve-se, ficamos com um grupo de personagens
sórdidos, cada qual aderido ao seu motivo vil. A presença de Timon lembra-nos, através
de uma paráfrase involuntária de Marx, que aqui o romano ideal é o “judeu” real46 – que
a ética cívica de uma Antiguidade Clássica idealizada, se traduzida na prática, não
difere da ética de um negociante de cavalos, um burguês em germe. Em outras palavras:
o homem cívico da antiguidade anuncia o homem de negócios moderno.
O elemento trágico da história está em que os personagens principais, movidos
primariamente por sua cobiça, acabam prisioneiros de suas próprias armadilhas. César
quer o poder político; Átia uma posição de eminência parda – seja garantindo a
Otaviano a posição de herdeiro presuntivo, ou por meio de sua ligação com o auxiliar de
César, Marco Antônio; Vorenus quer melhorar a situação de sua família. Cada um irá
dar cabo de sua ambição ao persegui-la ativamente. Ironicamente, é Pullo, o homem
comum que se deixa arrastar pela corrente, o único a terminar a série com algum saldo
positivo.
A série descreve a política doméstica romana nas pegadas de uma controvérsia
que foi fortemente discutida pela historiografia: a de se a política interna de Roma
consistia apenas em querelas entre famílias dentro da oligarquia dominante (o chamado
approach prosopográfico47) ou se, de alguma maneira, esta política refletia os interesses
concretos do povo comum (reforma agrária, as distribuições de trigo, a repartição dos
44 Otaviano é claro, é o futuro imperador Augusto; Átia, a sobrinha de César, é também uma figura
histórica, se bem que, como Pullo e Vorenus, pouco mais sabemos dela além do seu nome. Seu papel,
aqui, é o de representar o tipo da matrona romana aristocrática, sexualmente livre, ultrapolítica,
superlativamente intrigante e insensível até a crueldade.
45 Como seu nome grego nos revela, Timon não é o judeu usual dos épicos antigos, um protocristão
piedoso; ele é o judeu helenizado da era alexandrina: “Os homens empregam o pão e o vinho no seu
prazer, vivendo para se banquetearem: e todas as coisas obedecem ao dinheiro” (Eclesiastes,
10:19,tradução Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, Apud GREEN, Peter. Alexander to Actium: The
historical evolution of the Hellenistic Age. Berkeley/Los Angeles: University of California Press,
1990, p. 502, nota 33.)
46 MARX, Karl. On the Jewish Question. In: ______. Early Writings. Tradução inglesa de Rodney
Livingstone e Gregor Bentley. Harmondsworth: Penguin, 1992, p. 240.
47 “O estudo da República Romana é o estudo, principalmente, da sua classe dominante” (Ernst Badian ,
Apud G.E.M. de Sainte Croix. The Class Struggle in the Ancient Greek World. Londres:
Duckworth, 1983, p. 351.)
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lucros do Império). O que a série da HBO faz é tacitamente aceitar esta última visão:
independentemente de quais fossem os motivos dos reformadores romanos da classe
superior (os irmãos Gracos, Mário, Saturnino, e, last but not least, César48), o fato é que
eles construíram suas carreiras estabelecendo algum tipo de conexão política com a
plebe livre,49 com seus “agravos reais e descontentamentos genuínos”.50 Tal é o cerne
da série: a descrição da conexão entre os maiores como “classe para si” e os seus
inferiores como classe apenas “em si”.
O que explica o papel desempenhado na série por Pullo e Vorenus, que, ao
mesmo tempo, têm toda a consciência da sua posição inferior e seguem leais aos seus
patronos de classe alta. Há diferenças entre eles, é claro: Pullo é o membro da plebe que
não tem o que fazer – quando não engajado no exército – salvo pedir por pão, circo, e
um emprego ocasional como sicário;51 Vorenus é o respeitável membro emergente de
uma futura burocracia imperial.52 Ainda assim, ambos são fantoches dos seus maiores,
dos quais dependem para implementarem suas agendas. Não é surpreendente que, no
segundo episódio da série, seja Pullo, que se liga imediata e incondicionalmente a César
– e a Otaviano – que prevaleça sobre Vorenus, com suas simpatias platônicas pelo
Senado.53
48 Como diz Tácito, as leis da República tardia, “posto que algumas estabelecidas contra os maus, para
prevenir os delitos, nasceram as mais das vezes das dissensões das ordens [...] da animosidade contra
cidadãos ilustres, e outros motivos condenáveis [...] Daí surgiram os Gracos e Saturninos, agitadores
da plebe” (Ann., III, 27- Tácito, Anais, tradução Leopoldo Pereira. Rio de Janeiro: Tecnoprint,1967).
