domingo, 13 de junho de 2010

1079 - ORIGEM DAS UNIVERSIDADES

Revista Mirabilia 6

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A universidade medieval: uma memória*
Terezinha Oliveira (DFE/PPE/UEM)

Resumo
Neste artigo pretendemos analisar, em linhas gerais, as origens da Universidade medieval, considerando–a como local novo, próprio do saber, que comungava com os interesses da comunidade e era, legitimamente, reconhecida como um espaço fundamental pelo governo laico e eclesiástico. Neste estudo nos basearemos em alguns estudiosos que se ocuparam das Universidades na Idade Média, como SAVIGNY (1844), VERGER (1973), STEENBERGHEN (198?) e NARDI (1996). Acreditamos que as questões tratadas pelos teóricos medievais e que esses estudiosos destacam não expressam preocupações individuais, mas inquietações e indagações que a sociedade fazia nessa época histórica. Por meio dessas questões, buscamos as origens da Universidade, o que é uma forma de indagar pela razão da sua existência. Mas, vemos nesse estudo um alcance maior do que um debruçar sobre as medievais. Ao assim fazermos, julgamos estar tangenciando questões que as perpassam hoje, não por achar que os problemas sejam os mesmos, mas por se tratar da mesma Instituição. Desse modo poderemos, ao menos, verificar como os homens de saberes daquela época construíram esse espaço que continua sendo um espaço próprio e oportuno para o conhecimento. Com isso, ao estudarmos as origens das Universidades medievais por meio da historiografia e de documentos medievais estamos, igualmente, criando uma nova memória e um novo espaço de saber estabelecido pelos nossos problemas e pelas nossas relações cotidianas.

Abstract
In this article, we intend to analyze in general, the origins of the medieval university, considering it as a new place, favorable to the knowledge that participated with the community interests and it was legitimally knew as a fundamental space by the laic and ecclesiastic government. In this study we have based in some studious writers who held good position studying about the medieval university as SAVIGNY (1844), VERGER (1973), STEENBERGHEN (198?) e NARDI (1996). We believe that the questions treated by the medieval theoretical and what these studying people try to put in relief don’t express only the individual worries, but inquietudes and questions that the society asked in this historic epoch. Through these questions, we look for the origins of University that in other ways is a meaning of asking for the reasons for its existence. But we see in this study a further reach, not only just a look over the medieval. Doing this, we judge to be referring questions concerned to the future too, not thinking that there are the same problems, but because we are talking about the same Institution. In this way, we will be able, at least, to verify how the wise men of that epoch built these spaces that continue being a proper and opportune space for the knowledge. With that when we study the origens of the medieval universities using the historiography and the medieval documents, we are, in the same manner, creating a new memory and a new space of knowledge, established by our problems and our daily relations.

Palavras-Chave
Universidade Medieval – História da Educação – Memória – Intelectuais.

Keywords
Medieval University – History of Education – Memory – Intellectuals.

*

Afinal, se nestes últimos oitocentos anos a Igreja mudou muito – os monges já não são o que foram –, a Universidade, nem tanto. Nossos graus acadêmicos ainda são os mesmos, a duração média dos cursos, a persistência com que a Universidade se arroga o direito de não se submeter, legitimamente, a poderes externos a ela, o corporativismo – no que tem de melhor, como defesa da dignidade profissional ou no que tem de pior [...] (VERGER, 1990).



Uma das questões que mais inquietam os educadores na atualidade diz respeito ao papel que as Universidades devem desempenhar e, ao mesmo tempo, à crise de identidade que estão atravessando. De um lado, indagamos, freqüentemente, acerca dos benefícios que elas trazem à sociedade. Afinal, em que medida nós, docentes, pesquisadores, participamos da comunidade e com ela contribuímos. Por outro lado, como somos vistos por esta sociedade e, especialmente, pelas autoridades que representam e legitimam o Estado.

Diante desse quadro de indefinições dos papéis políticos e sociais, faz-se extremamente oportuno, a nosso ver, um estudo sobre as origens medievais dessa Instituição que é, de fato, nosso espaço do saber e do conhecimento. Paradoxalmente, quando olhamos e buscamos a memória das Universidades medievais, observamos que essas duas faces apontadas atualmente, não estavam presentes no século XIII.

Com efeito, como corporação de ofício, era necessário o estabelecimento de leis que protegessem a Universidade e assegurassem a sua liberdade, posto que a sociedade percorria outros caminhos e interesses. Contudo, essas leis ou privilégios, como queiram denominar, não impediram que essa Instituição se aproximasse dos interesses da comunidade e, muitas vezes, correspondesse aos seus anseios.

Concomitantemente, também, verificamos a promulgação de leis reais e papais (portanto, governamentais) visando aos interesses imediatos das Universidades. Assim, nesse texto, pretendemos analisar, em linhas gerais, as origens dessa Instituição, considerada como um local novo, próprio do saber, que comungava com os interesses da comunidade e era, legitimamente, reconhecida como um espaço fundamental pelo governo laico e eclesiástico do medievo.

Para tanto nos basearemos em alguns estudiosos que se ocuparam das Universidades na Idade Média, vale dizer, do nascimento e dos primeiros passos dessa Instituição. Trataremos ainda de algumas questões com que eles se depararam. Acreditamos que as questões levantadas, no estudo dessa Instituição, não expressam preocupações de indivíduos, mas preocupações e indagações que a sociedade fez em uma dada época histórica. Buscar as origens da Universidade não é, talvez, indagar pela razão de sua existência?

Assim, em uma época como a nossa, em que se questiona a própria universidade e a sua função social, buscar a sua origem talvez seja uma forma de perguntar pelo seu verdadeiro papel na atual sociedade, e, em última instância, buscar nossa própria identidade.

Na verdade, embora não tratemos das Universidades contemporâneas, mas somente das medievais, estamos também tangenciando questões que as perpassam hoje, não por achar que os problemas sejam os mesmos, mas por ser a mesma Instituição. Assim, poderemos, ao menos, verificar como os homens de saberes daquela época construíram esse espaço que continua sendo um espaço próprio e oportuno para o saber. Além disso, ao estudarmos, no presente, as origens das Universidades medievais, por meio da historiografia e por documentos medievais, estaremos, nós mesmos, criando uma nova memória e um novo espaço de saber, estabelecido pelos nossos problemas e pelas nossas relações cotidianas.

Destacamos, para esse momento de análise, a abordagem de três autores de período e de formação distintas, pois acreditamos que ao darmos voz a diferentes intérpretes da história das universidades poderemos observar diferentes momentos de abordagem ou, colocado de outra forma, diferentes momentos e locais de memória.

Principiemos pelo eminente jurista e político alemão da primeira metade do século XIX, Savigny (1779-1861) que publicou, entre outras obras, a monumental Histoire du droit romain au Moyen Âge (1815-1831) – nesse texto nos reportaremos à edição italiana de 1844. A edição francesa que temos acesso não possui a parte referente às Universidades medievais.

Parte dessa obra é dedicada ao estudo da história da Universidade na Idade Média. Nesse estudo, o autor efetua uma detalhada investigação das origens das Universidades européias em geral. Traça um quadro das diferentes Universidades, dos seus docentes, da relação entre as Universidades com a Igreja e os reis, enfim, constrói o perfil dessas instituições.


Uma vez que a universidade não é uma criação arbitrária, não se pode determinar com exatidão a época em que surgiu. Uma escola de direito formada pela reputação de um professor e pelo zelo de alguns discípulos por muito tempo não pôde ser uma corporação e nem ao menos uma constituição estabelecida. Por meio de um privilégio imperial os professores obtiveram a jurisdição, e com o número crescente de alunos a universidade se constituiu, de modo que a organização se desenvolveu rapidamente e logo foi reconhecida como direito (SAVIGNY, 1844: 108, trad. livre).


Ao estudar as origens das Universidades, o primeiro problema com o qual Savigny se depara é a dificuldade de se definir um fato específico que teria marcado o nascimento dessa Instituição. Do seu ponto de vista, essa origem pode ser explicada pela existência de um grande mestre, por um privilégio imperial, por uma concessão eclesiástica, enfim, nada assegura, com exatidão, o acontecimento que permitiu o nascimento dessa corporação.

É exatamente por causa dessa dificuldade que Savigny decide buscar as origens da Universidade na cidade de Bolonha, pois lá seria encontrado o documento mais antigo que legisla sobre a criação da primeira unidade dessa Instituição, a Universidade de Bolonha. Cumpre observar aqui que não podemos nos esquecer da formação desse intelectual. Trata-se, como já mencionamos, de um jurista, portanto, as leis constituem um elemento essencial de sua abordagem. Isso não quer dizer, contudo, que Savigny não possa ser encarado do ponto de vista da história, muito pelo contrário.