49 “Não foi sem razão que Arnaldo Momigliano [...] objetou que [as figuras políticas da Roma
republicana] não foram apenas predestinadas a serem elencadas na enciclopédia Pauly-Wissowa, mas
eram classes, grupos sociais em luta”. (CANFORA, Luciano. Júlio César – O Ditador Democrático.
Tradução de Antonio da Silveira Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 25.)
50 BRUNT Apud G.E.M. de Sainte Croix. The Class Struggle in the Ancient Greek World. Londres:
Duckworth, 1983, p. 352.
51 Como o historiador grego do século III d.C., Dio Cássio, argumentaria, o exército permanente
imperial deveria engajar nas suas fileiras “os membros mais ativos da população […] que, sendo
freqüentemente compelidos a ganhar a vida pelo banditismo, possam ser mantidos sem maltratar a
outrem”. (História Romana, 52, § 27- tradução parcial The Roman History: the Reign of Augustus,
tradução inglesa de Ian Scott-Kilvert. Harmondsqworth: Penguin 1987). Era conveniente ao estado
romano tratar de incorporar diretamente bandidos às fileiras do exército de preferência a reprimi-los
(SHAW, Brent D. O Bandido. In: GIARDINA, Andréa. (Ed.). O Homem Romano Tradução de
Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 247-280, 279.)
52 Taácito, em Historiae, I, 4 (Histoires. Tradução francesa de Henri Goelzer. Paris: Le Livre de Poche,
1963.) opõe à “parte sadia da plebe, ligada às grandes famílias”, a “plebe sórdida, os freqüentadores
do circo e do teatro”.
53 How Titus Pullo brought down the Republic. Direção: Michael Apted. Roteirista: Bruno Heller. Cf.
www.hbo.com/rome/episode/season1/episode02.html
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César e seus associados – Marco Antônio e Otaviano, respectivamente o braço
direito e o herdeiro presuntivo emergente54 – são retratados como tão intrigantes e
corrompidos quanto seus inimigos políticos. César, na série, é o representante da “ação
e da esperança” e “ainda que, paradoxalmente [destaque nosso], de forma ilegal, de uma
promessa de mudanças e justiça elementar”.55 De fato, se César representa a justiça, tal
se dá pelo por conta de sua negação da ordem legal, que é apresentada como um
consenso estreito que não oferece aos inferiores oportunidade alguma.
No oitavo episódio da série, Caesarion,56 enredo e história convencional
separam-se: César, agora no Egito, é enganado e aceita como sua a paternidade de uma
criança gerada pelo legionário Pullo numa Cleópatra viciada em heroína fumável, a qual
desejava estabelecer uma conexão de sangue com César o mais rapidamente possível,
num desenvolvimento fantasioso que um historiador sério dificilmente aceitaria.57 Mas,
na ausência de fatos incontrovertíveis, o que temos aqui, em qualquer das versões
existentes, não são descrições, mas apólogos morais: quando Plutarco contou a famosa
história de Cleópatra num tapete, o que ele queria era apenas dar um exemplo da astúcia
feminina. Quando o roteirista de Roma escolheu mostrar César enganado, talvez
pretendesse explorar a idéia de engano mútuo que é central à série: para César (que não
parece subseqüentemente haver sido afetado por seu ludibrio), o nascimento de Cesarião
é um fato conveniente, pouco importando sua paternidade; e o papel de Pullo na história
é o de um instrumento útil.58
54 Segundo Luciano Canfora, é provável que o herdeiro presuntivo de César fosse seu primo Sexto, o
qual, no entanto, foi assassinado pelos partidários de Pompeu na Síria e cujo desaparecimento abriu
caminho à ascensão do jovem Otaviano. Cf. CANFORA, Luciano. Júlio César – O Ditador
Democrático. Tradução de Antonio da Silveira Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
Capítulo XXVII.