O primeiro fato histórico do qual devo tratar é o privilégio concedido por Frederico I em novembro de 1158, na assembléia de Roncaglia. Embora Bolonha não tenha sido escolhida não tinha como não conceder-lhe esse privilégio. O privilégio foi estabelecido em favor daqueles que viajam com o intuito de estudar e os professores de direito são especialmente mencionados com palavras muito honrosas. [...]

Este privilégio tinha dois objetivos: em primeiro lugar concedia proteção especial aos estudantes estrangeiros que por amor a ciência enfrentavam tantas dificuldades. Eles tinham o direito de viajar livremente por toda parte, era proibido submetê-los a qualquer tipo de vexação sob pena de severíssimas punições, também não podiam ser acusados pelos delitos ou pelos erros de seus compatriotas. Existia, além disso, uma jurisdição particular fora da qual não poderiam ser conduzidos (SAVIGNY, 1844: 108-109).


A passagem acima explicita claramente que os estudantes e mestres, especialmente os de direito, passaram a ter determinados privilégios que lhes possibilitaram se dedicarem com mais tranqüilamente aos estudos. E um dos mais importantes privilégios nesse sentido foi a liberdade dada aos homens de saberes para que pudessem viajar livremente. Para nós, contemporâneos, esse direito é algo bastante estranho, na medida em que temos, em geral, inteira liberdade de viajar.

Contudo, para o homem medieval isto era bem diferente, embora essa sociedade seja a de “andarilhos”, os homens não podiam viajar sem a autorização de seus senhores, fossem laicos ou eclesiásticos. Além disso, eram constantemente importunados nas paragens, nos pedágios. Ao dar liberdade de locomoção, Frederico I permite, ao menos no âmbito da legislação, que os homens dedicados ao conhecimento não passassem mais por esses aborrecimentos.

Paulo Nardi, um teórico contemporâneo, ao analisar as relações entre as Universidades e os poderes (laico e eclesiástico, entenda-se governo), chama-nos a atenção para a importância da lei de Frederico I, a Authentica Habita, mencionada por Savigny.

Nardi, do mesmo modo que o jurista alemão, considera que a primeira medida real de proteção “às gentes de estudo” foi tomada por Frederico I, em fins do século XII, por ocasião da promulgação de uma “constituição”, intitulada Authentica Habita, na qual se colocava sob proteção o saber científico e todos aqueles que se dedicassem a ele, fossem habitantes naturais da Itália ou estrangeiros.


[...] a Authentica Habita, uma constituição publicada pelo imperador Frederico I, o Barba Roxa, quando foi a Itália pela primeira vez para receber a coroa. Ele reuniu-se com os mestres e estudantes da escola de Direito em Maio de 1155, perto de Bolonha. Segundo o autor anónimo de ‘Carmen de gestis Frederici I’, aqueles suplicaram ao imperador que proibisse o exercício do direito de represália contra os escolares estrangeiros (captura de pessoas ou propriedade para satisfazer dívidas em que incorriam os seus compatriotas) e que lhes concedesse a todos liberdade de movimento << para que todos os homens inclinados ao estudo sejam livres de ir e vir e vivam em segurança [...] Frederico I, o Barba Roxa, publicou imediatamente a famosa constituição em que – em primeiro lugar – afirmava o valor preeminente do saber científico e reconhecia que todas as pessoas que, em busca desse saber, eram obrigadas a viver longe do seu país eram dignas de louvor e mereciam proteção (NARDI, 1996: 76).


De acordo com o autor, as medidas promulgadas pela Authentica não foram totalmente respeitadas, inclusive em função das condições históricas da época. A insegurança que rondava as cidades, a rejeição aos estrangeiros, a pouca importância que a população citadina dava aos homens que se devotavam ao saber, os privilégios dos mestres e dos escolares em relação à população local, ou seja, um conjunto de condições e fatores obstaculizaram o livre cumprimento dessa lei. Contudo, isso não impediu que novas leis fossem criadas pelo rei, na Itália, visando a proteção das “gentes do saber”. Isso demonstra que se tratava de uma luta intensa para estabelecer e proteger o saber, pois, mesmo o rei não estava conseguindo.

Em 1220, Frederico II edita uma nova lei para proteger as pessoas que se devotavam ao saber, especialmente as do Direito de Bolonha e de Nápoles. Aliás, há que se destacar um fato notável: o rei promulga essa lei no dia da sua coroação, o que demonstra a importância dessa Instituição para o seu governo


No dia da sua da sua coroação, em 22 de Novembro de 1220, o imperador Frederico II promulgou a constituição denominada De statutis et consuetudinibus contra libertatem Eclesiae editis, em que se salvarguardavam as imunidades e privilégios do clero, e ordenou aos juristas de Bolonha que o integrassem no grande Corpus de Direito Romano. Ele mostrava, deste modo, que o poder político imperial continuava interessado nas escolas de Direito, no seguimento de uma tradição que já remontava à constituição Habita, mas que depressa foi interrompida pela guerra e pela crise dinástica que precedeu a sua ascensão ao trono. Mesmo assim, o imperador Frederico II não tinha intenção de competir com o Papa como protector do studium de Bolonha; tinha, porém, outros planos, mais ambiciosos – como viriam a mostrar os anos de sua enérgica governação da Itália. O seu primeiro acto importante no campo da política acadêmica foi a fundação do studium de Nápoles, com o objetivo de formar a classe dirigente do reino da Sicília – um território que não era menos querido a Frederico II do que o Sacro Império Romano. Em 1224, enviou uma carta a todos os dignatários do reino, na qual expunha as razões para a sua decisão e o modo como esta deveria ser posta em prática; esta carta fazia eco de partes da constituição Habita e seguia algumas de suas directivas. Mas por razões completamente diferentes: embora ambos os documentos mostrassem a intenção de proteger os estudantes e os professores em relação aos desconfortos do estatuto de estrangeiros (peregrini), a constituição Habita oferecia protecção a todos os centros de ensino possíveis e proibia represálias de qualquer espécie, ao passo que a <> de 1224 limitava essa protecção aos indivíduos que freqüentassem o studium de Nápoles. (NARDI, 1996: 84-85).


Essa nova lei lembrava, em muitos aspectos, a Authentica. Todavia, ela está, efetivamente, mais dirigida ao ensino do direito, objetivando conservar os privilégios do clero na Universidade de Bolonha e proteger os alunos e os studia da Itália, em virtude, inclusive, da ambição política de Frederico II de expandir o seu Império. Nesse sentido, essa nova lei se diferencia da de 1155 uma vez que aquela estendia a proteção e o privilégio a todos os estudantes, inclusive aos estrangeiros e aos diferentes studia sob o governo de Frederico I. A de 1224, por seu turno, se limita a proteger os mestres e escolares de Nápoles. Mais do que isso, está dirigida ao curso que poderia prover o rei de pessoas bem formadas para auxiliá-lo em suas ambições políticas.

Contudo, se Savigny, no século XIX, e Nardi, no século XX, destacam a Authentica Habita como a primeira lei que ressalta a importância dos homens de saberes e vêem nela um dos fatos ligados às origens das Universidades medievais, o filósofo alemão da primeira metade do século XX, Steenberghen, ao analisar as correntes filosóficas na Idade Média, nos brinda com uma excelente análise sobre as origens das Universidades medievais e destaca as escolas do século XII como um dos fatos mais relevantes para o surgimento dessa Instituição medieva. Aliás, muitos autores de renome, destaque-se o próprio Jacques Le Goff, na sua obra Os Intelectuais na Idade Média, comungam dessa concepção acerca das origens da Universidade medieval:


Já no século XII, algumas escolas emergem e se tornam célebres, sobretudo em França: Paris (Notre-Dame e São Victor), Chartres, Claraval, etc.

O fenómeno da concentração escolar acentua-se no século XIII: alguns centros de estudo assumem uma importância verdadeiramente excepcional. Vê-se afluírem lá os mestres e os estudantes: o ensino ganha aí um desenvolvimento novo; enfim e sobretudo, estes centros recebem uma organização jurídica análoga à das corporações de ofícios. Tal é a origem das universidades.

Porquê este centro mais que aqueloutro? Em virtude de circunstâncias diversas, a examinar em cada caso.

As mais antigas universidades são de as Paris e Bolonha (cerca de 1200), depois as de Oxford (cerca de 1214) e Nápoles (1224), [...]. Dentro em pouco, as grandes ordens religiosas vão fundar centros de estudos regionais, entre outros os studia generalia dos Pregadores (Colónia, em 1248, Nápoles em 1272, etc.)

Paris será doravante até o fim da Idade Média, metrópole universitária da cristandade. Centro principal dos estudos filosóficos e teológicos, comanda as grandes correntes doutrinais (Bolonha será sobretudo célebre pelo direito, outros centros pela medicina). É importante, pois, compreender o que era a Universidade de Paris no século XIII. Ela serviu de modelo às outras universidades e, além disso, pouco evoluiu na sua constituição e na sua organização geral (STEENBERGHEN, 198-, 90-91).