55 NELIS, Jan. Historia Actual Online, n. 8, p. 249-252, Outono 2005.
56 Dirigido por Stephen Shill, roteiro de William J. McDonald. Ver em
www.hbo.com/rome/episode/season1/episode08.html
57 Ainda assim, Carcopino supunha que este Cesarião era, de fato, filho de pai desconhecido – ou até
mesmo de Marco Antônio (cf. Joel Schmidt, Júlio César. Porto Alegre: L& PM, 2006, p. 209). Para
Green, Cleópatra e César eram um casal perfeito, o que seria provado pela própria maneira como
Cleópatra arranjou de ser apresentada a César, “escondida num tapete [...] numa brincadeira de ‘atrás
das linhas inimigas’ da qual ele gostou” (GREEN, Peter. Alexander to Actium: The historical
evolution of the Hellenistic Age. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1990, p. 663.)
Preferimos dizer que, com dois mil anos de intervalo, é simplesmente impossível saber que espécie de
relacionamento pessoal César e Cleópatra tiveram. As especulações de Carcopino e Green são tão
“aceitáveis”, em princípio, quanto o enredo de Roma.
58 Como Green observa, “de preferência a converter o Egito em província, com toda a intriga senatorial
[…] que isto provocaria, César tinha a intenção de preservar o regime ptolomaico em seus próprios
termos. Ter um filho seu como herdeiro do trono não seria de modo algum um problema, pouco
importando o status da criança em Roma”. (Ibid, p. 667.)
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A perdição de César na série virá das suas conexões na alta sociedade romana:
sendo amante de Servília, a mãe de Brutus, ele é forçado a romper o relacionamento
para evitar o desprazer de sua esposa Calpúrnia, que toma conhecimento do affair
através de grafitos pornográficos que passam a decorar as paredes de Roma por obra de
Átia. Servilia não apenas relega César e Átia à vingança dos deuses subterrâneos,59 mas
começa também a conspirar contra César. Entre outras coisas, ela inicia uma relação
sexual com a irmã de Otaviano, Otávia, que lhe proverá uma informação valiosa: a
criança que Vorenus acreditava ser seu neto em verdade era filho de sua mulher, Niobe,
com seu cunhado. Esta informação adquire toda a sua importância quando César, ao
retornar vitorioso de suas campanhas, decide aumentar seu controle sobre o Senado
nomeando uma série de suas criaturas como senadores – entre os quais Vorenus.60 Para
Servília, é fácil então incitar seu filho Brutus contra César, e, quando chegam os Idos de
Março de 44 a.C., levar Vorenus, transtornado pela notícia da traição de Niobe, a
abandonar sua posição de guarda-costas dissimulado de César, de modo a garantir que o
ditador seja massacrado61 no plenário da Cúria.
A primeira temporada termina, assim, numa confusão trágica: César expirando
sobre uma poça de sangue, Átia e Otaviano humilhados por uma Servília exultante,
Vorenus diante do corpo de sua esposa. Resta algo vagamente próximo a um happy
ending apenas para Pullo: a cena final do ultimo episódio o mostra buscando alívio num
santuário rural com a moça escrava que ele de há muito desejava, a qual finalmente o
perdoou por ter matado seu amante.
Estamos, assim, bem longe da Roma aristocrática e impecável dos antigos
épicos de Hollywood. O que temos é uma tentativa de representar os esforços de um
ditador populista em governar “acima de todas as classes” – para, finalmente, fracassar
nesta tentativa. Roma, como terra das oportunidades, desaparece diante de Roma como
terra do privilégio estabelecido. A política como delegação falhou: os inferiores são
deixados de lado na sua alienação usual, enquanto os superiores prosseguem suas
querelas sangrentas e intermináveis. Nesta “Roma” pós-moderna, a simples idéia de um
59 Uma defixione. Cf. VEYNE, Paul. L’Élégie Érotique Romaine. Paris: Seuil, 1983, p. 216. nota 22.
60 Histórico: esta adlectio é descrita em SUETÔNIO. Vidas dos Doze Césares, Vida de César, LXXVI
– Vie des Douze Césars. Tradução francesa de Henri Ailloud. Paris: Le Livre de Poche, 1961.
61 “E César, cercado por todos os lados, seja para onde se voltasse confrontado a golpes de armas
dirigidas a sua face e olhos, atirado para lá e para cá como uma fera, foi enlaçado entre as mãos de
todos” – PLUTARCO. Vida de César. LXVI, § 5 sqq – PLUTARCH, Lives tradução inglesa
Bernadotte Perrin, Cambridge, Mass./Londres: Harvard University Press, 1994, coleção Loeb.