Essa passagem evidencia a concepção de Steenberghen acerca das origens dessa Instituição, ou seja, as universidades surgiram a partir das escolas dos séculos XII e XIII e se organizaram sob a forma de corporação de ofício, do mesmo modo que as demais profissões do período estavam se organizando. Assim, na sua concepção, as universidades, os profissionais do saber precisaram se organizar de acordo com as relações que estavam se estabelecendo na sociedade e criar locais próprios do e para o conhecimento que eram protegidos por leis e regulamentos que norteavam as relações feudais.

Não queremos dizer com isso que a Universidade e as corporações de ofícios fossem corpos estranhos e fora do universo medievo, mas, indubitavelmente, eram instituições novas que principiavam a ser constituídas por intermédio de leis novas, portanto, buscavam nos privilégios e proteções os elementos essenciais para a sua existência.


A <> é, em suma, a mesma corporação parisiense das gentes de estudo.

O chanceler é um mestre que representa o bispo de Paris, chefe da Universidade. Os mestres são os <>, os bacharéis são os <>, as faculdades são os <>. Cada mestre tem os seus bacharéis e os seus estudantes; não há, pois, especialização, divisão do trabalho como hoje, pelo menos em princípios (STEENBERGHEN, 198-: 91).


Um outro aspecto salientado pelo autor que merece ser destacado é a ênfase dada à Universidade de Paris. Esse destaque não é só dele. Pieper, em sua análise sobre a Escolástica, também nos chama a atenção para a importância dessa Instituição. Tanto Steenberghen como Pieper observam que a Universidade de Paris tornou-se o centro da cristandade latina porque foi nela que as questões mais importantes da humanidade estavam sendo debatidas, elaboradas, defendidas e criticadas, pois, era nela que se concentravam as principais tendências filosóficas e teológicas do Ocidente do século XIII.

Por último, em relação a Steenberghen vale ressaltar o fato de que ele descreve o sistema de ensino das universidades medievais sem estabelecer nenhuma crítica negativa como, em geral, encontramos na historiografia. Entretanto, não se trata de uma descrição apenas, mas de uma valoração desse sistema de forma positiva, o que estimula a reflexão. Sob este aspecto Pieper tece comentários no mesmo sentido.


A universidade medieval conhece duas formas de ensino complementares: a lectio e a disputatio.
A lectio é o curso propriamente dito, feito sobre a base de um texto <>.
A disputatio é um exercício de discussão. A disputatio ordinária realiza-se regularmente, cada semana ou cada quinzena.
A disputatio solemnis, generalis ou de quodlibet, realiza-se duas vezes ao ano, na presença do bispo, do chanceler e de toda a faculdade. O mestre que aceitou a presidência deve estar disposto a responder a todas as questões que se lhe queira pôr (daí o título de quodlibet, disputas quodlibéticas, quodlibeta). Estas grandes sessões académicas lançam uma viva luz sobre os ambientes teológicos do século XIII: testemunharam a virtuosidade dialéctica, o espírito combativo, a franqueza e, sobretudo, as preocupações doutrinais dos teólogos da época (STEENBERGHEN,198-: 92-93).


Ao descrever a lectio e a disputatio como um sistema de ensino combativo, franco, Steeenberghen permite-nos olhar essa época sem ter que necessariamente tomar partido, ou seja, não precisamos nem defendê-la nem combatê-la, mas tão somente entender como um modo no qual os homens de saberes produziram uma forma própria e nova do conhecimento.

Após considerarmos as origens da Universidade medieval em Steenberghen, passemos agora a fazer alguns comentários sobre o estudo de Jacques Verger, uma das maiores autoridades contemporâneas sobre a temática. Já na introdução de sua obra intitulada As Universidades na Idade Média, Verger delimita o seu campo de estudo.


De início, falaremos apenas das universidades, daquilo que, ao menos a partir do início do século treze, designa um tipo bastante preciso de instituição. Deixaremos de lado as demais formas de ensino que existiam no Ocidente nessa época: de um lado, os monastérios (bem menos importantes, é verdade, do que na Alta Idade Média); de outro, todos os tipos de escolas que não integravam as universidades (“pequenas escolas” de gramática, preceptoras privadas, escolas de notários de direito, de mercadores, etc.). Não ignoramos o interesse que teria o estudo delas; sem dúvida, estamos respeitando uma concepção muito tradicional ao isolarmos as universidades do resto do mundo das escolas. (VERGER, 1973: 7-8, trad. livre).


As palavras de Verger não deixam dúvidas de que faz um recorte específico em relação aos homens de saberes: ele vai tratar, nessa obra, somente das Universidades no medievo, especialmente aquelas do século XIII.

Após definir o seu objeto, o autor analisa a importância e o papel que os homens e o conhecimento veiculados nessa Instituição desempenharam na sociedade. Nesse sentido, uma das questões que mais nos chamam a atenção é o fato de Verger procurar definir uma origem para as Universidades. Segundo ele, podemos detectar ao menos três origens distintas para essa Instituição, ou seja, diferentemente de Savigny e de Stenberghen, que procuram as origens dessa Instituição em um aspecto, uma lei, um grande acontecimento, Verger busca explicitar o nascimento da Universidade em função de elementos variados.

Para esse historiador, podemos definir as origens dessa corporação de ensino a partir de suas relações com o poder, de suas relações com as escolas anteriores e em função das lutas entre as gentes de saberes com as demais pessoas do local onde estavam localizadas. Nesse sentido, do ponto de vista de Verger, não se pode entender as origens das Universidades sem considerar os acontecimentos sociais que marcaram o Ocidente medieval do século XIII. Exatamente por isso vincula sua origem aos principais aspectos históricos desse período.

Dentre esses aspectos, destaca o início das disputas entre os poderes laico e eclesiástico e aquelas entre os habitantes das comunas e os privilégios dados aos homens que se dedicavam ao saber, as disputas pelas cartas de liberdade, enfim, os diferentes avanços e conflitos que marcaram esse período.

É em função dessa realidade de crescimento e de profundos conflitos que ele define três origens distintas para as Universidades medievais. A primeira delas denomina de espontâneas.


A. Universidades “espontâneas”
Chamam-se assim universidades nascidas do desenvolvimento “espontâneo” de escolas pré-existentes. As de Paris e de Bolonha são pois exemplos absolutamente típicos. Um outro caso clássico de universidade nascida “espontaneamente” é o da universidade de Oxford [...] (VERGER, 1990: 41).

Essas Universidades espontâneas teriam surgido, segundo Verger, de alguma importante escola que existia. Ao se desenvolverem as relações sociais nesses locais, essas escolas passam a agregar um número cada vez maior de pessoas e a unir interesses diversos em seu seio. Nesse sentido, essa modalidade de Universidade aproxima-se muito da discussão de Steenberghen, mas lembremos que para Verger essa é apenas uma das explicações para a origem das Universidades, enquanto que para Steeenberghen essa seria a única.

Uma segunda origem para as Universidades seria aquelas oriundas de migrações de professores e alunos.


B. Universidades nascidas por migração
Os exemplos de Paris e Bolonha mostram-nos que a “secessão” fora uma das principais armas das jovens universidades em luta contra as autoridades locais. [...]

Mas outros sobreviveram. Sua organização refletia a da universidade “mãe”. Como as universidades “espontâneas”, essas universidades nascidas por migração funcionavam muitas vezes longamente de fato antes de receberam uma bula de fundação e seus primeiros estatutos oficiais.

Na Inglaterra, a universidade de Cambridge (oficialmente reconhecida somente em 1318) nasceu da secessão oxfordiana de 1208..

Na França, a grande secessão parisiense de 1229-1231 dispersou mestres e estudantes em numerosas cidades da metade norte da França; em Angers e Orléans, encontraram escolas de Arte e de Direito que existiam desde o século XII. Por isso, mesmo após o final da secessão, tais escolas continuaram a funcionar com a amplitude de verdadeiras universidades, tanto mais que nelas podia-se estudar livremente Direito civil, proibido, pelo contrário, em Paris, desde 1219. Angers só foi oficialmente reconhecida como universidade em 1337, Orléans em 1306 (VERGER, 1990: 43).


As Universidades por secessão teriam sua origem em virtude das disputas entre as autoridades locais e os homens de saberes que, muitas vezes, saíam de um local onde já se encontravam havia bastante tempo e iam para os locais onde tivessem mais proteção e aceitabilidade das autoridades e da população em geral.

Verger define a terceira origem para as Universidades em função das estreitas relações existentes entre os homens de saberes e o poder, seja ele laico ou eclesiástico. Exatamente por isso as denomina de Universidades criadas.