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pequeno movimento progressista que pudesse trazer os inferiores para dentro do palco,
ainda que num papel coadjuvante, falhou.62 E assim, mais do que a Roma Antiga
histórica, é Roma como símbolo que é levada a um ajuste de contas.
ALGUNS COMENTÁRIOS FINAIS
A representação de um acontecimento histórico e o acontecimento em si
mesmo não são comensuráveis – Oliver Stone dixit. Há uma entrevista na qual o
polêmico cineasta, ao ser censurado pelo historiador que o entrevistava pelas suas
tentativas de racionalizar acontecimentos políticos reais pela via de uma teoria
conspiratória qualquer, respondia com uma pergunta: qual o sentido de buscar os fatos
“duros” enquanto tais, se o resultado for apenas a perplexidade diante da evidência
conflitante?63 O “passado” em si mesmo é tantas vezes uma espécie de não-entidade,
uma coleção de acontecimentos que começam a ser racionalizados, distorcidos, mal
relembrados tão logo ocorrem. Qualquer tentativa de estabelecer “o que realmente
aconteceu” passa facilmente a ser uma questão de ideologia e não de estabelecer fatos.64
Paul Veyne argumenta que a realidade ou irrealidade, em si mesmas, de Teseu,
o mitológico Rei de Atenas, e das câmaras de gás de Auschwitz, não deixam margem a
dúvidas; a consciência desta realidade, ou irrealidade, infelizmente, está sujeita à
dúvida, na medida em que depende da ideologia dominante do momento. Diz Veyne:
“[...] a materialidade [das coisas] está no ato, mas como o velho Duns Escoto disse, não
é o ato de nada. A materialidade das câmaras de gás não traz consigo o conhecimento
que se pode ter delas”.65 O fato em si (e.g. a existência de um movimento neonazista e
de sua ideologia própria) pode até gerar um não-fato (o negacionismo da “Solução
Final”).
Quando a lenda torna-se fato, “imprime-se” a lenda? Não exatamente, mas
eventos remotos, que são eliminados da memória viva, não podem ser recordados senão
pelas suas interpretações rivais, e que no caso da História Antiga, a maior parte dos
62 “A ‘História’ nos traiu […] Esta traição é tão profunda que não pode ser esquecida pela justaposição
de um ‘pós’ […] Há uma sensação de tragédia na destruição dos sonhos da modernidade”. (BUCKMORSS,
Susan Apud MULVEY, Laura. Then and Now: Cinema as History. In: NAGIB, Lucia.
(Ed.). The New Brazilian Cinema. Londres/Nova Iorque: I.B. Tauris, 2003, p. 264.
63 “A Conversation between Mark Carnes & Oliver Stone”. In: CARNES, Mark C. (Ed.). Past
Imperfect – History According to the Movies. Nova Iorque: Henry Holt & Co., 1996, p. 305-312,
p.306.
64 Ibid., p. 307.
65 VEYNE, Paul. Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes? Paris: Seuil, 1983, p. 117.
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fatos “duros” de há muito desapareceu. Nossa capacidade de “ver” os fatos passados
depende, em grande parte, dos desenvolvimentos atuais.
Pense-se, por exemplo, em duas pessoas que (tanto quanto podemos saber)
realmente existiram – os centuriões romanos Tito Pullo e Lúcio Vorenus. Por dois mil
anos, estes dois nomes só geraram um eco na história séria, e, subitamente, no início do
século XXI, ambos emergem, armados e togados, numa série de TV americana, com
suas biografias infladas para que possam aparecer como os tipos ideais do cidadão
romano comum da República tardia. Por que nesta série? Por que neste momento
preciso?
Certamente que Roma, a série de TV, não foi concebida para revolucionar a
apresentação audiovisual de acontecimentos históricos, mas como mais um exemplo da
tradição da HBO em oferecer entretenimento comercial de boa qualidade. HBO foi
associada a bons roteiros, direção, elenco e produção, assim como a um approach a
tópicos “difíceis” que deixa pouco à imaginação. Através dos anos, os assinantes da
HBO viram mulheres solteiras refinadas discutirem abertamente tópicos como
masturbação, lesbianismo e sexo anal (entre outros) em Sex and the City; a autópsia de
uma criança e um ato sexual homossexual detalhadamente apresentado no primeiro
episódio de A Sete Palmos; um mafioso discutindo seus problemas com um terapeuta
em Os Sopranos; um negro sendo queimado vivo em detalhes em Carnivale; e assim
por diante. Estes excessos jamais prejudicaram a reputação destes programas, que
receberam boa acolhida da crítica, incontáveis prêmios, e, finalmente, bons índices de
audiência.
Até hoje, quem quer que sentisse interesse em produzir um conto que tivesse
como base uma adaptação da história romana para a tela – grande ou pequena – acabava
por contar um conto sobre líderes – quer este fosse um senador ou um imperador, um
aristocrata judeu assimilado, ou até um gladiador trácio convertido numa cruza entre um
Secretário-Geral do Partido e um sindicalista. Todos, no entanto, eram líderes que
sumarizavam em si e por si tudo que era necessário saber do Império Romano. Mas,
obviamente, as coisas mudaram. Foi precisamente por chamar os indivíduos anônimos e
a vida quotidiana ao centro do palco que os assim chamados reality shows puderam
tornar-se mundo afora uma contra-programação eficiente e lucrativa, uma alternativa
tanto ao drama quanto à comédia no horário nobre. Transformando pessoas comuns em
celebridades e supostamente dando acesso às dimensões mais reservadas e íntimas da
Fênix – Revista de História e Estudos Culturais
Janeiro/ Fevereiro/ Março de 2008 Vol. 5 Ano V nº 1
ISSN: 1807-6971
Disponível em: www.revistafenix.pro.br
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vida quotidiana dos célebres, os reality shows impuseram novos padrões à mídia como
um todo. E se o principal objetivo for o de oferecer uma audiência aos patrocinadores,
não surpreende que a HBO tenha escolhido, para Roma, um formato que combina “o
melhor de dois mundos”: uma visão indiscreta das alcovas da elite e a heroicização dos
membros da plebe.
Mas uma leitura política também é possível: escolher dois membros comuns da
plebe como heróis pode ser visto como algo provocado pela consciência de uma crise de
legitimidade, de um gap entre “líderes” e “seguidores”, um gap que poderia ter algo a
ver com a consciência da “plebe” norte-americana de hoje estar no meio de uma versão
atualizada das Guerras Gaulesas de César – a adição feliz de uma província à civilização
– que gradualmente se transforma numa infeliz reedição das Guerras Párticas de Trajano
no século II d.C. Como sabemos, foi nestas guerras que o exército romano tomou
Babilônia e Trajano navegou pelo Golfo Pérsico – apenas para perceber, quando do seu
retorno, que “[...] todas as regiões conquistadas estavam lançadas em confusão e
revolta, e as guarnições instaladas entre os diferentes povos ou expulsas, ou
massacradas”.66
Ou, sumarizando: talvez o que encontramos em Roma seja um combo destas
duas coisas – um combo causado por um mecanismo que “funcionou” em outras épocas
históricas: sempre que temos uma crise na ideologia dominante, este “invólucro”
usualmente não “explode” de uma só vez, mas “racha”; no processo, aquilo que estava
escondido vem à tona: a vida quotidiana, suas angústias pessoais, aspirações
particulares e subjetivismos. De certo modo – todas as diferenças históricas
consideradas – o que a Roma pós-moderna da HBO expressa é análogo em espírito ao
mundo da Antiguidade Tardia, no qual o contemporâneo de Marco Aurélio, o orador
grego Élio Aristides, compôs – e publicou – suas inumeráveis orações sobre suas visitas
aos diversos santuários de Esculápio onde ele buscava alguma espécie de terapia
médico-religiosa para seus problemas de intestino.67 Já era o mundo do terapeuta e do
mantra – mas também um mundo que testemunhava a crise do Mundo antigo e a queda
do Império Romano.
66 DIO CÁSSIO. História Romana, LXVIII, § 29 (resumo de Zonaras e Xifilínio), – Roman History,
Books 61-70. Tradução inglesa de Earnest Cary/Herbert Baldwin Foster. Cambridge, Mass./Londres:
Harvard University Press,2000, coleção Loeb.
67 Apud VEYNE, Paul. L’Élégie Érotique Romaine. Paris: Seuil, 1983, p. 192/193. (felizmente para os
seus leitores, Aristides tinha habilidade oratória suficiente para cobrir suas descrições exatas com
metáforas adequadamente nebulosas).


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