C. Universidades “criadas”
Chamamos desta maneira universidades “criadas” de uma só vez pelo Papa ou pelo Imperador; tais universidades recebiam pois, desde sua origem, uma bula ou uma carta de fundação que definia a priori seus estatutos e privilégios.

Na verdade, as poucas universidades “criadas” do século XIII tiveram, em relação às grandes universidades “espontâneas”, resultados medíocres: essa fórmula não conhecerá verdadeiro sucesso senão nos séculos XIV e XV. Contudo, é preciso mencioná-la no momento preciso, pois, ela traduz uma atitude completamente nova diante do fenômeno universitário. Ela significa que papas e soberanos não se contentam em tolerar ou encorajar o desenvolvimento espontâneo de universidades nascidas antes de tudo do desenvolvimento intelectual do século XII, mas que empreendem eles mesmos a criação de universidades, tendo tomado consciência do papel que elas podiam desempenhar ao colocar à disposição da Igreja ou do Estado um pessoal intelectualmente qualificado. Significava reconhecer na formação universitária, além de seu valor cultural e de seu prestígio, uma utilidade prática e um alcance político.

O primeiro exemplo, perfeitamente claro em suas motivações, foi a fundação da universidade de Nápoles por Frederico II, em 1224. (VERGER, 1990: 44).


Ao analisar essa terceira origem das Universidades medievais, Verger traça um quadro bastante explícito do caráter prático que o governo vai buscar nessa Instituição. Não se trata apenas do conhecimento e do saber, mas de tornar esse saber e conhecimento em um instrumento político útil ao governo. O Papa, um imperador, um rei, ao criarem uma Universidade estariam, em última instância, criando as bases teóricas de sustentação de seu poder. Esses governantes procuram nas Universidades não só quadros administrativos, mas, efetivamente, verdadeiros defensores de seu governo.

Aliás, dois grandes exemplos da influência dos teóricos do século XIII e XIV a serviço do poder são a Bula Unan sanctam, do papa Bonifácio VIII, e a obra de Marsílio de Pádua, Defensor da Paz. Na Bula papal encontramos passagens muito semelhantes à obra de Egídio Romano, Sobre o Poder Eclesiástico (EGÍDIO ROMANO, 1989: 26-27). A obra de Marsílio de Pádua, jurista italiano do final do século XIII e início do XIV, que, inclusive, ocupou o cargo de reitor da Universidade de Paris, é um verdadeiro tratado contra a ingerência do poder eclesiástico e uma plena defesa da soberania do poder laico.

Essas duas obras refletem claramente a importância que os intelectuais estavam assumindo na sociedade e, concomitante, verificamos a importância que os poderes políticos lhes davam, pois são personagens importantes não só no campo do saber, mas também no âmbito do poder. Exatamente por isso a Universidade se constitui, na Idade Média, uma Instituição que precisa de privilégios e de proteção.

Decorridos oito séculos de sua criação, como nós, pessoas da Universidade, nos colocamos diante de sua história e de sua memória? Indubitavelmente, não podemos mais analisá-las com os olhos de Savigny, de Steenberghen ou Verger, pois suas análises estão datadas historicamente. Savigny, como autor alemão do século XIX, certamente tinha inquietações muito vinculadas aos embates políticos desse período. Não podemos nos esquecer que Alemanha e França, em fins do século XVIII e início do XIX, em virtude das lutas políticas instauradas nessas duas nações, criaram uma grande corrente teórica que procurou recuperar a Idade Média em nome da construção de suas identidades nacionais, por meio do Romantismo.

Steenberghen também tem seu olhar datado historicamente pelos acontecimentos europeus da primeira metade do século XX. Além das duas guerras que assolaram o mundo, no campo teórico, também se verifica um grande debate entre o marxismo e outras correntes histórico-filosóficas. Mesmo a obra de Verger, que está bem mais próxima de nós, porque é do início de 1970, também tem marca de seu tempo: a França havia passado pelos tumultos de 1968, o debate entre o marxismo e uma infinidade de outras tendências teóricas estava em cena, influenciando, inegavelmente a memória dos historiadores. Verger, como cientista social, não ficou incólume a essas mudanças e perturbações.

Desse modo, ao voltarmos para as Universidades medievais, não podemos apenas contemplar as análises e as memórias de outros tempos. Precisamos, é verdade, considerar como válidas essas análises por expressarem interpretações e memórias datadas historicamente. No entanto, precisamos construir a nossa própria lembrança do passado, precisamos, de fato, construir nossa interpretação e isso só será possível por meio da recuperação dos documentos.

Novamente precisamos buscar nos estatutos das Universidades, nos seus privilégios, nas Bulas papais, nas condenações de Tempier, de 1277, especialmente nos escritos dos teóricos daqueles tempos vividos, as lembranças que precisamos recuperar para que possamos também escrever a nossa história e a nossa memória da Universidade medieval. Tudo isso para que o nosso olhar também tenha a marca de nosso presente e possa a vir a ser também uma lembrança.

Que possamos fazer a nossa própria leitura dos documentos medievos à luz de nossas questões. Ao nos defrontarmos, por exemplo, com o primeiro parágrafo da Parens Scientiarum, de 1231, possamos identificar questões novas, sem que isso implique, claro, na “invenção da roda”, mas que possamos, ao menos, verificar como esse documento nos toca, o que ele nos diz.


Paris, mãe das ciências, como uma outra Cariath Sepher [ou Kiriath-sepher, também denominada Dabir ou Lo-debar, atualmente, Tall Bayat Mirshan, era uma antiga cidade da Palestina que encerrava o depósito dos livros de Israel], cidade das letras, brilha com um esplendor digno da maior consideração, grande, sem dúvida, faz dela esperar grandes coisas, graças àqueles que nela aprendem e graças àquele que nela ensinam. [...] Também não resta dúvidas que, aquele que, na cidade acima mencionada, esforçar-se, de alguma maneira, para perturbar uma graça tão manifesta ou aquele que não se opor claramente e com força àqueles que a perturbam, desagrada profundamente a Deus e aos homens. Tendo considerado atentamente aos problemas que a nós foram submetidos a propósito da discórdia que nela nasceu por instigação do diabo e que perturbam gravemente os estudos, julgamos, auxiliados pelo conselho de nossos irmãos, que era preferível resolvê-los por meio de um regulamento sábio do que por uma decisão judiciária (PARENS SCIENTIARUM UNIVERSITAS, 13 de Abril de 1231).


Ao lermos esse documento promulgado pelo papa Gregório IX (1227-1241), considerado, em geral, a carta magna de criação da Universidade de Paris, verificamos o grau de importância que essa autoridade eclesiástica devotava a essa Instituição do saber. Ele considera Paris como a “mãe das ciências” é como considerá-la um local sagrado, que precisa ser protegido por todos e que todos aqueles que, de algum modo, possam prejudicá-la precisam ser impedidos, ou seja, nada pode perturbar o estudo e o ensino.

Nesse sentido, ao defrontarmos com esse documento, no qual a autoridade máxima, o papa, define que a Universidade de Paris deve ser protegida por todos e de todos, podemos, ao menos, perguntar porque nossa Universidade, o local por excelência do conhecimento e do ensino hoje, não é mais um local sagrado ou, colocado de outro modo, um local respeitado por todos, especialmente pelas autoridades? Talvez porque ela tenha adquirido independência diante desses poderes. Mas, diante dessa nova situação, qual deve ser seu papel na sociedade? Qual é o conhecimento e o saber que interessa realmente a ela?

A independência não pode ser confundida com descomprometimento. As questões acima formuladas expressam novos desafios que somente poderemos enfrentar se estivermos, como estava a Universidade em sua origem, respondendo às exigências do momento histórico. Além disso, atualmente, o conhecimento e o saber deixaram de ser a essência do ser, característica fundamental da Universidade medieva. Desse modo, a nosso ver, em virtude desses dois aspectos, o político e o esfacelamento do conhecimento, é que faz sentido dar voz aos documentos do passado.

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Bibliografia

EGÍDIO ROMANO, Sobre o Poder Eclesiástico. Petrópolis: Vozes, 1989.

LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984.

LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989.

MARSÍLIO DE PÁDUA, Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997.

PARENS SCIENTIARUM. In: Chartularium Universitatis Parisiensis. Éditions H. Denifle et E. Chatelain. Paris, Delalain, 1889, Tome 1, p. 136-139.

STEENBERGHEN, F. História da Filosofia. Período Cristão. Lisboa: Gradiva, 1980.

VERGER, J. As Universidades na Idade Média. São Paulo: Unesp, 1990.



* Este texto faz parte de uma exposição feita na IV Jornada de Estudos Antigos e Medievais, na Universidade Estadual de Maringá, em outubro de 2005.



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